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DISCURSO DE RECEPÇÃO PELO ACADÊMICO JOSÉ RENATO NALINI
Acadêmico: Jose Gregori (in memoriam)
José Renato Nalini sauda o confrade Jose Gregori e destaca sua incansável trajetória na defesa dos direitos humanos.

Ao encerrar o seu discurso de orador da Turma do Quarto Centenário na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, o ora imortal JOSÉ GREGORI vaticinava:

“... somente assim, nossa carreira se constituirá numa fulgurante mensagem humana, numa gloriosa cruzada de libertação dos fracos, numa esplendente afirmação dos valores do Direito, não nos permitindo nunca, que por amor à Vida se percam as razões sagradas do viver" ..[1]

Cinqüenta e sete anos se passaram e quem proferiu tais palavras, tem sólidas razões para ostentar uma consciência tranqüila. A certeza do dever cumprido. Êxito em todos os empreendimentos: na vida familiar, na vida pessoal, na vida profissional, na vida política, na vida pública. Manteve-se íntegro em seu trajeto histórico, não se desviou pelas vertentes da incompletude e de ambiguidade, embora em sua fala de bacharelando já houvera constatado o declínio dos valores.
Não se entregou ao ceticismo, nem acatou a resignada postura de quem se considera incapaz de transformar o mundo. A predestinação lançou-o à verdade de que "Cada ser é só, e ninguém pode dispensar os outros, não apenas por sua utilidade - que não está em questão aqui, - mas para sua felicidade. Não há vida em grupo que nos livre do peso de nós mesmos, que nos dispense de ter uma opinião; e não existe vida “interior" que não seja como uma primeira experiência de nossas relações com o outro" .[2]

Compreendeu ainda jovem que "toda educação humana deve preparar todos para viverem pelo outro a fim de reviverem no outro" .[3]

A vida de JOSÉ GREGORI supera o que se poderia esperar de um cultor teórico dos direitos humanos, paixão que ele considera "a melhor e mais eficiente balança" [4] para alcançar o equilíbrio entre a dimensão pessoal e a social.

Longe de ser apenas simpático à causa, tornou-se um de seus mais reconhecidos e prestigiados militantes, fiel à concepção de que “o outro vem antes de mim, sou para o outro. O que o outro tem como deveres para comigo é problema dele, não meu! No que se refere à relação com o outro, sempre volto à minha frase de Dostoievski. É uma frase central dos Irmãos Karamazov: “Somos todos responsáveis por tudo e por todos, e eu mais do que os outros” .[5]

Há 54 anos - ontem completados - casava-se no Mosteiro de São Bento com D. Maria Helena, em sacramento celebrado por Monsenhor Manfredo Leite. Com essa companheira de vida e ideais construiu história. Vieram as filhas Maria Stella, Maria Filomena e Maria Cecília as quais, confidencia ele, "criaram sempre uma corrente de solidariedade à minha volta, me tornaram mais forte para superar todas as fases que vieram”[6]

Fases de vária ordem, algumas duras, severíssimas, porém necessárias à edificação de um perfil histórico de honradez inquebrantável, a constituir-se em paradigma para as atuais e futuras gerações.

Com abnegado espírito de doação e serviço, devotou-se a inúmeras causas públicas. No limiar da juventude, foi Secretário Particular do Ministro Santiago Dantas (1962/1963) e depois se elegeu Deputado Estadual (19831 1983) e assumiu a Secretaria de Estado da Participação, no governo Franco Montoro (1985/1986).

Chefiou o Gabinete dos Ministros Marcos Freire, da Reforma Agrária (fev 1 out 1988), Renato Archer, da Previdência Social (19881 1989), Marcílio Moreira Marques, da Economia, Fazenda e Planejamento (fev 11992 a out/1992) e Nelson Jobim, da Justiça. Nessa condição e período, foi Ministro de Estado Interino, Ouvidor da República, Coordenador e co-autor da Lei 9.140/95, dos desaparecidos políticos e Coordenador-Geral do I Programa Nacional de Direitos Humanos, lançado oficialmente pelo Presidente da República Fernando Henrique Cardoso em 13.5.1996.

Foi Ministro da Justiça do governo FHC, depois de ter sido Secretário Nacional de Direitos Humanos (fev /1997 a abril/2000). Serviu depois ao seu país como Embaixador em Portugal (2002/2003).

Desde janeiro de 2005 até o momento, é Secretário Municipal de Direitos Humanos da capital paulistana e preside a Comissão de Direitos Humanos da USP.

Tal currículo não foi resultado de aproximação fortuita e interesseira dos núcleos de poder. JOSÉ GREGORI é um estrategista e companheiro leal, de fidelíssima coerência a ideais cuja nobreza o credenciaram a atingir estes e muitos outros postos na República. República que ajudou a edificar, pois em sua casa surgiu a candidatura à Presidência que mudou o Brasil e propiciou as mudanças hoje difusamente colhidas por tantos .[7]

Sua inspiração nunca foi a conquista do poder. Teria condições de aspirar a tanto. Moveu-o o espírito cristão de reduzir as iniqüidades de uma sociedade profundamente desigual. Desfraldou a bandeira capaz de atenuar as diferenças que fazem do princípio da isonomia uma proclamação retórica retumbante e estéril.

Vivencia por convicção o tema fundamental dos Direitos Humanos em várias de suas dimensões. Vivência que resultou na função de Conselheiro da Cátedra da UNESCO-USP de Educação para a Paz, Direitos Humanos, Democracia e Tolerância, obtenção de muitos prêmios e reconhecimento nacional e internacional de seu protagonismo. Como exemplo, o Governo do Estado de Pernambuco outorga a láurea "JOSÉ GREGORI" aos policiais que, a cada ano, se destacam por seu respeito concreto aos direitos humanos.

Excelente articulador, em luta permanente muito antes dos albores da abertura democrática, personagem presente aos mais relevantes acontecimentos da nação, atuou como protagonista, agente da História e da transformação da sociedade, não como inerte espectador de fatos dos quais não detinha controle.

Se existe um brasileiro que levou a sério e coerentemente a compreensão das obrigações relacionadas ao que hoje se denomina o enfoque dos direitos humanos, este homem se chama JOSÉ GREGORI.

Sensível e privilegiado com uma formação ética aprimorada, viu-se atraído e tornou-se apóstolo da ideia-força dos direitos fundamentais. Convenceu-se "de que qualquer pessoa, em qualquer lugar no mundo, independentemente de nacionalidade, local de domicílio, cor, classe, casta ou comunidade, possui alguns direitos básicos que os outros devem respeitar. O grande apelo moral dos direitos humanos tem sido usado para várias finalidades, desde a resistência à tortura, à prisão arbitrária e à discriminação racial até a exigência de eliminar a fome, a miséria e a falta de assistência médica em todo o planeta” .[8]

Absorveu aquilo que entendeu evidente, envergou a roupagem humanística e resistiu aos golpes de suposta fragilidade ou sentimentalismo da fundamentação conceitual dos direitos humanos. Não o perturbou o contraste agudo entre o uso retórico da formulação e as dúvidas intelectuais sobre sua solidez. Compreensível não queira "perder muito tempo tentando fornecer justificações conceituais para convencer os teóricos céticos, em vista da óbvia urgência em reagir contra terríveis privações que assolam o mundo. Essa atitude engajada tem obtido resultados, pois tem possibilitado o uso imediato da idéia de direitos humanos, bastante atraente em si, para lutar contra a opressão intensa ou a grande miséria, sem precisar esperar o esclarecimento da atmosfera teórica" .[9] É-lhe suficiente reafirmar o seu credo pessoal: "Encarar os ideais como alavancas de ação, no íntimo, foi sempre o que me inspirou na vida" .[10]

Primícia de nossa espécie, engajado na missão de resgate da dignidade do semelhante, "encontra nessa situação ao mesmo tempo um motivo de inquietude e um motivo de coragem. Na verdade, os dois motivos são apenas um. Porque a inquietude é vigilância, é a vontade de julgar, de saber o que se faz e o que se propõe" .[11] E "a coragem consiste em referir-se a si e aos outros de modo que, através de todas as diferenças das situações físicas e sociais, todos deixem transparecer em sua própria conduta e em suas próprias relações a mesma chama, que faz com que os reconheçamos, que tenhamos necessidade de seu assentimento ou de sua crítica, que tenhamos um destino comum" .[12]
Só assim se poderá aspirar a chegada da sociedade aberta, “em que os indivíduos podem agir e lutar para obter condições humanas melhores; é aquela em que os indivíduos, mediante determinadas instituições, podem controlar os governantes - e eventualmente também depô-Ios - propondo não palingêneses milagrosas, mas reformas parciais, assim como a ciência não visa conhecer em bloco toda a realidade, mas se põe problemas específicos" .[13]

É por tudo isso que seu nome honrado de apóstolo dos direitos humanos é reiteradamente lembrado como natural coordenador ou ao menos integrante obrigatório da recente Comissão da Verdade.

Sugestivo nome: Comissão da Verdade. É doloroso, quanta vez, defrontar-se o homem com a verdade. “A verdade causa repugnância à nossa natureza, mas o erro não, e isso por um motivo bem simples: a verdade exige que nos reconheçamos como seres limitados; o erro nos acalenta na idéia de que, de um modo ou de outro, somos infinitos" .[14]

Esta é outra causa que vale a pena, confrade JOSÉ GREGORI, tão imbricada com o testemunho de sua existência. É verdade que o Brasil precisa abrir os olhos, enquanto os seus estiveram permanentemente abertos. “A verdade geral e abstrata é o mais precioso de todos os bens. Sem ela, o homem é cego; ela é o olho da razão. Por meio dela o homem aprende a se conduzir, a ser o que deve ser, a fazer o que deve fazer, a caminhar rumo a sua verdadeira finalidade" .[15]

A verdade é que JOSÉ GREGORI chega à Academia Paulista de Letras precedido da melhor fama, acolitado por seus imensos méritos, cuja culminância vem ornada por singeleza e humildade. No ritual da visita após à expressiva eleição, singelamente agradeceu a seus pares e disponibilizou seu talento às causas acadêmicas. Causas boas, simples e verdadeiras: estimular o cultivo do idioma, a escrita e, principalmente, a leitura.

Agora, de verdade, querido confrade José Gregori, é-lhe conferido o reconhecimento da possível imortalidade. "Verdade" é não somente conformidade, mas valor. Os que acreditam possuí-Ia a possuem; só eles” .[16]

A Academia Paulista de Letras, instituição centenária e presente na vida intelectual da gente bandeirante, se orgulha de tê-Io como seu membro efetivo e vitalício. Esta é sua casa!

A Casa que passa a contar com a presença perpétua desse caudilho de si mesmo, de quem se sente feliz por se reencontrar consigo mesmo, após um protagonismo tão denso e de se reconhecer no reencontro.

Estamos honrados e felizes por recebê-lo!

[1]GREGORI, José, Os Sonhos que Alimentam a Vida, São Paulo, Jaboticaba, 2009, p. 4I8.
[2]MERLEAU-PONTY, Maurice, Conversas - 1948, São Paulo, Martins Fontes, 2004, p.50.
[3]COMTE, Auguste, in GRATELOUP, Leon-Louis, Dicionário Filosófico de Citações, São Paulo, Martins Fontes, 2004, p.220.
[4]GREGORI, José, op.cit. idem, p. 411.
[5]LÉVINAS, Emmanuel, Quem é o senhor?, in GRATELOUP, Leon-Louis, op.cit., idem, p.222.
[6] GREGORI, José, op.cit., idem, p.213.
[7]Depoimento constante do Projeto Memória do Movimento Estudantil, Entrevistadora Ana Paula Goulart, revisão Carolina Tannure, entrevista de 17.6.2005, p.15, disponível na internet, acesso em 10.11.2011.
[8] SEN, Amartya, A idéia de justiça, São Paulo, Companhia das Letras, 2011, p. 390.
[9] SEN, Amartya, op.cit., idem, p. 391/392.
[10]GREGORI, José, op.cit., idem, ibidem.
[11MERLEAU-PONTY, Maurice, Conversas - 1948, São Paulo, Martins Fontes, 2004, p.51.
[12] MERLEAY-PONTY, Maurice, idem, ibidem.
[13]ROVIGHI, Sovia Vanni, Historia da Filosofia Contemporânea - do século XIX à neoescolástica, 3a edição, São Paulo, Loyola, outubro de 2004, p. 501.
[14]GOETHE, Pensamentos, in GRATELOUP, Leon-Louis, op.cit., idem, p.324.
[15]ROUSSEAU, Jean-Jacques, Devaneios do Caminhante Solitário, in GRATELOUP, Leon-Louis, op.cit., idem, p.329/330.
[16]VALÉRY, Paul, Maus pensamentos e outros, in GRATELOUP, Leon-Louis, op.cit., idem, p.330



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