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DISCURSO DE RECEPÇÃO PELO ACADÊMICO ERNESTO DE MORAES LEME
Acadêmico: Paulo Nogueira Filho
"A cadeira em que hoje vos assentais dignamente há de ficar marcada para sempre como sendo aquela que, na sucessão de seus ocupantes, mantém, mais que todas as outras, a continuidade de uma tradição."

Dos duzentos e trinta e um estudantes que convosco iniciaram o curso jurídico, em 1915, quatro aqui se encontram para receber-vos neste sodalício: eu próprio, Cândido Motta Filho, José Soares de Mello e Vicente de Paulo Vicente de Azevedo. Todos nós professores de direito. Um antigo ministro do Supremo Tribunal, dois outros desembargadores aposentados do Tribunal de Justiça. Vicente de Azevedo constituía convosco, Daphnis de Freitas Valle, Dagoberto de Pádua Salles e Rogério de Freitas, o grupo de estudos a que se apelidou o dos cinco jurisconsultos romanos, de cujas vestes os ardorosos acadêmicos se revestiam: Papiniano, Gaio, Paulo, Ulpiano e Modestino...
Essa amizade fraternal permaneceu indestrutível pelos anos afora. Não é sem razão que Epicuro coloca a amizade acima das outras virtudes. Saint-Évremond dá-lhe preeminência sobre a própria justiça: esta é obra dos homens; aquela deriva da natureza. "Sans la confiance d'un ami, la félicité du ciel serait ennuyeuse."
Não são esses, por certo, os vossos únicos amigos na amável Companhia. Contais aqui uma legião de admiradores e, entre estes, quatro verdadeiros irmãos: Alfredo Ellis, o voluntário; Aureliano Leite, o historiador; Guilherme de Almeida, o poeta; Ibrahim Nobre, o tribuno da Revolução - divino milagre que converteu quinze milhões de paulistas em um só coração e uma só alma: cor uno et anima una...

CONTINUIDADE DE UMA TRADIÇÃO

A cadeira em que hoje vos assentais dignamente há de ficar marcada para sempre como sendo aquela que, na sucessão de seus ocupantes, mantém, mais que todas as outras, a continuidade de uma tradição. A começar pelo patrono, o brigadeiro José Joaquim Machado de Oliveira, coberto de glórias na Campanha Cisplatina e que nos legou o soberbo Quadro Histórico doa Província de São Paulo. Seu filho Brasílio Machado, mestre de direito e incomparável tribuno, passa a lâmpada sagrada às mãos de Alcântara Machado, a quem sucede nesta Academia o vosso antecessor José Carlos de Macedo Soares.
Ocupante, na Faculdade de Direito, da mesma cátedra que Brasílio ilustrou, não cheguei a conhecê-lo pessoalmente: ao iniciarmos o nosso curso, ele presidia no Rio de Janeiro ao Conselho Superior de Ensino e nesse posto veio a falecer, em 1919. Alcântara Machado, todavia, foi meu colega de Congregação e sobretudo por estarmos filiados ao mesmo Partido, o Partido Constitucionalista, tive oportunidade de encontrá-lo muitas vezes. A José Carlos de Macedo Soares vim a conhecer em 1924,
quando ele exercia as funções de presidente da Associação Comercial. Éramos amigos. Presidente perpétuo do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, foi, em 1939, o primeiro signatário da proposta que me elevou
a sócio honorário daquela instituição.
Em nome da Congregação da Faculdade de Direito, tracei o perfil de Brasílio, como professor, como orador e como poeta, nas comemorações do centenário de seu nascimento, em 1948. Sabia de cor, aos doze anos, a arrebatadora oração com que saudou a Carlos Gomes, em 1880. Maior que ele, porém, como escritor, era seu filho José de Alcântara Machado de Oliveira. Ignoro se cultivou as Musas com freqüência. Mas, a primorosa tradução do If, de Rudyard Kipling, que dele conheço, mostra que herdou o engenho poético de seu pai. Mesmo a peroração de seu discurso na Academia Brasileira é um verdadeiro poema em prosa, que Martins Fontes condensou no admirável soneto com que encerrais vosso esplêndido discurso.
Político, diplomata, historiador, José Carlos de Macedo Soares figura na história paulista como um homem padrão. Participou, com Alcântara Machado, da Assembléia Nacional Constituinte de 1934. E cumpre salientar, como o fizestes com rara eloqüência, o papel por ele desempenhado ao tempo da Revolução de 1924, quando a nossa Capital esteve ocupada por forças revolucionárias, obrigado o Governo do Estado a aguardar fora dela o instante do retorno.

SERVIDOR DA PÁTRIA

Vede como nenhuma cadeira mais adequada do que essa poderia caber-vos nesta Academia. Sois um devotado servidor da Pátria e um escritor de magníficos atributos. Constituís sem dúvida, com Antônio Carlos de Abreu Sodré, de quem ainda há pouco o ministro Prado Kelly traçou o retrato de corpo inteiro, as duas maiores vocações políticas de minha geração. Tombou o nosso amigo no momento exato em que se iniciava no país a restauração democrática. Mas, a bandeira que empunhava continuou a tremular, vitoriosa, nas mãos de seus companheiros de ideal.
Vivemos, nos gerais do velho convento de São Francisco, o drama da Primeira Guerra Mundial. A sombra das Arcadas, o verbo de Olavo Bilac acordou as consciências adormecidas, e os estudantes, inscritos no voluntariado, deram começo à fase do serviço militar obrigatório. Constitui-se na Faculdade o Batalhão Acadêmico, atento à voz de comando do tenente José Pessoa. Funda-se a Liga Nacionalista, dissolvida pelo presidente Artur Bernardes, logo após o término da Revolução de 1924.


PRIMEIROS ENSAIOS LITERÁRIOS

Por vossa iniciativa, instala-se o Grêmio Literário Álvares de Azevedo, presidido por Vicente de Paulo Vicente de Azevedo e onde promissores jovens fazem os seus primeiros ensaios no campo das letras. Entre estes, Vicente de Azevedo, Cesar Salgado, Couto de Barros, Tácito de Almeida, Ruy Ribeiro Conto, Paulo Nogueira Filho ...
Tive em mãos o livro de atas das cinqüenta e quatro sessões realizadas. Na sessão preparatória de 5 de abril de 1916, recebíeis significativa homenagem, por terdes sido o criador do Grêmio, cujos Estatutos assim rezavam, no art. 1º: "O Grêmio Literário Álvares de Azevedo, com sede nesta Capital, tem por fins a cultura da literatura e a
defesa da excelência da língua portuguesa." Tínheis então 17 anos.
4 meses e 19 dias de idade ...
Foi nessa agremiação que proferistes, a 1° de agosto de 1916, a vossa conferência sobre O Clube Republicano de Campinas. Os temas históricos desde então vos seduziam. E cumpre assinalar que foi vosso avô, José Paulino Nogueira, quem declarou na Câmara Municipal daquela cidade, na qualidade de presidente, proclamada a República.
Logo após, tivestes outra iniciativa patriótica, propondo, em sessão do Grêmio Álvares de Azevedo, a criação de uma escola noturna de primeiras letras, "a ser mantida a cargo exclusivo dos estudantes". Coube-vos a tarefa de levar a efeito essa tentativa, coadjuvado por Antônio Vicente de Azevedo. E, como assinalastes em vosso relatório,
"no início afluíram professores: faltavam alunos"... Mas, a pertinácia dos moços triunfou: analfabetos de todas as idades povoaram as salas de aula da Escola Noturna Álvares de Azevedo... (Conf. Ideais e lutas
de um burguês progressista: o Partido Democrático c a Revolução de
1930, 2ª edição, I, pág. 63).

VOCAÇÃO POLÍTICA

Aluno do 3º ano da Faculdade, em 1917, (não havíeis ainda completado 19 anos), começastes a vos interessar de perto pela política. O sangue de José Paulino e de Paulo Nogueira atuava decisivamente em vós... Iniciando-vos pela "política acadêmica", fostes eleito no ano seguinte primeiro secretário do Centro Acadêmico XI de Agosto. Em 1919, Antônio Carlos de Abreu Sodré seria o seu presidente.
Em outubro de 1917, o Brasil declara guerra à Alemanha. Organiza-se em São Paulo o Congresso da Mocidade Brasileira, que teve como presidente o sábio Luís Pereira Barreto. Entre os membros da Comissão Executiva, destaca-se o acadêmico de medicina Ernesto ele Souza Campos. Falam na instalação do Congresso Altino Arantes, presidente do Estado e Antônio Pereira Lima, presidente do Centro Acadêmico XI de Agosto. Foi sem dúvida a sua posição nesse Congresso que determinou a candidatura de Luís Pereira Barreto ao Senado Estadual, em 1918, opondo-se ao cônego Valois de Castro, nosso antigo examinador de História e Geografia.
A mocidade acadêmica toma a peito aquela candidatura, secundada
pelo prestígio d' "O Estado de São Paulo", onde a pena cintilante de Júlio Mesquita traça dez históricos editoriais. No Manifesto da Comissão Acadêmica, a 18 ele maio ele 1918, encontramos desde logo a vossa assinatura. E entre os jovens que formaram as primeiras caravanas de propaganda, estavam convosco outros dois confrades nossos: José Soares de Mello e Lourenço Filho.

DOBRANDO A ESQUERDA

Em janeiro de 1919, falece o Conselheiro Rodrigues Alves, presidente eleito da República. As forças políticas governamentais lançam o nome de Epitácio Pessoa para a presidência. Contra essa candidatura surge a ele Ruy Barbosa, que realiza, nos escassos dias que precedem ao pleito, uma campanha memorável.
Estivestes, como tinha de ser, entre os entusiastas dessa candidatura. Referis, em vosso livro de memórias, o que foram nesse instante as admiráveis notas de Júlio Mesquita sobre a questão social, tema da conferência de Ruy no Teatro Lírico, do Rio de Janeiro. Muitos anos decorridos, orando na Casa de Ruy Barbosa, na data do nascimento do Mestre, em sessão presidida pelo presidente da República, Sr. Getúlio Vargas, este confidenciava ao ministro da Educação e Cultura, Simões Filho, enquanto eu falava: "O professor Leme está demonstrando que Ruy foi um pioneiro, no campo elo Direito elo Trabalho..."
Já ao findar vosso curso na Faculdade, foi a campanha pelo voto secreto que vos empolgou. Logo após, a vida prática vos chamava, iniciando a advocacia em companhia de nosso colega e amigo queridíssimo, José Bennaton Prado. O escritório apresentava-se florescente; mas, nele não perseverastes. Decisivamente, o foro não vos atraía.
Nascido em berço de ouro, em lar de família tradicional e abastada, confessais, nada vos impedia levásseis a vida sibarita de um simples plutocrata. E acrescentais: «Preferi, no entanto, a estrada não menos real. Dobrei à esquerda, conduzindo-me aonde estou, a entrar, talvez, na Canaã dos meus ideais, levado pelo poder incoercível de minha vocação de servir à causa pública. Força irreprimível do Destino!" (Op. cit., I, 114.)




SEMANA DE ARTE MODERNA

O vosso pendor pela política teria a possibilidade de vos levar às mais altas posições, se acaso vos filiásseis ao Partido do Governo. A isso renunciastes. E quando os escritores jovens se congregaram em torno de Graça Aranha, inaugurando a Semana de Arte Moderna, em 1922, com eles formastes. Eu fiquei, como simples espectador, do outro lado da trincheira, entre os "gregos" de Coelho Neto ...
Já Alceu Amoroso Lima previa, em 1917, a eclosão desse movimento literário em nossa Capital: "... a mesma lei de história, que tem encontrado entre nós, como vemos, confirmação plena, nos autoriza a prever que o futuro movimento intelectual do Brasil vai irradiar de São Paulo. Vivendo em pleno germinar da idéia regionalista, desfrutando metade da fortuna nacional, possuindo uma aristocracia da terra, tendo herdado os seus filhos a altivez e o bom senso dos "paulistas" de Piratininga, prepara-se São Paulo para a realeza da República..." E continuava: "O século XVI pertenceu a Pernambuco, o XVII à Bahia, o XVIII a Minas Gerais, o XIX ao Rio de Janeiro, o século XX é o
século de São Paulo." (Apud Wilson Martins, O Modernismo, pág. 50).
Houve em São Paulo, é evidente, uma Revolução literária. A ela se filiaram os mais belos talentos da Paulicéia. Não só entre os moços. Basta lembrar nesse movimento as figuras de Graça Aranha, Paulo Prado e René Thiollier. Três grandes poetas desta Casa - Guilherme de Almeida, Menotti del Picchia e· Cassiano Ricardo, foram homens desse instante, ao lado de Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Sérgio Milliet, Plínio Salgado e outros mais. Oliveira Ribeiro Neto era a esse tempo menino de calças curtas ...
Dona Olívia Guedes Penteado, que abriu os seus salões para os novos, foi por estes um dia homenageada, em um restaurante campestre de Santo Amaro, "com o grande salão rústico ornamentado de imensas telas representando cada qual, em enigma pitoresco, o nome de um convidado ou de um "hominho". Formava o grupo dos "hominhos", como refere Guilherme de Almeida, "um clã sem distintivo, sem brasão, mas... com um hino". (Conf. "O Estado de S. Paulo", de 27 de fevereiro de 1960.) Hino esse cuja música e cujos versos bizarros se deveram a Mário de Andrade:

Nós somos hominhos do Grupo Gambá,
Do grupo Gambá, do grupo Gambá...

cuja compreensão apenas poderia caber aos iniciados... É o próprio Guilherme, contudo, quem confessa: As coisas que não têm "por que" são as únicas que persistem. Pois intrigam ..."

IRRADIAÇÃO DO MODERNISMO

Fazíeis também parte desse grupo, Sr. Paulo Nogueira Filho e, convosco, além de Mário, Oswald, Guilherme, algumas das mais belas inteligências dessa geração: Antônio Carlos Couto de Barros, Sérgio Milliet, Rubens Borba Alves de Moraes, Tácito de Almeida, Vicente de Paulo Vicente de Azevedo, José Mariano de Camargo Aranha, Antônio Vicente de Azevedo.
A esse tempo, o movimento modernista já se havia irradiado para o Rio de Janeiro, levado pelo entusiasmo de Ribeiro Couto, Ronald de Carvalho, Renato de Almeida, Di Cavalcanti. Surgem suas diferenciações, desde o "primitivismo" de Oswald de Andrade ao "verde-amarelismo" de Cassiano Ricardo. É quando irrompe, em plena Academia Brasileira de Letras, o verbo atroador de Graça Aranha, no anseio de que a Academia se transforme, admitindo nela "as coisas desta terra informe, paradoxal, violenta, todas as forças ocultas do nosso caos. São elas que não permitem à língua estratificar-se e que nos afastam do falar português e dão à linguagem brasileira este maravilhoso encanto de aluvião, do esplendor solar, que a tornam a única expressão feliz da nossa espiritualidade coletiva..."
O esteta de Canaã estava profundamente enganado. A Academia Brasileira jamais negou esse anseio de renovação. Quando se constituiu, procurou um equilíbrio entre antigos e modernos. Não se lhe poderia increpar, como lembrava Joaquim Nabuco, fosse ela "um gabinete de antigualhas."
Elegendo a Paulo Barreto aos vinte e nove anos, provava a Academia não ter os preconceitos de que despeitados a acusavam. E ao receber o novo acadêmico, em sessão de 12 de agosto de 1910, assinalava Coelho Neto: "A Academia acaba de abrir as suas portas aos novos, bom é que assim seja para que se não insista em dizer, que, nesta Casa, onde assistem - e excluo-me da referência - os espíritos superiores da nossa literatura, tudo é gélido e retransido e pelos cantos enconchadas em sono veternoso, jazem ancianias tórpidas que, ao estremunharem, resmungam conceitos serôdios, esmoem versos cediços, bradam contra a irreverência dos moços e, cabeceando, recaem na madorna arrepanhando às gelhas e aos perigalhos as pontas da túnica. Bem é que venha a mocidade ver como aqui se vive e trabalha, e trazer-nos o seu ardor, o sol do espírito, que é o entusiasmo e o sonho que é a flor que nos perfuma e alegra a vida árida e triste. E a Mocidade aí está."




REVOLUÇÃO LITERÁRIA

Dos cinco acadêmicos de São Paulo com assento na Casa de Machado de Assis, nada menos de quatro - Guilherme, Menotti, Cassiano, Motta Filho, são homens da Revolução literária de 1922. E nesta Casa, como na Academia Mater, jamais existiu preconceito de qualquer espécie. Bem o referis em vosso formoso discurso: "A Academia Paulista é nisso um modelo que nos orgulha. Em caso algum, exerceu ou exerce a mais leve pressão moral sobre qualquer de seus membros. Atenta aos remuos sociais no campo das letras, tem franqueadas suas portas sem discriminações facciosas. Recebe os revolucionários e os inovadores, quando julgados representantes autênticos de correntes ponderáveis. O resultado aí está, registrado no arquivo das obras dos que passaram e dos que passam pelo seu umbral acolhedor."
Entendeis que a revolução literária é uma conseqüência da revolução social. "Recrudescem, em todas as latitudes do globo, processos de violência que assustam, fustigando os vagalhões da insurreição todas as terras, sem excluir a nossa." Concluís não ser útil, nem possível, "deter esse maravilhoso avanço, que vai oferecendo, a massas cada vez mais densas, melhores meios de prolongar e suavizar a existência, garantindo maior conforto e segurança, numa estupenda afirmação da soberania do Homem no Universo conhecido".

IMPRESSIONANTE MISSIVA

Estes vossos conceitos não são de hoje. Vêm de longe. Há quarenta e seis anos, o jovem bacharel tomava contato com a realidade de nossa vida rural, e da fazenda São Quirino dirigistes a vossos pais, que se encontravam na Europa e tomando como pseudônimo o nome de vosso filho mais velho, então com oito meses de idade, uma impressionante missiva, cujos tópicos essenciais vão aqui transcritos: "Na fazenda, às vezes que passeio com mamãe, encontro pelos caminhos miseráveis crianças, algumas quase totalmente despidas. Mamãe está fazendo muitas roupinhas para esses coitadinhos, mas papai parece que não dá importância a esses trabalhos e diz mesmo que isso não passa de uma filantropia aparente, porque, no fundo, isso serve apenas para a comprovação de um estado de coisas desumano. Entende papai que aquela gente, a que mamãe vai dar os vestidinhos como esmola, é boa e nada mal fez aos outros, antes pelo contrário, graças a ela é que se edificaram os palácios onde moramos nós, os meninos de carros bonitos. Esta injustiça clamorosa me revolta. Por que razão hei de eu ter tanta coisa boa e bonita, enquanto os esfarrapados daqui que, como eu, não têm culpa de terem vindo ao mundo, vivem na mais negra miséria?" (Conf. Ideais e lutas de um burguês progressista, cit., I, pág. 118.)
Essa página comovente é o vosso autêntico retrato. A abundância de recursos de vossa família não vos impediu jamais atentásseis para a situação dos humildes e desamparados.

REFORMA SOCIAL DA EMPRESA

Disso destes prova ainda em 1922, ao elaborardes o Regulamento Interno da Companhia de Seda Santa Branca, estabelecendo a participação dos operários na produção e nos lucros líquidos da empresa, assim como o salário mínimo, o qual, mesmo quando não atingido, na execução das tarefas, serviria, contudo, de base para o pagamento mensal. Dessa maneira vos antecipastes, quase um decênio, à legislação trabalhista, que teve seu maior desenvolvimento no Brasil após a Revolução de 1930.
Consoante o sistema taylorista, introduzistes na sociedade as normas do salário progressivo, a racionalização na distribuição das matérias-primas, assim como a especialização nas atividades dos mestres e contramestres. Revelastes-vos, assim, em plena juventude, o completo homem de empresa, cujas idéias, na idade madura, se corporificaram no erudito volume Autogestão, com que ides brindar em breve os estudiosos desse problema.
Já em 1924, em projeto de reorganização da Companhia Santa Branca, podíeis incorporar estes sadios princípios: "Primo, dos lucros, além das porcentagens normais para amortização e reservas, seriam deduzidos 10 para dividendos; o restante seria distribuído em partes iguais entre o capital e o trabalho; secundo, da parte relativa ao trabalho, 40 caberiam a elementos de direção e os restantes 60 a elementos de serviços diversos, sendo 15 aos empregados; tertio, os salários dos diretores técnicos seriam, a partir de um mínimo estabelecido, igualmente proporcionais aos lucros."

NASCE O PARTIDO DEMOCRÁTICO

Retornáveis da Europa, quando estourou em São Paulo o levante de 5 de julho de 1924, que poria em especial relevo, no amparo à população civil, as figuras de dois beneméritos paulistas: o prefeito Firmiano Pinto e o presidente da Associação Comercial, José Carlos de Macedo Soares.
Um mês e pouco após vosso regresso, reunia-se em vossa casa um grupo de moços idealistas, esboçando a criação de um movimento político, que viria a ser o germe do Partido Democrático. Em casa do professor Reynaldo Porchat, quando da manifestação de' solidariedade por este recebida, em face de sua renúncia à cadeira de senador, prosseguiram os entendimentos. Nova reunião se efetuou no escritório de Prudente de Moraes Neto, à Rua Quinze de Novembro. Lá nasceu a comissão, de que participastes, a fim de levar a efeito a organização do Partido, que surgiu a 24 de fevereiro de 1926, sob a presidência do Conselheiro Antônio Prado. A 14 de julho de 1927 circulava, sob a vossa direção, o primeiro número do "Diário Nacional".

LABOR HERCÚLEO

Secretário-Geral do Partido Democrático, somente os que viveram esses dias memoráveis podem aquilatar devidamente o que foi vosso labor indefesso. A vossa tarefa, na organização do Partido, foi hercúlea. Fostes o mentor das caravanas de propaganda, que percorreram todo o Estado, numa pregação cívica que produziu os mais sadios resultados no ânimo da população. E, nos pleitos eleitorais que se feriram, os fiscais do Partido, espalhados pelas várias secções da Capital, tinham sempre, à hora exata, com o embrulho de lanche, uma garrafa de guaraná ...
Desde o primeiro momento fostes, na parte administrativa, a alma do Partido Democrático. A 21 de março de 1927, no salão das Classes Laboriosas, à Rua do Carmo, oitenta e sete delegações aprovavam os Estatutos dessa agremiação partidária e, no dia seguinte, pelo voto secreto, os convencionais elegiam o Diretório, o Conselho Consultivo e os primeiros candidatos do Partido à Câmara Federal... Dos quatro Em vosso entusiasmo de patriota, imaginastes estender desde logo a ação do nosso Partido por todo o país. O relatório que apresentastes ao seu II Congresso contém este trecho expressivo: "Caminha o nosso movimento a passos de gigante e mais cedo do que esperamos tremerá, como disse Luís Aranha, o solo pátrio ao tropel de um grande partido nacional. Os nossos corações batem a um ritmo novo, ritmo de uma nova esperança, ritmo de um novo ideal..." A 21 de setembro de 1927, transformava-se em realidade a vossa aspiração, constituindo-se no Rio de Janeiro o Partido Democrático Nacional, sob a presidência de honra do Conselheiro Antônio Prado e a direção provisória de Assis Brasil, Paulo de Morais Barros, Adolfo Bergamini, Francisco Morato, Marrey Júnior, Plínio Casado e Batista Luzardo.

DIÁRIO NACIONAL

Ao lado do Partido, cooperando bravamente em sua tarefa de
evangelização, estava o «Diário Nacional», criação integralmente vossa e
cuja direção confiastes a um poeta e jornalista de escol, Amadeu Amaral,
a cujo lado se encontrava, nas funções de secretário, o talentoso jovem
Pedro Ferraz do Amaral.
O vosso esforço e devotamento foram devidamente reconhecidos pelos vossos companheiros, na significativa homenagem que vos prestaram a 30 de outubro desse ano. Éreis, dizia Gama Cerqueira, uma espécie de Sir Eric Drummond, pelo vosso poder de organização. E acrescentava em vosso louvor, na saudação que vos endereçou: "Por seu espírito metódico e cuidadoso, a matéria-prima das deliberações do Diretório Central já aparece cada dia semimanufaturada, e ele de tal modo se desdobra que, às vezes, a gente duvida se é um homem ou vários homens..."
Em plena luta democrática, fostes condenado, por delito de imprensa, a quatro meses de prisão. A solidariedade que então recebestes
dos vossos amigos foi deveras emocionante. O venerando Conselheiro Antônio Prado assim se dirigia ao denodado combatente: "Sua prisão
enobrece a imprensa e aumenta a soma dos importantes serviços que
vem prestando à causa do nosso Partido." E quando o Diretório Central, o Conselho Consultivo e Os Diretórios Distritais vos festejaram em vossa residência, a vossa glorificação foi completa, no momento em que nosso Mestre Cardoso de Mello Neto assim se dirigiu à vossa Mãe e à vossa Esposa: "Podem a filha de José Paulino e a neta de Campos Salles ficar certas de que aqui está um homem cujo coração não aninha ódios, cujo caráter é límpido, mas cuja ação é destemerosa, como carece ser, no momento histórico que atravessamos, a de todos aqueles que amam deveras esta grande terra, que cresceu e prosperou à sombra da liberdade e dentro dela há de viver. Porque como inútil é procurar sustar a pedra que rola da montanha, vão é o esforço de procurar sufocar as tradições liberais do Brasil..." (Conf. Ideais e lutas de um burguês progressista, cit., I, pág. 245.)
A iníqua sentença não tardou a ser reformada pelo Tribunal de Justiça, fundado em parecer do 5° promotor público da Capital, Dr. José Carlos de Ataliba Nogueira, confirmado pelo Procurador-Geral do Estado, Ministro Manuel da Costa Manso. E prosseguistes denodadamente em vossa luta, desdobrando-vos na ação que exerci eis como Secretário-Geral do Partido Democrático e diretor do «Diário Nacional», funções essas já então acrescidas com as responsabilidades de chefe de um setor da preparação revolucionária.

NA FOGUEIRA REVOLUCIONÁRIA

O Congresso da Aliança Libertadora, do Rio Grande do Sul, levara aos pampas uma delegação do nosso Partido e dela participáveis. No Congresso de Bagé, onde nasceria o Partido Libertador, Maurício de Lacerda e Waldemar Ferreira proferem inflamados discursos. Em meio aos aplausos que coroaram essas orações, surge a voz serena de Assis Brasil a proclamar: "Não são as armas que vencem, mas sim, o espírito. As armas servem apenas para estimular o espírito..."
Encerrara-se o conclave. Na manhã seguinte, uma surpresa vos
aguardava. Já antes do amanhecer, começastes a ouvir um tropel de cavalos, em galope incessante. O rumor crescia a cada momento. E quando os primeiros clarões do sol iluminaram a cena, vistes na rua uma luzida cavalgada, com as árdegas montarias assustadas, ante o descarregar de armas de fogo: eram as salvas com que os gaúchos saudavam os seus hóspedes... Já não mais dezenas, mas, centenas de lenços vermelhos coloriam o ambiente, na escolta dos maragatos aos seus irmãos de ideal, que deviam participar de uma festa campestre... Eram os pródromos da revolução, que não tardaria a ser desencadeada.
Foi em Cêrro Formoso que Assis Brasil vos cometeu a incumbência de trazer, aos companheiros de São Paulo, a notícia da Revolução. Seguiram-se vossos entendimentos com Miguel Costa, Newton Estillac Leal, João Alberto e Raul Pilla. Em Buenos Aires, Luís Carlos Prestes vos desencantou, conquistado para sempre pela doutrina marxista.

CÂMARA FRIGORÍFICA

Retornando a São Paulo, cheio de entusiasmo, os chefes democráticos vos decepcionaram. "Após um mês e meio, passado ao pé da fogueira revolucionária do Prata", escrevestes, "vim a cair em São Paulo, numa câmara frigorífica..." (Conf. Ideais e lutas de um burguês progressista, cit., I, pág. 237.)
Eu próprio, sem a projeção e a influência dos demais companheiros, participava desse pacifismo. A melhor demonstração disso se encontra na conferência por mim proferida no Instituto da Ordem dos Advogados Brasileiros, do Rio de Janeiro, aos 27 de outubro de 1929, sobre O Direito de Revolução, em que concluía citando a frase de Gustave Le Bon: "Não se fazem experiências numa sociedade, como nas máquinas de um laboratório." (Conf. Eduardo Espínola, Pandectas Brasileiras, VII, pág. 197.)

NOVA ERA NA HISTÓRIA

A 3 de outubro de 1930, explode no Sul o movimento revolucionário. Foram vinte dias de angústia e expectativa, até que no dia 24 o levante que se verificou no Rio de Janeiro, sob a chefia do general Tasso Fragoso, pôs termo à luta, inaugurando-se no Brasil, com a Junta Militar que assumiu o Governo e a ditadura de Getúlio Vargas, nova era na história de nosso país. Chegastes com as tropas vindas do Sul e nosso primeiro encontro se deu no Palácio da Cidade, sede do Governo, onde aguardávamos a frustrada posse do professor Francisco Morato na Chefia do Executivo Estadual.
Iniciou-se, com o tenente João Alberto Lins de Barros, o Governo dos quarenta dias. Por indicação do ministro da Fazenda, o venerando paulista Dr. José Maria Whitaker, fostes nomeado diretor da Comissão Central de Compras, cujo programa de ação era dos mais relevantes. Vosso pai registra a ocorrência, em seu interessante Diário. (Conf. Paulo de Almeida Nogueira, Minha Vida (Diário de 1893 a 1951), p. 395.)

TRAIÇÃO

Não tardou, porém, para que São Paulo fosse reduzido pela ditadura à triste condição de terra conquistada. A ação do governo central, através seu delegado em São Paulo, foi se convertendo em situação atentatória ao brio dos paulistas. Na feliz imagem que criastes, a política getuliana constituía "um vasto tabuleiro, sustentado por um tripé. No primeiro esteio, as forças armadas, permanecendo nos quartéis, os oficiais apolíticos, os tarimbeiros, os tropeiros, os legalistas de todas as "legalidades"; fora das fileiras, aquinhoados com sinecuras civis, os militares de vocação política, agitadores de temperamento, aspirantes ao exercício do mando governamental nos seus diversos escalões. No segundo tripé, toda a engrenagem montada para o atendimento e propaganda das reivindicações trabalhistas, com amplitude e cadência revolucionárias, não deixando de figurar, a par dessa engrenagem, as compensações patronais, o conjunto a simbolizar a figura do «pai dos pobres e mãe dos ricos". O último esteio acabara de ser forjado ali mesmo, com o ferro de Minas Gerais: o do nacionalismo jacobino, que, entretanto, no período de 1931 e 1932 seria o de que o ditador menos cogitaria..." (Conf. Ideais e lutas de um burguês progressista - A guerra cívica, cit., I, pág. 38.)
Compreendem, por fim, os democráticos que haviam sido traídos. O Partido rompe com o interventor, em abril de 1931; rompe com o governo central, em janeiro de 1932.

A VOZ DE IBRAHIM, O MAGO

É nesse instante que Ibrahim Nobre, o mago, empunha a inúbia, em que ressoa a voz de desespero dos paulistas: "Meu São Paulo! O irmão inimigo ultrajou o teu nome e o teu lar! Que a tua alma estremeça comigo! Redimir! Refazer! Libertar! Nossa Terra era justa, era boa. O inimigo, fingindo-se irmão, invadiu-a, desfê-la, lesou-a, reduziu-a a senzala, a prisão. Não há crime! Abençoada que seja, toda a ação que se opõe ao labéu! Nosso sangue ao cair na peleja, se transforma em estrelas, no céu! E que importa morrer? Que nos valha, a consciência dum justo porvir. É mister rechaçar a canalha: Redimir! Redimir! Redimir! Não perdoar! e que nunca se apague, nossa jura de fé e de exemplo. Como Cristo, correr a azorrague, os ladrões salteadores do Templo. É preciso lutar! E eles contem, num transido e profundo arrepio, tal os velhos Paulistas de ontem, os Paulistas de hoje têm brio! É a voz do Passado que geme, voz dos Mortos, dos Santos no altar! É a voz de Anchieta e Pais Leme! Redimir! Refazer! Libertar!"

PRÓDROMOS DO 9 DE JULHO

Já o havíeis previsto em vossa carta de 6 de abril de 1931 ao general Tasso Fragoso, então Chefe do Estado-Maior do Exército: "A situação na minha terra é de franco desespero. Posso assegurar a V. Exª. que, esquecidos das lutas e divergências do passado, os meus coestaduanos, nesta emergência, feridos todos os sentimentos de brio e dignidade, estão unidos numa frente única, que outra coisa não visa senão
reabilitar a terra comum." (Conf. Ideais e lutas de um burguês progressista - A guerra cívica, cit., I, pág. 72) Foi o milagre que se operou a 9 de Julho.
Não irei estudar aqui os antecedentes desse movimento, nem o
trabalho desenvolvido por homens dos vários Partidos em sua preparação. Vós o fizestes nos quatro volumes já publicados de vossa A Guerra Cívica, de maneira completa e a esses dois outros mais hão de seguir-se. Sobre o extenso documentário que reunistes há de se debruçar o historiador do futuro, para exaltação dos heróis que tombaram em holocausto ao ideal de Liberdade.
Nas vésperas da deflagração da campanha (relatou-me Francisco Morato), em conferência com o Sr. Getúlio Vargas, no Palácio Guanabara, tentou o grande Mestre convencer o ditador a convocar a Constituinte, ao que o Chefe do Governo Provisório teria aquiescido: "Convocarei a Constituinte, doutor Morato, e o senhor será o ministro da Justiça que se incumbirá dessa tarefa", ao que retorquiu o saudoso paulista: "Tratando-se de servir à minha terra, aceitarei esse posto." Quando, todavia, se despediam, indagou o ditador: "E se os boatos de revolução em São Paulo se positivarem, qual será a sua atitude"? ao que o homem de fibra respondeu altivamente: "O senhor não tenha dúvida de que ficarei com o meu Estado." - "Mas doutor Morato, o senhor ficará contra mim"? acentuando então o bravo piracicabano: "Será esse o meu dever de paulista..."
A tentativa, porém, não produziu resultado: era tarde demais. A Revolução foi desencadeada e Francisco Morato foi um dos seus mais destacados chefes.

NA GUERRA CÍVICA

Da notável ação que desenvolvestes nas articulações da campanha e durante ela, falam eloqüentemente os documentos. Depõem os vossos companheiros, mostrando o papel de excepcional relevo que nela vos coube. Fostes, na Revolução Constitucionalista, autor e personagem e dela sois hoje historiador. Terminar a obra que iniciastes é um compromisso que assumistes com São Paulo e vindes hoje ratificar perante esta Academia.
Como prêmio de vossos serviços, tivestes a glória do exílio. Ganhastes a Europa através de Buenos Aires. Enquanto isso, outros companheiros vossos, que aqui se encontravam, presos na Sala da Capela, seguiram a bordo do Pedro I, buscando o calor da casa avoenga, onde foram agasalhados pelo coração generoso de Portugal. Muitos já se foram. Mas, como aqueles voluntários mortos que se perfilaram no outro lado da vida para render a Pedro de Toledo a última continência, eles estão convosco nesta noite festiva, participando das homenagens que vos são tributadas.
De regresso à Pátria, viestes formar de novo com os vossos amigos nas fileiras do Partido Constitucionalista. Deputado federal por esse Partido, dividistes a vossa atividade entre o exercício do mandato e a chefia da política partidária da Capital. Veio, porém, o golpe de 10 de novembro de 1937, destruindo em nós todas as esperanças de continuidade democrática, inaugurada pela Constituição de 16 de julho de 1934.

GLORIOSO EXÍLIO

O candidato do nosso Partido à Presidência da República, Armando de Salles Oliveira, confinado a princípio em Nova Lima, toma depois, por imposição do Governo, o caminho do exílio. Também não fostes poupado: a ditadura conhecia a fibra do adversário que tinha pela frente. Sete anos vos vistes forçado a viver no estrangeiro, sem a possibilidade sequer de vir ao Brasil receber a derradeira bênção de vossa Mãe, falecida em novembro de 1941, orgulhosa do filho ilustre, que tanto se sacrificava pela Pátria.
Designado por Armando Salles, representastes os democratas brasileiros nas reuniões do Mundo Livre e da União Republicana Latina, em que tivestes a honra de ser guindado à vice-presidência. Defendestes em Montevidéu, no Congresso desta última organização, em 1945, a criação de um Poder Social, defensor das liberdades públicas no mundo latino.

REGRESSO A PÁTRIA

Voltastes ao Brasil graças a um habeas corpus redigido por Waldemar Ferreira e subscrito por seiscentos advogados, em vosso benefício, de Armando Salles e de Octavio Mangabeira. Tive a honra de ser um dos signatários desse pedido, encaminhado ao Supremo Tribunal Federal pelo eminente advogado Targino Ribeiro.
Formada a União Democrática Nacional, fostes um dos componentes do secretariado presidido por Virgílio de Mello Franco. Eleito deputado à Assembléia Constituinte de 1946, colaborastes de maneira eficiente na feitura da nova Carta Política, destacando-se, entre as cento e cinqüenta e cinco emendas que apresentastes ao projeto inicial. a que determinava fosse empregado, em benefício da ordem rural, metade do auxílio que a União e os Estados prestam aos Municípios.
Designou-vos o Presidente da República, em 1951, como conselheiro político da Delegação Brasileira, presidida pelo ministro João Neves da Fontoura, à IV Conferência dos Chanceleres Americanos. Apresentastes, nessa oportunidade, o interessante projeto criando a Assembléia dos Povos Americanos, a ser constituída por mandatários diretos dos corpos eleitorais dos países do Continente. Nesse mesmo ano, integrastes a delegação do Instituto de Organização Racional do Trabalho (IDORT), à Conferência Internacional da Organização do Trabalho, reunida em Bruxelas.

SANGUE, CORRUPÇÃO E VERGONHA

O presidente Café Filho confiou-vos, em 1954, a árdua tarefa de dirigir, reestruturar e ampliar, na esfera federal, o Serviço de Assistência aos Menores, cargo esse de que vos exonerastes a 22 de novembro de 1955, em virtude do golpe militar que depôs o digno presidente. Da experiência que colhestes nesse setor, nasceu o livro Sangue, Corrupção e Vergonha, impressionante relato de um verdadeiro cancro, incrustado em nossa organização administrativa. A mesma pena que traçara, mais de trinta anos antes, a suposta carta de um menino de oito meses aos avós ausentes, coloca, na página de guarda desse volume, estas encantadoras palavras: "Seja tudo pela causa dos menores transviados, desvalidos, maloqueiros e desajustados do Brasil. A eles dedico este livro."
A obra é um verdadeiro látego no rosto dos responsáveis por essa
miséria. Pusestes o dedo na chaga. Sem compromissos de outra natureza, a não ser com a verdade, articulastes um tremendo libelo contra réus indeterminados, os políticos e administradores que permitiram tal situação. "Nunca acertei tanto na minha vida", escrevestes. "Lá, sim, senti de perto até onde pode chegar a verdadeira miséria humana e fortaleci minha têmpera para lutar até onde cheguem minhas forças contra os componentes das camorras que à custa da exploração daquela miséria, vivem na fartura e no luxo" (pág. 347).


BURGUÊS PROGRESSISTA

Eis, Sr. Paulo Nogueira Filho, o depoimento de um homem, burguês progressista, nascido na abundância e que vive piedosamente o drama dos pequeninos e desamparados. Vosso caráter, plasmou-o vosso Pai, elemento da aristocracia rural de São Paulo e que se revê, cheio de orgulho, em dignidade e beleza, na vida de seus filhos e de seus netos. O vosso coração, todavia, foi tecido, com as filigranas de seu carinho e de sua bondade, por vossa Mãe, a matrona admirável, que Deus não permitiu aqui estivesse nesta noite de glória, para colocar na cabeça do filho estremecido a coroa de louros com que em nome de Campinas, aos doze anos de idade, cingira a fronte de Francisco Glicério.

CONJURAÇÃO DAS OPRESSÕES

Como homem de pensamento e de ação, redigistes, prevendo as inquietações do futuro, a Conjuração das opressões capitalistas e comunistas, brado de alerta em relação aos perigos que se avizinham. Logo no pórtico desse volume tomais para vós estas palavras de Einstein: "Nosso mundo está ameaçado de uma crise, cuja amplitude parece escapar àqueles que devem tomar as grandes decisões para o bem ou para o mal. O poderio desencadeado pelo átomo tudo modificou, exceto nossos modos de pensar; por isso, estamos deslizando no rumo de uma catástrofe sem precedentes. Uma nova maneira de pensar é essencial para que a Humanidade sobreviva."

INABALÁVEL COERÊNCIA

Esta Academia vos acolhe, Sr. Paulo Nogueira Filho, pelos vossos méritos de escritor e pelo vosso valor como cidadão. A vossa coerência de atitudes se revela desde a conferência de 1916, sobre o Clube Republicano de Campinas, até o terceiro volume, segundo tomo, de A Guerra Cívica - 1932, publicado em 1967. Podeis assim repetir, de coração aberto, as palavras de fé que pronunciastes, ainda adolescente, saudando os voluntários de manobras, e hoje ratificais, na unção religiosa com que recitastes o soneto de Martins Fontes.
O pendor do vosso espírito não vos encaminhou jamais para obras de ficção. Vossos trabalhos, compostos em português sem jaça. num estilo revestido de simplicidade e encantamento, foram sempre de natureza histórica. sociológica, ou política. "Eu sei bem que a política", dizia Joaquim Nabuco, "ou tomando-a em sua forma a mais pura, o espírito público, é inseparável de todas as grandes obras: a política dos Faraós reflete-se nas pirâmides tanto quanto a política ateniense no Partenon; o gênio católico da Idade Média está na Divina Comédia. como o gênio protestante do Protetorado está no Paraíso Perdido, como o gênio da França monárquica está na literatura e no estilo dos séculos XVII e XVIII... Nós não pretendemos matar no literato, no artista, o patriota, porque sem a pátria, sem a nação, não há escritor. e com ela forçosamente o político".


Sois político porque sois patriota. Se a política partidária vos trouxe às vezes decepções amargas, a vossa armadura de combatente vos tornou imune às ingratidões. São estas o cortejo forçado da vida pública. Por isso, dizia Musset :

La politique, hélas! voilà notre misère,
Mes meilleurs ennemis me conseillent d'en faire...

HOMEM DE FÉ

Mas, o reveses, que às vezes vos surpreenderam, não vos atemorizaram. Sois um homem de Fé: assim na Vitória, como na Derrota. E, se esta sobrevinha, vós vos lembráveis da advertência de Kipling, na tradução de Alcântara Machado:

Tomar de novo, a ferramenta desgastada
e sem queixumes vãos, recomeçar do nada...

Eis por que, no outono de vossa vida, ainda sentis a florescência de uma primavera. Dizia Dante que la nostra vita è siccome uno arco
montando e volgendo... Fizestes a escalada da montanha com pertinácia e bravura, contemplando agora do alto as flores que espalhastes na rude caminhada.
Mas, a idéia da Pátria palpita em vós permanentemente e podereis repetir com o Poeta amado, nesta noite de gala:

Só do labor geral me glorifico:
Por ser da minha terra é que sou nobre,
Por ser da minha gente é que sou rico...





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