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DIREITOS QUE A CIDADE ESQUECEU
Acadêmico: José Renato Nalini
Nenhuma criatura racional poderia se considerar satisfeita consigo mesma, enquanto houver um semelhante a suportar injustiças, daquelas que são removíveis por um sistema jurídico estruturado como o nosso, ínsito a um Estado de direito de índole democrática.

Direitos que a cidade esqueceu


Há exatamente dez anos, escrevi “Direitos que a cidade esqueceu”, a partir de reflexões de quem acumulava quatro décadas na tentativa de concretizar o “justo concreto”. Sempre causou desconforto a constatação de que a normatividade sofisticada, como se os destinatários fossem os escandinavos, nem de longe atendia às expectativas da população. Sobretudo a mais carente.

O fenômeno da insensata urbanização e conurbação acentuou a gravidade do contínuo e crescente desrespeito ao capítulo dos mais triviais dentre os direitos fundamentais. Embora o ufanismo estatal queira convencer os desavisados de que este é o melhor dos mundos, o quadro real é de uma cruel iniquidade. O Brasil do discurso nada tem a ver com o Brasil da verdade.

A pandemia destes dois últimos anos escancarou a escandalosa miséria tupiniquim. Vinte milhões de brasileiros passam fome; vinte e cinco milhões receiam não ter o que comer em breve; mais da metade da população padece de insegurança alimentar, seja em nível grave, moderado ou leve.

Nos últimos anos, decuplicou o número de submoradias: favelas, cortiços, palafitas e moradores de rua. Catorze milhões de desempregados. Muitos milhões de subempregados. Quantos os milhões de desalentados, pois não têm por si moradia, saúde, saneamento básico, educação, acesso ao mínimo existencial garantidor das condições imprescindíveis a uma subsistência digna?

A chamada “cultura do repasse” nos faz atribuir todos os males à política partidária, que é exercida pelos políticos profissionais, a escamotear um dos princípios republicanos, o da transitoriedade dos cargos públicos. É óbvio que essa política rasteira desconsidera o ideal da “polis”, que era a participação de todos com vistas à consecução do bem comum. O nível de política partidária exercida no Brasil faria corar os “frades de granito”. Parece existir apenas um interesse: apropriar-se dos recursos públicos, cada vez mais escassos, pois o contribuinte já não consegue satisfazer a volúpia famélica de um Estado perdulário, que impõe ao seu povo uma das mais iníquas cargas tributárias do planeta.

Sem fornecer argumentos que excluam o Estado, em uma representação praticamente falida – pois ninguém se considera efetivamente representado em nossa frágil democracia – é preciso que a comunidade jurídica se conscientize de sua responsabilidade ante o quadro melancólico com que se defronta qualquer pessoa imbuída de sensibilidade e provida de consciência cívica.

O Brasil possui mais Faculdades de Direito do que a soma de todas as outras existentes no restante do mundo. Seria auspicioso que essa presença maciça da ciência jurídica de nós fizesse o país mais justo, mais cumpridor das obrigações, o mais abnegado cultor daquela arte do bem e do equânime. Não é assim.

Um ensino anacrônico e superado insiste em fazer com que o educando memorize informações disponíveis a um clique. Não se investe no universo negligenciado das competências socioemocionais. Formar bacharéis eruditos não significa, inevitavelmente, que eles sejam concretizadores de um convívio mais justo. Por sinal que o constituinte de 1988 se comprometeu, desde o preâmbulo da Constituição Cidadã, a edificar uma pátria fraterna e solidária, com erradicação da miséria e redução das desigualdades. Caminhamos nessa direção nestes últimos trinta e três anos?

Será impossível inculcar na consciência de quem estuda direito – e que, intuitivamente, já optou por um caminho reto, direito, correto, a indeclinável responsabilidade de contribuir, com sua pregação e, mais ainda, com sua efetiva ação, para a transformação do mundo num espaço de maior respeito, fruto de uma ética singela, sintetizada na lei imperecível de não fazer aos outros, aquilo que não se deseja para si, ou de fazer pelo semelhante o que se espera ele venha a fazer por nós.

Esta sociedade política não tem pejo em se considerar fruto de uma civilização cristã. E a “regra de ouro” do Cristianismo, reconhecida por outras confissões e até por quem se considera agnóstico ou ateu, é o “amai-vos uns aos outros”. Algo tão absurdo, que só poderia se considerar possível. Para quem não consegue vivenciar esse projeto de vida, ao menos se paute pelo supraprincípio do pacto federativo ora vigente, que é a dignidade da pessoa humana.

Nenhuma criatura racional poderia se considerar satisfeita consigo mesma, enquanto houver um semelhante a suportar injustiças, daquelas que são removíveis por um sistema jurídico estruturado como o nosso, ínsito a um Estado de direito de índole democrática.

Voltaremos a esse tema.

Publicado do Blog do Fausto Macedo/Opinião/Estadão
Em 31.10.2021



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