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ALDIR BLANC
Acadêmico: Zuza Homem de Mello
Nenhum outro letrista provou mais surpresas

”Gloria a todas as lutas inglórias” pode ser um dos epitáfios ao letrista da canção brasileira dos tempos que estamos vivendo. Ou “O Brazil não conhece o Brasil”.
Seus versos são ditados populares nascidos de uma cabeça que não tinha direção certa, girando o tempo todo, como a de um bêbado trajando luto, nos 360 graus do circulo infinito da poesia, do lirismo, do sarcasmo, do satírico, do surpreendente, do atrevido, do teimoso. Uma bola de futebol prateada como o lustre que ilumina o cabaré.
Nenhum outro letrista brasileiro provocou mais surpresas do que Aldir Blanc. Entre o refinamento e o salão de sinuca ele soube dar à linguagem popular um enxugamento de profundidade oceânica.
“E a ponta de um torturante bandaid no calcanhar” estava no bolero que ele mesmo definiu como o lacrimoso que se sai bem no fio da navalha. “O amor é um falso brilhante no dedo da debutante” resumiu e nomeou aquele famoso show. “A gente não precisa que organizem nosso carnaval” desdisse o que virou regra no maior das festas populares. “Naco de perú, lombo de porco com tutú e bolo de fubá, barriga d’água” sincopava o sentido do samba antes mesmo das notas da melodia. “Quiseram autuar nossos siris mas minha patroa subornou a guarnição então os cara duras mais gentis levaram a gente e os siris pra casa da Abolição” descreve o confronto com a autoridade venal. “Yolanda aposta que assim a nível de proposta o casamente anda uma bosta e a Adelina não discorda. Estrutura-se um troca-troca e os quatro hum-hum...oquêi....tá bom é....” resume a manobra a nível de resolver em dois tempos casamentos mal resolvidos. “Sou de arrancar couro de farejar ouro, Princesa do Daomé” diz quem “faz mandinga deixa biruta, lelé da cuca , zuretão, ranzinza” embrenhando-se nos ancestrais africanos. “Dormir no teu colo é tornar a nascer violeta e azul, outro ser luz do querer” trata do sonho de ser feliz. Villegagnon, Praça Mauá, Mitterrand, Paquetá, flamboyant, voalá e çavá, padedê, dendê, peticomitê, faz uma barafunda da história com lugares divertindo-se com o gaulês num pagode em Cocotá.
O limite de Aldir não tem limites, entra em todas, mergulha no passado, na memória do que viu na vida, do que traduziu com seu poder de quem observou, entendeu e fez voar incontáveis versos que o povo canta.
Sentimos uma dor pungente de quem partiu num rabo de foguete. Choramos, chora a canção, chora a nossa pátria mãe gentil. E que sufoco! As nuvens no mata-borrão do céu. Façamos reverências mil pra noite do Brasil com tanta gente que já partiu. E levou Aldir.

Publicado na última página do caderno "Na Quarentena" do Estadão de 05 de maio.




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