MEMÓRIA
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VICENTE DE CARVALHO
Acadêmico: Academia
AINDA NA FASE preparatória; falta considerarmos a exclusão de Vicente de Carvalho da relação dos sócios fundadores da Academia, particularidade tanto mais de admirar por ter sido o poeta santista, conforme já vimos, um dos mais entusiastas componentes da Academia de 1907, que morreu ao nascedouro. Ele e a poetisa Francisca Júlia, luminares no nosso horizonte literário, no começo do século. De Francisca Júlia conta-se o que também se diz com maiores visos de probabilidade, da poetisa Zalina Rolim: instada para ingressar na nova sociedade, declinou do convite, com alegar que não entraria para nenhuma agremiação literária deixando do lado de fora o seu marido. Nas suas reminiscências da Academia - artigo do n° 1 da Revista - Ulisses Paranhos nos diz por outras palavras a mesma coisa. Ao relatar as atividades do triunvirato inicial dessa outra Academia: Brasílio Machado, J. J. de Carvalho e ele próprio, incumbidos de escolher nomes e de convidá-los para comporem a nova agremiação, revela-nos que dos nomes apontados por ele apenas dois declinaram do convite: Veiga de Miranda (sic) "que se tornou depois um dos nossos mais brilhantes companheiros", e Francisca Júlia, que, "numa longa e afetuosa carta informava que depois que se casara vivia para o lar". O original dessa missiva também está perdido. Tão pródigo em desencavar inéditos para a Revista de René Thiollier, nesse ponto Ulisses Paranhos cochilou. Mas, falando na própria noite da inauguração, o Dr. Carvalho enumera outros nomes ilustres de pessoas que também declinaram do convite para fazer parte da sociedade nascente:

"A poetisa D. Francisca Júlia, a poetisa e pedagoga D. Zalina Rolim Toledo, Paulo Pestana, Alfredo Pujol, Henrique Coelho, Franco da Rocha, Horácio de Carvalho, Veiga Miranda, Leopoldo de Freitas, Oliveira Fausto, o notabilíssimo padre João Gualberto e Álvaro Guerra, primoroso escritor e reputado filólogo, que tão belos, tão fortes e substanciosos artigos lançou outrora, justificando a criação da Academia, de parceria conosco, estes, quase todos por delicadas cartas, que já entraram para o nosso arquivo, se escusaram aos nossos convites, ainda que reiterados".

Com o poeta santista essa exclusão degenerou numa polêmica que durou dois anos, entre o poeta Carvalho e o médico do mesmo nome, teimando o primeiro em ser admitido no grêmio da nova sociedade, e reteimando o segundo em não lhe conceder a láurea cobiçada. Que teria acontecido nesse meio tempo para justificar tão radical mudança no comportamento dos dois amigos de ontem?

Felizmente, não escasseiam documentos para deslindar o pleito. Contanto que sejam lidos e corretamente interpretados. Na falta de outros depoimentos dos coetâneos, só nos é conhecida a referência nada razoável de Ulisses Paranhos, quando nos mostra Vicente de Carvalho na porta do Conservatório, a distribuir, um escrito de sua lavra aos convidados da festa da inauguração da Academia. Não havendo recebido convite para o festival em curso, desforrou-se o poeta santista cobrindo de ridículo os seus promotores, com o intuito evidente de empanar o brilho daquela festa. "Na noite da inauguração solene da Academia, o cantor do nosso mar distribuiu um folheto aos assistentes da festa, onde ridicularizava a novel instituição que, entre flores e música, recebia o batismo público."

Só por essa referência podemos concluir que Ulisses Paranhos não vira nem lera o tal folheto e que falava por ouvir dizer. Qual dos muitos participantes da tão falada exibição teria levado para casa aquela preciosidade bibliográfica talvez autografada — como lembrança da desforra pouco elegante do Poeta santista? E, acima de tudo: quais teriam sido os motivos próximos ou remotos de tão ferrenha oposição por parte do Dr. J. J. de Carvalho?

Sem negarmos a autenticidade da ocorrência, mesmo porque logo adiante a vemos confirmada pelo Dr. Carvalho, de se ter postado Vicente na entrada do Conservatório para mimosear os conhecidos com alguma publicação recente de sua autoria, parece-nos possível recontar a mesma história sem carregar nas tintas nem atribuir ao Poeta santista maior ferocidade do que o mínimo compatível com sua posição de candidato, pelo exclusivismo do Dr. Carvalho.

Ao que tudo indica, trata-se de outra publicação: uma brochura de 50 páginas saída a lume naquele mesmo ano, com três trabalhos diferentes, dos quais somente o primeiro se refere à Academia, ou melhor: ao desejo reiterado de Vicente de Carvalho de entrar para a Academia Paulista. Mas, não passemos daqui, até esclarecermos a questão principal, a de saber por que não figurou Vicente de Carvalho entre os sócios fundadores da nova agremiação, se na primeira Academia do Dr. Carvalho ele apareceu com indisfarçável entusiasmo?

Analisada à distância e sem as distorções inevitáveis da paixão, a decisão do Dr. Carvalho, de não admitir o seu homônimo Vicente no rol dos fundadores da nova Academia, é mais do que compreensível, justifica-se. No caso, bem entendido, de considerarmos o estado de ânimo dos escritores paulistas — de modo geral — no começo do século, e a timidez de quase todos no que diz respeito à perspectiva da criação, em nosso meio, de uma Academia de Letras.

O prestígio de que já desfrutava a Academia Brasileira, alvo inacessível para os principiantes que habitavam na província, deixava os nossos escritores naturalmente encabulados e como que arrependidos de haverem embarcado naquela aventura a que os arrastara o entusiasmo do Dr. Carvalho. A pequena alocução de Brasílio Machado, pontilhada de escusas e justificativas, traduz o estado de ânimo de quem desconfiava do seu próprio valor, e que ali se encontrava mais por honra da firma do que por convicção. A verdade, porém, é que tal exclusão não visava especificadamente a Vicente de Carvalho, mas decorria de um princípio geral que atingia dois outros escritores paulistas — senão de nascimento, por adoção naquela época — e também diplomados, como Vicente de Carvalho, pela Academia Brasileira: Rodrigo Otávio e Garcia Redondo. Já havendo todos os três atingido o marechalato, que pretendiam, agora, numa agremiação de neófitos aqueles medalhões de ar solene e ademanes paternalistas? Se, com engenho e arte, e talvez mesmo alguma sorte, já haviam alcançado noutras plagas essa posição invejável, deixassem os pequeninos aprender a voar por esforço próprio, para ver até onde chegariam.

Eis aí. O motivo único e exclusivo da mudança do Dr. J. J. de Carvalho com relação ao seu homônimo poeta, está no fato de haver entrado este para a Academia Brasileira naquele mesmo ano em que se cogitava de criar a segunda Academia paulista, ou seja, logo após a publicação de sua obra maior, "Poemas e Canções", editada em 1908. Foi esse cartão de visita que abriu para Vicente de Carvalho, de par em par, as portas da Academia Brasileira. Com relação ao Carvalho médico, não se tratava de quizila com ninguém, mas de um princípio geral que importava defender. E com denodo portou-se J. J. de Carvalho no resguardo de suas convicções, ao mesmo tempo que se batia com adversários menores, porém não menos de temer, empenhados em desmoralizar a ideia fixa da criação de uma Academia entre nós. Lutava, a um só tempo, em duas frentes. Se já tínhamos, argumentavam seus atacantes, para todo o País, a Academia Brasileira, qual a necessidade de criarem os Estados suas Academias de brinquedo? Pura macaqueação, sem possibilidade remota de atingirem o objetivo.

Mas, Vicente de Carvalho também não era de torcer. Sua teimosia em querer entrar para a Academia dos paulistas está bem justificada em dois escritos daquele tempo, dirigidos ao público em geral, mas, principalmente, aos novos acadêmicos, a fim de explicar as razões de ser da sua pretensão. Conquanto sejam de datas diferentes, só será de vantagem considerá-los em conjunto. O segundo escrito, intitulado "Páginas Soltas" abre-se com o trabalho "Uma Candidatura", que nos interessa de perto. Todo o livro é uma coletânea de trabalhos em prosa, organizado pelo autor como credencial para candidatar-se à vaga na Academia Paulista de Letras, verificada com o falecimento do Dr. Rafael Correia da Silva.

Todavia, deve ter sido a brochura de, 1909, "Verso e Prosa", que Vicente de Carvalho ofereceu aos novos acadêmicos na inauguração da Academia, ou aos convidados em geral, à medida que transpunham a porta do Conservatório.

Por isso mesmo, não se compreende que cobrisse de baldões a Academia no momento em que manifestava o desejo de a ela pertencer.

A não ser pelo título dado ao primeiro trabalho - "Academia de poucas letras", o único que nos interessa neste momento, nada mais sugere ofensa aos brios da nova instituição. Apenas sugere. As verdadeiras intenções do autor transparecem na generalização implícita no plural ali empregado. O que lhe causava espécie na nova Academia de letras, era o diminuto número de poetas na relação dos sócios fundadores, em confronto com o dos cientistas, ou seja, autores de obras em prosa, nos diferentes ramos do saber.

Daí a sua insistência no outro escrito, dois anos depois, "Páginas soltas", de apresentar elementos de prova da sua capacidade de escritor, no sentido corrente, como a desculpar-se por haver composto versos. Se a nossa Academia não era de poetas, mas de austeros prosadores, médicos e juristas, e de sábios na escritura, ele também pretendia reforçar com aqueles modestos escritos a sua justificada aspiração. É o que ele mesma apregoa com todas as letras neste trecho delicioso:
"Seja como for, deliberei alegar e provar, no interesse da minha candidatura mal parada, que em matéria de letras, não tenho cultivado só o vício escandaloso do verso, mas dei-me também, com afinco, à virtude austera da prosa. Sim, escrevo também em prosa; mal, porém há muito tempo: é o que se demonstra com documentos autênticos, alguns deles antigos de mais de vinte anos".

No caso de Vicente de Carvalho, não lhe servia de consolo ter por companheiros de desdita a dois ilustres membros da Academia Brasileira: Rodrigo Otávio e Garcia Redondo. É que, banidos de São Paulo, cada um com seu carregamento de livros facilmente encontraria asilo noutra parte. Nos seus próprios termos:

"Negada a ambos a qualidade de escritor paulista, consolar-se-ão lembrando-se um, de que é fluminense adotivo; o outro, de que o é de nascimento. Comigo, porém, muda o caso de figura; a minha aflição é grande e justa. Se me tiram, e às minhas letras, a única terra que temos, fico eu e ficam elas sem termos onde estar".

Por último, espraia-se Vicente com muita sensatez sobre o grande malefício causado às letras paulistas com o decreto da nova Academia, por criarem uma suposta incompatibilidade, que só poderia aumentar com o tempo, entre os escritores de São Paulo, indiscriminadamente considerados, e a Academia Brasileira de Letras. Equivalia ao reconhecimento tácito da indeclinável inferioridade dos paulistas em confronto com os escritores dos demais Estados da Federação, que sempre constituíram maioria naquela Academia.

Posta a questão nesses termos, impunha-se a recíproca, de que jamais um acadêmico paulista poderia candidatar-se a vagas na Academia Brasileira.

Para evitar desilusões futuras, e até lágrimas, fora lógicas aconselhar aos escritores jovens de São Paulo que ambicionassem coroar condignamente tão justas aspirações, com o ingresso na Academia Brasileira, retraírem-se desde os seus primeiros ensaios na difícil arte de escrever, sem nunca baterem às portas da nossa Academia, para não cercearem ao nascedouro tão louvável ambição.

E não se restringiu a polêmica a esse comecinho. Com a inauguração da Academia, amiudaram-se os artigos dos jornais do dia, Vicente de Carvalho em "O Estado de São Paulo", e o Dr. J. J. de Carvalho no "Correio Paulistano". A história da brochura ou panfleto contra a Academia entregue na porta do Conservatório é confirmada pelo Dr. Carvalho, que não perdeu a oportunidade de glosar-lhe o título em todos os tons. "Literato de excessivas Letras", era como batizava os seus artigos o Carvalho médico (de 2 e de 5 de dezembro), enquanto o poeta Vicente conservava em suas diatribes o mesmo título do panfleto, ou capítulo do livro mencionado : "Academia de poucas Letras" (art. de "O Estado" de 3 de dezembro).

Mas, tudo isso foi apenas a crise precursora da convalescença. De mistura com as elucubrações dos dois contendores, nos primeiros dias de dezembro apareceram dois artigos no "Correio Paulistano", na coluna "Crônica semanal" (6 e 13 de dezembro) assinados por "J.C." nos quais o articulista chama à ordem Vicente de Carvalho e mostra a falta de senso da sua obstinação em atacar a Academia Paulista até mesmo depois da sua inauguração. O difícil na posição, de Vicente de Carvalho é não podermos distinguir entre a figura do laureado poeta paulista que proclamava por todos os modos o seu desejo de ingressar para a Academia de Letras de sua terra, prestes a fundar-se ou mesmo depois de inaugurada, e o escritor de não menor merecimento que não perdia vasa para atacar a ideia da criação de uma Academia de Letras em São Paulo, e, depois de inaugurada, a própria instituição, como inoportuna e desnecessária, uma vez que já tínhamos, para todo o território nacional, a Academia Brasileira de Letras.

“Além do que Vicente de Carvalho está só nesta campanha contra as Academias regionais, como acadêmico da Brasileira. Medeiros e Albuquerque não as combate como, há dias, fez sentir na Gazeta de Notícias; Joaquim Nabuco e Oliveira Lima pertencem à Academia Pernambucana, e assim outros. Depois, o estranhável é que o autor de Relicário, sendo paulista, se coloque em oposição à Academia do seu Estado e procure por todos os meios desprestigiá-la. Vamos! Confesse o poeta que a paixão desnorteia os melhores espíritos."

Essa guerra civil do espírito só terminou dois anos depois com o congraçamento dos beligerantes, conquanto a animosidade do Dr. J. J. de Carvalho atingisse o apogeu na campanha eleitoral para o preenchimento da vaga de Rafael Correia em 1911. Informa-nos Ulisses Paranhos que o velho Carvalho deu pulos desta altura, quando soube da pretensão do poeta Vicente, e apressou-se em escolher um concorrente de prestígio e que se dispusesse a disputar a mesma láurea: o poeta Aristeu Seixas, que, havia muito, sustentava polêmica pelos jornais com Vicente de Carvalho, por motivo da recente publicação do livro "Névoa", de Amadeu Amaral. Que o pleito foi renhido, comprova-o o fato de Vicente de Carvalho haver ganho a eleição apenas por um voto.

Retifiquemos. Foi esse o resultado anunciado após a primeira contagem de votos, e que ainda hoje se repete. Mas, logo a seguir, numa revisão que se impunha, foram anulados três votos dados a Aristeu Seixas, por serem em duplicado. Vicente de Carvalho ganhou a partida por quatro votos.

Essa vitória de um dos Carvalhos marcou também o fim da rivalidade entre ambos. Vencendo-se a si mesmo, o Dr. J. J. de Carvalho sobrepôs-se a suas birras e conduziu o pleito, na fase final da apuração, com a melhor isenção de ânimo, para congratular-se com o poeta santista — que deixara de ser "da maresia", na expressão sarcástica do Dr. Carvalho, até aquele confronto — pela sua merecida vitória.

Mais adiante veremos como Vicente de Carvalho não foi menos elegante com o poeta Aristeu Seixas, seu antagonista lá fora e concorrente de temer na presente conjuntura, quando da entrada deste, algum tempo depois, para a Academia Paulista: por intermédio de Spencer Vampré, ofereceu-se para saudá-lo na sua posse, a melhor maneira, segundo dizia, "de acabarem com aquilo".

Foram esses os primeiros frutos do famigerado "espírito acadêmico" da nascente sociedade, que só se desenvolve e manifesta sem peias em ambiente de cordialidade.

Mas, voltemos para a reunião dos acadêmicos, porque a sessão ainda não terminou. Infelizmente, são mudas as fontes quanto ao local dessa reunião. Com toda a probabilidade, ainda no salão nobre do Conservatório Dramático Musical, dada a conhecida influência do acadêmico Gomes Cardim. E agora, uma grande surpresa: afora referências ocasionais de algum participante da reunião, o mais completo e caloroso relato dessa competição nos foi transmitido pelo colunista do jornal "O Comércio de São Paulo"; mas, desta vez, como amigo e admirador da Academia vitoriosa. Para o Silogeu, em conjunto, e para o seu organizador em particular, desmancha-se o articulista em amabilidades, e com o conhecimento tão minucioso de tudo o que se passou lá dentro, que nos deixa a impressão de haver acompanhado de perto aquele pleito, e de ter sido admitido no recinto sagrado, ou que se valeu no mesmo dia da extensa e meticulosa ata lavrada pelo secretário da Academia, Ulisses Paranhos, hoje perdida para todos os efeitos.

Todavia, teve cuidado o nosso simpatizante de preparar o ânimo dos amáveis leitores para os elogios que ele pretendia desfiar, como que a justificar-se de tão inesperada reviravolta naquelas zumbaias de 1809 graus de rotação.

Quem vencerá? Era a pergunta que todos faziam, aqui dentro e lá fora, antes e durante o processo da votação. "Até muita gente que recebera com um sorriso de ironia e incredulidade a nova de que existia uma Academia de Letras em São Paulo, com quarenta sócios, começou a tomar interesse pelo primeiro pleito do novo cenáculo. A agremiação que para muitos semelhava mais uma sociedade de elogio mútuo do que outra coisa qualquer, principiou a ser o alvo de todas as atenções. Encontrava-se, agora, o articulista capacitado para fazer o panegírico da nova sociedade e, sobretudo, do simpático Secretário-Geral da Academia, Dr. J. J. de Carvalho.

"Entretanto, enquanto outros se punham de observação, havia uma pessoa que não descansava. Era o Dr. J. J. de Carvalho, que, com a sua natural atividade e pertinácia, desenvolvia um trabalhinho às direitas. O simpático imortal, secretário geral da Academia, lutava valentemente pelo Sr. Aristêo Seixas."

De passagem, anotemos que inscreveram-se três concorrentes para a mesma vaga; mas, ao se iniciarem os trabalhos do dia, o escritor Saturnino Barbosa retirou por meio de um ofício o seu pedido de inscrição. Assim a presidência da mesa, no impedimento de Brasílio Machado e do Vice-presidente Dr. Luís Pereira Barreto, coube ao secretário-geral J. J. de Carvalho; Ulisses Paranhos e João Vampré, respectivamente primeiro e segundo secretários, completaram a composição.

A apuração foi, realmente, emocionante. Para abreviar, diremos somente que os onze primeiros votos de cada candidato foram retirados da urna alternadamente, num verdadeiro movimento pendular: Vicente Aristeu: Vicente - Aristeu: onze a onze. E depois de relaxada a tensão com a retirada irregular dos envelopes, e de restar dentro da urna apenas uma cédula, restabeleceu-se outro empate: dezenove por dezenove. Finalmente, para alívio dos torcedores ali presentes, reboou o vozeirão do Secretário-Geral à leitura do último bilhete: Para a poltrona do Dr. Rafael Correia da Silva voto no Dr. Vicente de Carvalho. A última cédula dera a vitória ao ilustre poeta de "Rosa, Rosa de Amor". Não admira, pois, que o amável redator de "O Comércio de São Paulo" desse largas à sua tolerância, com relação ao Secretário-Geral da Academia, quando arrematou a reportagem, com secundar a proposta de Ulisses Paranhos, ao término dos trabalhos, de um voto de louvor pela inexcedível correção com que se mantivera o Dr. J. J. de Carvalho, como presidente da sessão. Deste modo conclui o periodista :

"Todos concordaram com a proposta do Dr. Paranhos, que era de inteira justiça. O Dr. J. J. de Carvalho foi leal, franco e sincero, e houve até quem achasse o seu procedimento, mutatis mutandis, muito semelhante ao de Bryan, que, vencido por William Taft no pleito em que disputaram a presidência dos Estados Unidos, foi, com a maior sinceridade deste mundo, apertar a mão de seu nobre adversário..."

Mais não seria possível exigir de um inimigo da véspera.

De um jeito ou de outro, o certo é que na noite de 27 de novembro de 1911 — exatamente na data do segundo aniversário da Academia, ainda no salão nobre do Conservatório Dramático Musical, Vicente de Carvalho era empossado na Cadeira n° 37, tendo sido saudado pelo presidente do sodalício, Brasílio Machado. Entre os poucos salvados do naufrágio do tempo, constam esses dois discursos. Depois do elogio do primeiro ocupante da Cadeira, concluiu Vicente de Carvalho nos seguintes termos a sua fala :

"Disputei com afinco a honra de pertencer ao vosso grêmio. Aceito com prazer a tarefa de colaborar na vossa obra, e faço votos para que de nosso esforço comum resulte alguma glória para o nome paulista".

Anotemos de passagem que Vicente de Carvalho nunca chegou a tomar posse da sua Cadeira na Academia Brasileira; mas, tal qual se deu com Washington Luís na Academia Paulista, a poltrona por ele ocupada na Academia do Rio só foi considerada vaga após o seu falecimento, em 1924. Essa eleição não foi a primeira realizada na Academia. Bem antes, ou seja, pouco depois de inaugurada, foi preciso completar o quadro social, com o preenchimento da vaga da Cadeira n° 31. De feito, a Academia fora inaugurada após a morte de um de seus fundadores, Hipólito da Silva, e sem tempo de providenciarem um substituto. A vaga foi preenchida por Spencer Vampré. O "esboço biográfico" desse acadêmico, publicado no n° 31 da Revista, em setembro de 1942, é por demais sucinto e pouco nos informa sobre a sua entrada para a Academia. Omite o principal, local e data da cerimônia. Todavia, das reminiscências de Ulisses Paranhos, a que já recorremos mais de uma vez, transcrevemos o tópico que bem demonstra o constante interesse do Dr. Carvalho pela Academia de seus sonhos. (Com referência a Spencer Vampré: "Esse nosso querido confrade foi recebido em sessão especial muito concorrida, sendo paraninfado pelo Dr. Carvalho, que disso fez questão fechada".) Os discursos não foram publicados. O que sabemos, ainda, pela minuciosa notícia do "O Comércio de São Paulo", é que a eleição de Vicente de Carvalho obedeceu rigorosamente ao que mandavam os Estatutos — número de votos, maioria absoluta e demais normas do processamento — tal como se observara na eleição de Spencer Vampré, então apresentada como modelo a ser imitado, sinal certo de que a Academia nascente obedecia à risca aos ditames da sua Carta Magna.

Sem sede provisória, reunindo-se onde calhava, sem Revista para publicar os estudos dos acadêmicos, viveu a Academia sem sofrer solução de continuidade.

Pontualmente, Aristeu frequentava a casa de Vicente de Carvalho; e se falhasse alguma noite, por qualquer impedimento, era certeza na manhã seguinte telefonarem da casa de Vicente para saber o que acontecera.

Ficaria incompleta a notícia desta grande amizade, se não lembrássemos que por ocasião do falecimento de Vicente de Carvalho, em 1924, o crítico literário Osório Duque Estrada, truculento fiscal das nossas letras, que a ninguém poupava, sugeriu o nome de Aristeu Seixas — "a quem não conhecia nem de cumprimento" — para substituir na Academia Brasileira o poeta do mar. "Um grande poeta só poderia ser substituído na Academia Brasileira de Letras por outro grande poeta." Aristeu Seixas não concorreu à eleição.

Algum tempo depois e ainda sob a direção do meritório Secretário-Geral, em data não especificada, Monsenhor Benedito de Sousa foi empossado na Cadeira n° 11, vaga com a morte de seu fundador, Monsenhor Francisco de Paula Rodrigues. O venerado Padre Chico faleceu a 21 de junho de 1915. Os dois discursos, de posse e recepção, foram publicados no número 34 da Revista, em junho de 1946; mais um dos guardados de Ulisses Paranhos, sempre solícito quando se tratava de desapertar René Thiollier nas suas aflições de redator sem matéria para o próximo número; e também desta vez, sem nenhum esclarecimento com respeito à solenidade, para melhor apreciarmos o seu contexto. A escolha de Ulisses Paranhos para saudar o novo acadêmico ainda foi obra do Dr. Carvalho. "A recepção de Benedito de Sousa foi uma das mais brilhantes da nossa Academia, e Carvalho presidiu-a, tendo feito uma bela e interessante oração. Foi o seu Canto de cisne". Essa oração tão aplaudida também sumiu dos arquivos da Academia, se é que em algum tempo fora ali depositada.

A campanha eleitoral desse candidato, a eleição e o festival da posse constituem o último dos doze trabalhos de Hércules do Dr. J. J. de Carvalho em prol da Academia. A esse tempo, Carvalho já transpusera a soleira da pesada velhice; mas ainda retirou energias do seu grande entusiasmo; reanimou-se e dirigiu a propaganda da campanha em curso, alcançando com facilidade a vitória para o seu candidato. A partir desse festival, que deve ter sido realizado em 1916, o nome do Dr. Joaquim José de Carvalho só aparece nos lacunosos anais da Academia três anos depois, por motivo da vaga da Cadeira n° 4, sem ocupante desde o dia 28 de janeiro de 1918, data do falecimento do seu fundador e titular, Dr. Joaquim José de Carvalho.

Por ocasião das comemorações cinquentenárias, a 27 de novembro de 1959, em penhor de reconhecimento ao idealizador da agremiação, a Academia Paulista de Letras inaugurou o retrato a óleo do seu fundador, na "Galeria J. J. de Carvalho", situada no primeiro andar do edifício. A homenagem foi promovida pelo presidente Altino Arantes, havendo discursado nessa ocasião Monsenhor Manfredo Leite (Revista n° 65, de outubro de 1960). Pouco tempo depois, o acadêmico Gofredo da Silva Telles — hoje, presidente honorário da Academia — por iniciativa própria e sem alarde nem barulheira, com todas as despesas à sua custa, mandou embutir um medalhão de bronze com a efígie do Dr. Carvalho, na face oposta da parede do retrato da Galeria, e que olha para o patamar entre as duas escadinhas comunicantes com a "Galeria de Amadeu Amaral".

Era uma dívida que ele havia assumido consigo mesmo, costumava dizer o grande acadêmico aos seus companheiros de casa, de reconhecimento pelo muito que todos nós devemos ao Dr. J. J. de Carvalho. De fato; sem a sua presença em São Paulo naquela época, e a sua inquebrantável força de vontade, até hoje não teríamos uma Academia de Letras. E aqui nos despedimos do Dr. Joaquim José de Carvalho, idealizador e criador da Academia Paulista de Letras, em luta pertinaz contra a má-vontade dos muitos e a quase indiferença das poucas pessoas do nosso meio capazes de compreender o alcance da sua iniciativa.





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