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PELO RETORNO DO EDUCADOR
Acadêmico: José de Souza Martins
Mais que treinadores de estudantes para o trabalho, nossas salas de aula carecem do retorno do educador.

A Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo e a Secretaria estadual de Educação lançaram um programa, o Proeduca, destinado a estimular pesquisas que aprimorem a gestão da formação de professores, a gestão das escolas, os resultados da atividade educacional e a preparação dos alunos para atividades profissionais. Questões fundamentais da crise da educação brasileira ficaram de fora nas intenções e nas metas. Não se trata apenas da questão da educação no estado de São Paulo.

O surgimento das universidades no país, a partir da criação da USP, em 1934, teve por objetivo fundamental promover uma revolução na educação brasileira. Foi esse o motivo da inclusão nelas das ciências sociais e das Faculdades de Filosofia como seus núcleos formativos.

Universidades como a USP não eram escolas técnicas. Seu objetivo era combater e vencer o atraso cultural, educacional e científico da sociedade brasileira. Vencer e superar os remanescentes da escravidão disseminados no conjunto das relações sociais e na mentalidade do brasileiro, que os autores da Lei Áurea não pretenderam suprimir.

As ciências humanas, em nossas universidades, tinham por função, e a tiveram durante longo tempo, produzir conhecimento sobre o nosso atraso social, os nossos bloqueios à modernização. Na USP, a antropologia e a sociologia deram ênfase ao estudo e à pesquisa das chamadas resistências sociais à mudança. E as resistências estavam socialmente distribuídas pelas diferentes categorias sociais: do trabalhador da roça aos empresários da Fiesp. Não por acaso, Roberto Simonsen, um dos fundadores da entidade, foi também criador da Escola de Sociologia e Política.

Tinham por função, também, a formação dos professores que, nas salas de aula da roça e da cidade ressocializariam as novas gerações para delas fazer agentes de superação de estados de anomia, o nome sociológico do atraso social que nos mantinha prisioneiros de um passado incompatível com a modernidade e a civilização.

A Universidade destinava-se a formar o educador, no espírito do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, de 1932, que teve como dois primeiros signatários Fernando de Azevedo e Júlio de Mesquita Filho, que dois anos depois fundariam a USP.

O regime militar de 1964, promoveu mudanças na educação brasileira inspiradas em metas econômicas, o ser humano dos educadores de 1932, reduzido à condição de mão de obra, o educador a instrutor, mediado pelo pressuposto completamente equivocado de que o problema da educação brasileira era um problema de gestor e de gestão. Era e continua sendo um problema de conteúdo.

A educação não é para treinar pessoas para a linha de produção e a produtividade. A educação é para formar pessoas, isto é socializá-las, dar-lhes condições de desenvolver a própria consciência crítica e desse modo serem agentes ativos das soluções das crises e impasses, da superação dos obstáculos do atraso que se renova em consequência do defeito de ser subcapitalista o capitalismo brasileiro.

Num país em que a educação está cada vez mais reduzida ao treinamento para as profissões cada vez mais temporárias e em extinção, as do trabalhador descartável, o Proeduca não contempla o essencial da questão educacional brasileira.

Nele, o predomínio das concepções de gestor e gestão indica uma mentalidade dominada pelos valores da eficiência e da produtividade, como se a escola fosse uma fábrica de mão de obra. O modelo de capitalismo decadente que se expande no Brasil, na melhor das hipóteses, pede uma mão de obra pensante, uma ressocialização das novas gerações para a sociedade da incerteza, da crise e das mudanças econômicas mais rápidas do que as mudanças sociais adaptativas. Pede pessoas preparadas para se tornarem agentes ativos e criativos da superação das contradições excludentes e desumanizadoras.

Na proposta falta muita coisa para dar certo. Está faltando estímulo ao estudo sociológico e antropológico da realidade social da atualidade no que ela representa de adversidade à educação, que inutiliza esforços na área educativa por uma sociedade que não é socialmente receptiva a intervenções desvinculadas do real. É como ter tratamento para uma doença que é outra.

Para o estudante e sua família não basta “inovar para uma inserção satisfatória no mundo do trabalho”, como diz o documento do Proeduca, se o mundo do trabalho é aqui completamente insatisfatório. É profundamente desfigurado por milhões de desempregados e de subempregados, o emprego cada vez mais precário e a insistência nos numerosos casos de trabalho análogo ao do trabalho escravo.

Mais que treinadores de estudantes para o trabalho, nossas salas de aula carecem do retorno do educador.




Publicado em Eu& Fim de Semana, jornal Valor Econômico, Ano 22, nº 1.107, São Paulo, Sexta-feira, 4 de março de 2022, p. 4.



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