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SONÂMBULOS E FURIBUNDOS
Acadêmico: Bolívar Lamounier
"Não podemos descartar um retrocesso abrupto, muito cruel para as almas mais frágeis"

O espetáculo circense encenado no Congresso Nacional na última segunda-feira causou grande impacto, mas não diferiu em natureza de tudo a que temos assistido há vários anos no próprio Congresso, na Presidência da República, no Supremo Tribunal Federal e na Procuradoria-Geral da República.

A impressão é de que nada faz sentido; de que somos um país de sonâmbulos, incapazes de perceber o que acontece à nossa volta e, principalmente, o que nos aguarda ao longo desta década. Sonâmbulos, mas sonâmbulos furibundos. Subjacente a essa estranha coreografia, há uma briga de foice. Ou uma batalha entre dragões-de-comodo, se preferirem. Batalha por cargos, verbas e, sobretudo, vantagens eleitorais, cada um já pensando em reeleição.

E quem são os dragões? Por hábito, ou por preguiça mental, nos acostumamos a dizer que são partidos políticos, não nos dando conta de que o Brasil já não tem partidos. Ter 20 e tantos partidos na Câmara, o maior deles mal ocupando 15 das cadeiras, e não ter nada é a mesma coisa. Tal coreografia talvez até fosse engraçada se não fosse macabra, pois, entre agressões e afagos, os furibundos dançam sobre os mais de 220 mil cadáveres da pandemia, sujeitando a um cruel sarcasmo milhões de cidadãos que sobrevivem graças aos auxílios emergenciais, 20 e tantos milhões sem trabalho e o desencanto permeando a quase totalidade dos lares.

O leitor talvez pense que exagero quando afirmo que o Brasil já não tem partidos políticos. Dá-se que, na acepção que me parece aceitável, partido político é uma organização capaz de conter o apetite dos grupos corporativistas, dentro e fora da máquina pública, transcendendo-os, agregando-os e direcionando-os para o bem público. No Brasil de hoje, o que vemos é precisamente o oposto. Vemos interesses estreitos – alguns empenhados num “liberou geral” contra o ambientalismo, outros em erodir a hierarquia das Polícias Militares, outros, capitaneados pelo próprio capitão, em armar a população civil –, cada um mais forte que a maioria dos partidos. Por essas e outras é que, se o governo tivesse um norte inteligível, não teríamos abandonado o debate sobre a reforma política, sem dúvida a mãe de todas as reformas.

Até recentemente, o grande mal político brasileiro era o chamado patrimonialismo. Grupos incapazes de tocar uma verdadeira economia de mercado se incrustavam (incrustam-se) no casco do Estado e dele se apropriaram, mantendo aparências de legalidade, e às vezes nem tanto, como vimos poucos anos atrás na Petrobrás. Grupos incapazes, grupos falidos e oligarquias de diversos tipos invertem a ordem lógica das coisas, valendo-se do poder político para granjear poder econômico, quando o normal, ou relativamente normal, seria o oposto. Inspirados no grande clássico de Raymundo Faoro Os Donos do Poder, pensávamos que o patrimonialismo era um mal em decadência, nos estertores, abrindo espaço para um grande bem que denominávamos “modernidade”. Não reparamos que tal história pode ser contada ao contrário. Desde os famigerados tempos da ditadura getulista, a apropriação do público pelo privado só fez aumentar, dando corpo ao que, com dor na alma, somos obrigados a designar como um “patrimonialismo moderno”. Infelizmente, sabemos hoje que “patrimonialismo” é só uma parte da perversa história política brasileira. Agora temos o corporativismo, um patrimonialismo “democratizado” e dividido entre n grupos, que cedo ou tarde tornará o País virtualmente ingovernável.

Voltemos aos sonâmbulos. Nunca vi um deles caminhando numa casa, mas imagino que ele possa meter a cabeça num armário ou se cortar seriamente numa cristaleira. Se forem vários, e furibundos, poderão quebrar toda a casa e sucumbir entre seus escombros. Essa, justamente, é a hipótese que me ocorre quando vejo o governo mais preocupado em importar revólveres do que em empreender uma abrangente reforma do Estado, uma reforma administrativa séria e um amplo programa de privatização, assestando, assim, um golpe de morte no patrimonialismo e no corporativismo.

“Ora, direis, ouvir o Guedes! Decerto perdeste o senso.” O bravo quixote que se propunha a destruir os moinhos mais dispendiosos por ora mal consegue dar palpites na formatação dos auxílios emergenciais. De fato, o presidente que se elegeu prometendo extirpar a “velha política” acaba de trazê-la com mala e cuia para dentro da máquina do Estado. Na última segunda-feira, a prometida austeridade fiscal levou uma banana, pois o que vimos foi o presidente jogar alguns milhões aos nossos furibundos gladiadores, com o objetivo de impedir um eventual impeachment e debilitar aquele que parece ser seu principal contendor na eleição de 2022.

Excetuada a hipótese de alguma luz desconhecida iluminar as mentes brasilienses, infiro que os próximos dez anos não nos serão benfazejos. Num cenário ameno, teremos mais do mesmo. Mas não podemos descartar um retrocesso abrupto, muito cruel para as almas mais frágeis.

Publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 06 de fevereiro de 2021.



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