Compartilhe
Tamanho da fonte


OS MORTOS QUE NOS GOVERNAM
Acadêmico: José Renato Nalini
o passado tem significativo impacto no presente e no futuro.

Os mortos que nos governam

Foi Auguste Comte, filósofo francês do século XIX, considerado o “Pai do Positivismo”, quem afirmou: “Os vivos são sempre e cada vez mais governados pelos mortos”. Tal frase também é utilizada em estudo exploratório sobre desigualdades no morrer, realizado em um cemitério de Porto Alegre. Suscita reflexão a respeito das tradições e práticas dos mortos capazes de influenciar a vida dos vivos. O significado é maneira de dizer que o passado tem significativo impacto no presente e no futuro.

Embora hoje o passado seja mais negligenciado do que cultivado, já houve no Brasil quem se preocupasse com a preservação da história de alguns mortos. Sim, não são todos os mortos que devem governar os vivos. Um intelectual hoje esquecido, Artur de Cerqueira Mendes, considerado à sua época um homem singular: nunca falou mal de ninguém. Sua virtude central era a bondade.

Dono de um profuso talento, produziu coisas formosas na oratória, na imprensa e na literatura.

Na oratória, pronunciou inúmeros discursos. Um deles, na Semana Luisiana, proferido da cátedra da Abadia de São Bento, foi uma refulgente oração laudatória. Os que a ouviram, guardaram-na como joia preciosa no cofre da memória.

Na Imprensa, escreveu crônicas diárias. Criou “O Manto de Arlequim” no “Diário da Noite”. Sabia vestir banalidades com roupas principescas, a tal ponto do traje transfundir-lhes o sangue azul.

Na literatura, elaborou um trabalho em que louva a influência de Nossa Senhora nos destinos do Brasil. Segundo os leitores de então, “comovia corações de cimento”.

Seus dois últimos livros, “Figuras Antigas” e “Um Andrada”, são obras perfeitas de arte, história e patriotismo. Livros devotados ao culto dos homens que valeram. Artur reviveu-os na memória dos de hoje, como se a dizer: “São estes os mortos que devem governar os vivos!”.

Não chegou a completar outro livro: “Coisas que me fizeram rir e coisas que me fizeram chorar”. Seria muito interessante!

Quem o conheceu em vida e conviveu com ele, admirava a grandeza de seu coração. Condoía-se com a dor dos amigos. Com sacrifício próprio, assistia materialmente o necessitado. Com os olhos úmidos falava de sua adoração pelos pais, pela esposa e pela filha.

Quando morreu um amigo seu, Silvio Floreal, escreveu duas crônicas comovidas. Em síntese, era inteligência, talento, cultura, arte, bondade e, para finalizar, o mais perfeito cavalheiro de São Paulo. Com ele morreu o mestre da galantaria apurada e natural. Todos o sabiam e apregoavam. Foi o que disseram, além de Aureliano Leite, Renê Thiolier, Veiga Miranda, Renato Guimarães, Ida S. Blumenschein, Iaínha Pereira Gomes, Aplecina do Carmo, Plínio Cavalcanti, Luís Amaral e outros.

O que nem todos sabiam é que esse cavalheirismo era geral e em toda a parte. Nos salões e na rua, com uma senhora, com uma criança, uma autoridade, um empregado, um preto velho. Sua gentileza acudia a qualquer pretexto.

Conta-se que um dia, um turbilhão de pessoas caminhando pelas ruas do Centro Velho de São Paulo, Artur viu um operário trôpego e mal vestido cair. Artur correu a levantá-lo, o que fez com esforço. Deu-lhe água para beber e uma cédula para tomar um táxi e voltar para casa.

Seria grave omissão deixar de mencionar sua crença religiosa. Consagrava fervorosa devoção a Santa Teresinha, a santinha carmelita de Lisieux, tão fotografada em vida, que hoje é possível recapitular cada fase de sua tão curta vida: morreu aos 24 anos. Artur comungava repetidamente na Igreja a ela dedicada à rua Maranhão. Ali ainda recebeu o sacramento da Eucaristia à véspera de sua morte.

Queria assistir à procissão da festa da santinha, a 1º de outubro. Não foi possível. Conta Aureliano Leite que ao passar o seu carro-esquife em direção ao Cemitério da Consolação, encontrou-se com a extensa procissão de Santa Teresinha, que percorria o bairro de Higienópolis. O jornal “A Capital” registrou a impressionante coincidência.

Artur de Cerqueira Mendes era filho do dr. João de Cerqueira Mendes, ilustre baiano que militou na alta política monárquica. Amigos da Academia Brasileira de Letras lamentaram sua morte. Cláudio de Sousa escreveu que “Artur era a primeira voz amiga e a primeira mão hospitaleira que se ofereciam a todos os confrades que chegavam a São Paulo, tendo assim constituído em nosso meio literário um prestígio raro como artista e como homem de sociedade. Sua obra, como sua atuação social, era toda de bondade e afeição, procurando reconstituir as figuras mais belas de nosso passado, que cultuava com o mesmo carinho com que cultivava as amizades presentes. O passado não era para sua alma elevada apenas uma glória sepulcral. Era, ao contrário, uma origem de ação e de estímulo, um mundo vivo dentro da morte, fases nunca fenecidas de evolução que não se interrompe nem se descontinua, correntia como as águas dos rios, em cujo curso, o que é morto rola como se vida fosse, e o que vive rola para a morte, que é vida de novas fontes”.

Para Afonso Celso Artur era “além de um grande espírito, o autor do livro “Um Andrada”, relativo a Martim Francisco, dos maiores amigos do orador”.

Para Luis Carlos “extinguira-se, materialmente, uma alta figura romântica, de expressão cavalheiresca, de inteligência sutil, que de tanto prestigiar a vida pelo sonho e pela fidalguia, mereceu a um cronista fino o título nobiliárquico de “Príncipe da Renascença”.

Coelho Neto dizia que Artur “era, sobretudo, orador empolgante que conservara do romantismo dois grandes amores: o culto da beleza e a paixão de sua terra”. Já Adelmar Tavares o definiu: “Generoso como um santo, meigo como uma criança, sonhador arrebatado, viveu pelas letras que amou e enobreceu, até o último bater do coração, daquele grande, daquele imenso coração que tão levemente carregou pela vida”.

Em seu enterro, Ciro Costa arrematou a sua despedida de Artur, na tarde cinzenta do Cemitério da Consolação: “Que o bom Deus transforme o teu corpo exangue num roseiral florido, e que derrame sobre ele, como bênção, o orvalho do céu; e, como sombra piedosa, os sonhos de amor que espalhaste na vida!”.

Quem hoje se recorda de Artur Cerqueira Mendes?

Publicado no Blog do Fausto Macedo/Estadão, em 13 11 2023



voltar




 
Largo do Arouche, 312 / 324 • CEP: 01219-000 • São Paulo • SP • Brasil • Telefone: 11 3331-7222 / 3331-7401 / 3331-1562.
Imagem de um cadeado  Política de privacidade.