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CHAGAS SECULARES NO DIVINO
Acadêmico: José Renato Nalini
As chagas seculares na instituição humana Igreja, cuja vocação é conduzir os ditos racionais para a salvação, continuam a existir.

Chagas seculares no divino

Frustro-me com o teor das críticas ao Papa Francisco, a quem admiro cada vez mais. Humano, afeiçoado à substância do Evangelho, olha pelos esquecidos e pelos humilhados, como Cristo o fez.

Aqueles que o reprovam deveriam cuidar de si e impedir que a Igreja, que é a comunidade dos fiéis, desse maus exemplos, como a falta de caridade e de um olhar compassivo para quem necessita de carinho fraterno.

Instituição humana, a Igreja claudica em várias épocas. Na primeira metade do século XIX, em São Paulo, ela padecia de uma certa secularização. Como observa Richard M. Morse, em sua interessante "Formação Histórica de São Paulo", "as paredes dos conventos abrigavam intrigas de natureza evidentemente temporal e por vezes maçônicas. A Igreja oferecia escravos para a drenagem da várzea do Carmo. Havia, entretanto, cidadãos que achavam que os padres fariam bem em aplicar seus fartos recursos na conservação da própria casa. Uma carta publicada em "O Farol Paulistano" (21 de março de 1827), reclamava melhor emprego dos fundos da Igreja e melhor conservação dos estabelecimentos religiosos".

Isso porque os quatro mosteiros carmelitas e os quatro beneditinos da Província possuíam cento e trinta e um sobrados e casas térreas, setecentos e quarenta e três escravos, vinte e quatro sítios, dez fazendas, duas ações do Banco do Brasil, cinco a seis léguas quadradas de terras, olarias e dinheiro a juros.

Descuidava-se da preparação dos sacerdotes. A Igreja realizava exames para o preenchimento de vagas e os candidatos sem instrução, incapazes até de assinar o próprio nome, eram os que obtinham aprovação, em detrimento dos mais sérios e instruídos.

No tempo em que São Paulo dispunha de um bispo culto e honrado, Dom Mateus de Abreu Pereira, que respondeu pela diocese entre 1795 e 1824, já não se podia contar com piedade extrema e diligência adequada do clero, muito pior foi a época de seu sucessor. Este, afirma Richard Morse, era um "político mundano e braço-forte dos conservadores, possuidor de fazenda e escravos, e que chocava os tradicionalistas frequentando o teatro. Os padres não se notabilizavam nem pelo celibato, nem pela erudição, nem pela dignidade pessoal".

A crônica paulistana dessa época narra fatos pitorescos envolvendo cônegos, frades e sacristãos. Para os paulistanos de então, "a igreja em que a missa fosse rápida e ininteligível seria a mais popular. A repentina atração que exerceram certa vez as cerimônias realizadas na velha igreja dos jesuítas teve sua explicação na beleza das duas filhas gêmeas do presidente da Província, que moravam ao lado".

A explicação é que o patriarcalismo brasileiro foi alicerçado sobre base econômica e não mística. A Igreja exibia certa vitalidade não pela mensagem espiritual, mas porque suas imagens, ritos e pompas, atendiam às necessidades seculares da sociedade. As procissões eram o pretexto para as reuniões festivas e faziam com que os fazendeiros deixassem suas distantes sedes para ocupar os sobrados da cidade.

A procissão de Corpus Christi era um acontecimento. Como a religião era oficial, a Câmara determinava a participação de todos os fieis vassalos e ordenava aos cidadãos tivessem "suas casas e muros branqueados, e testadas limpas e varridas, lançando flores e folhas pelas ruas em que há de passar a procissão, tendo suas portadas e janelas ornadas como é devido, debaixo das penas de serem condenados em seis mil réis para as despesas do Concelho e trinta dias de Cadeia".

Nessa procissão, o São Jorge em sua imagem de madeira ia montado a cavalo, com lança e escudo. Peça que hoje está no Museu de Arte Sacra da Luz, instalado no convento cuja edificação se deve a Santo Antonio de Santana Galvão, que viveu naquela época e só foi recentemente canonizado.

As chagas seculares na instituição humana Igreja, cuja vocação é conduzir os ditos racionais para a salvação, continuam a existir. Difícil a missão de Francisco, o Papa ecológico, a comandar uma nau cheia de remendos, furos e deficiências. Somente a crença na promessa divina de recuperação de todas as almas é que permite perseverança, diante de tantos sinais de cizânia, desalento e insuficiência de fé e caridade.

Publicado no Blog do Fausto Macedo/Estadão
Em 27 04 2023




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