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OS IRRACIONAIS
Acadêmico: Gabriel Chalita
"Os carros, talvez, tenham mais valor. Ninguém abandona. Já eu. Um cachorro que não era mais novidade, que talvez desse trabalho. Não sei. Sei que nunca deixei de fazer festa quando eles chegavam. Nunca deixei de estar quando me queriam. Deixaram de me querer e fiquei aqui. Sozinho."

Vivi em uma família por algum tempo. No início, eu era novidade. Era cuidado. Riam as mais diferentes risadas. Comentavam uma ou outra estripulia. E eu gostava. Queria ser sempre o centro. Pulava de um lado e de outro. E dividia, com justiça, o meu amor. Levavam-me para passear.

E foi assim que minha história começou a mudar. Achei que se tratava de mais um passeio. Mas era uma despedida. Os tempos de filhote já haviam se esgotado. Eu cresci. E eles se cansaram de mim. Difícil acreditar nisso. Eu me sentia da família. Mas foi isso que aconteceu. Quando me vi naquele lugar em que se deixam os carros e que depois se buscam, eu ainda fiquei esperando.

Os carros, talvez, tenham mais valor. Ninguém abandona. Já eu. Um cachorro que não era mais novidade, que talvez desse trabalho. Não sei. Sei que nunca deixei de fazer festa quando eles chegavam. Nunca deixei de estar quando me queriam. Deixaram de me querer e fiquei aqui. Sozinho.

Alguns que não conheço me trouxeram água. E passaram a mão na minha cabeça para aliviar as minhas incompreensões. Por que me abandonaram? O que eu fiz contra eles? Outros me deram o que comer. Como não tinha o poder da escolha, resolvi ficar. Não queria incomodar. Decidi que só brincaria com quem quisesse brincar. E que, no restante do tempo, ficaria deitado, quieto, para não desistirem de mim mais uma vez. Não é fácil ser abandonado.

Foi quando alguns deles, ditos seres racionais, aproximaram-se com um sorriso diferente dos sorrisos que sempre gostei de brotar. E um pau de vassoura. Que estranho! Será que vieram fazer uma brincadeira diferente comigo? Mas e esses sorrisos sombrios?

Um me ofereceu o que comer. Comi, sem abanar o rabo. Com alguma preocupação, mas sem o poder de declinar. Comi e comecei a me sentir estranho. E, de repente, fiquei tonto. Não sei se do que comi ou se do bater intermitente da vassoura. Ouvi alguns "Fora daqui", sequer tinha forças para obedecer. Comecei a ver o sangue se despedindo de mim. Comecei a parar de ver. Apenas vultos. Vultos de risos e de frases sem sentido. Que sentido tem tamanha violência?

Antes de partir, começo a sonhar com o dia em que cheguei àquela casa e com os risos bonitos que me acolheram. Escuto o meu choro doído ao perceber o abandono. E sinto algumas alegrias que tive com os carinhos de desconhecidos. E agora, entre uma paulada e outra, despeço-me, sem compreender. Ouvi tantas vezes que os humanos são os mais evoluídos dos animais. Que nós somos os irracionais.

Não há mais tempo para nada. Vêm, agora, recolher o que restou de mim. Vão limpar tudo. Porque outros humanos chegarão e não querem ser importunados.
O meu nome? Tenho tantos.

A minha história? Repete-se com mais frequência do que vocês imaginam. Morro sem perder a ternura, morro sabendo que fiz o que pude para fazer mais feliz a vida deles. Morro irracionalmente amando.

Publicado no dia 02 de dezembro, no jornal O Dia (RJ).




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