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FARSANTES, PUNGUISTAS E ASSASSINOS
Acadêmico: Bolívar Lamounier
"Teodiceia, como se sabe, é a parte da teologia que investiga as origens do mal. O colapso de países, por exemplo, é continuamente estudado nessa perspectiva; muitos foram levados à destruição por um complexo de causas que permanece ainda hoje indecifrável. "

(Uma breve introdução à história recente do Brasil)
Bolívar Lamounier 22.11.18)

Teodiceia, como se sabe, é a parte da teologia que investiga as origens do mal. O colapso de países, por exemplo, é continuamente estudado nessa perspectiva; muitos foram levados à destruição por um complexo de causas que permanece ainda hoje indecifrável.

No caso brasileiro, é conhecida a afirmação de que nossas mazelas decorrem de termos sido colonizados por uma escória de degredados, criminosos, gente da pior espécie. Mas essa resposta é tida como insatisfatória, pois, afinal, o mesmo ocorreu na Austrália, que se tornou um dos países mais ricos e civilizados do mundo, ao passo que nós somos ainda forçados a conviver com uma quantidade espantosa de farsantes, ladrões e assassinos. Pressentimos que há um processo de destruição em marcha, mas não atinamos com o encadeamento dos fatores que paulatinamente nos arrasta para um possível abismo.

O pessimismo inerente a tal inquirição bifurcou-se de uma forma curiosa e passou a ser contestado a partir da Segunda Guerra mundial. De um lado, os cultores da doutrina marxista afirmavam que o avanço econômico resolveria todos os nossos problemas. Com o progresso da industrialização, o trem entraria nos trilhos, os conflitos sociais se acomodariam a um padrão normal e nós nos tornaríamos uma nação culta e civilizada mais ainda, é claro, se adotássemos o regime socialista. No polo oposto, os não marxistas redarguiam que a economia por si só não nos levaria a lugar algum. O fator que nos bene ficiava (e beneficia) é a qualidade de nossas instituições políticas, nossa boa organização institucional, a excelência de nossos partidos e de nosso sistema eleitoral, e nossas atitudes políticas, que teriam espontaneamente se acomodado a um notável padrão de civismo.

O problema, como o leitor já terá percebido, é que a infraestrutura econômica afundou num pântano tenebroso a chamada “armadilha da renda média” e a superestrutura política, em vez de puxá-la para cima, parece empenhada em afundá-la ainda mais. Ou seja, o concurso da teodiceia tornou-se mais que nunca necessário, direi mesmo imperativo.

A incursão teológica que proponho neste artigo pretende pôr em relevo a questão do encadeamento dos fatores, ressaltando como três tipos sociais se formaram e se agigantaram: os farsantes, punguistas e assassinos. Mérito, se minha interpretação tiver algum, será apenas esse esforço em me manter rente ao desenrolar do fio histórico. Focalizarei três períodos: da Independência até a Segunda Guerra mundial, dos após-guerra até aproximadamente os anos oitenta e dali, passando pela redemocratização, até os dias de hoje.

De fato, no fim do século 19, um traço essencial do que viríamos a ser já se evidenciava com clareza: o patrimonialismo. Empregarei este termo para designar aquela estrutura de Estado em que uma exígua elite apropriava-se da quase totalidade dos recursos produtivos do país, repartindo as melhores oportunidades de enriquecimento entre seus membros e os “amigos do rei”, e impedindo o crescimento e a diversificação de um setor empresarial privado. Longe de se debilitar, a estrutura patrimonialista robusteceu-se a olhos vistos, conferindo um perfil bem de finido à classe dirigente: uma minoria de bons políticos, direi até de estadistas, e uma vasta maioria de farsantes.

Políticos dignos do nome são aqueles que lutam pelo poder com o objetivo de contribuir para o bem comum. Farsantes são aqueles que ocupam cargos públicos sem possuir a vocação da política. Buscam o poder por vaidade, para fazer parte do grand monde, para picaretear pequenos favores e para engordar cada vez mais a máquina do Estado, fonte sine qua non de tudo o que se propõem distribuir a parentes e amigos. Claro, o argumento não se aplica apenas aos políticos eletivos; na administração, também, os termos vocação e responsabilidade raramente são pronunciados. Foi gra& ccedil;as aos farsantes, considerados todos os seus subtipos, que a superestrutura política, que era para ser robusta, se tornou anêmica, e nosso patrimonialismo, inicialmente “tolerável”, tornou-se letal.

Antes de afundar no já referido pantanal, o patrimonialismo não impediu que a economia crescesse aceleradamente, na fase fácil da industrialização, e impulsionasse um vigoroso processo de urbanização. É aqui que o nosso segundo tipo o punguista entra em cena. O que o torna consubstancial com a urbanização é a crescente mobilidade da riqueza. Quando a maior parte da sociedade vivia no interior rural, quase não havia roubos, porque a riqueza praticamente se resumia à terra e aos rebanhos. Roubar vacas é uma atividade trabalhosa; para bater uma carteira, duas semanas de adestramento devem ser suficientes.

O punguista se multiplica e se agiganta, tornando-se um ladrão de verdade, com a mesma velocidade com que os políticos por vocação minguam e quase desaparecem. Ele cresce à medida que a reles carteira portada no bolso de trás da calça se transforma em polpudos cheques falsificados, o estelionato se torna rotina, o superfaturamento se aprimora e o aparelhamento de grandes estatais ganha o status de grande arte. A essa altura, o punguista está para o verdadeiro ladrão como um pernilongo está para um dinossauro. Desaparecer, ele não desaparece; é um sobrevivente evolutivo da grande massa de miseráveis que nem consegui encaixar nesta história.

Nosso terceiro tipo o assassino aparece por volta dos anos 80. Falo do grande assassino, lógico. No meio rural, como antes assinalei, a riqueza caracterizava-se por uma acentuada imobilidade e as armas ao alcance da população se equivaliam, com o que os crimes de morte não iam muito além de surtos de ciúme, vinganças de família e escaramuças políticas puramente locais. Nas macabras concentrações urbanas em que atualmente vivemos, a criminalidade violenta tende à enésima potência, motivada por motivos muitas vezes fúteis (adolescentes querendo demonstrar sua “macheza, ou ro ubar um par de tênis) até uma intensificação alucinada da ambição, na qual só o fim (a liquidação de um ser humano) interessa, os meios perdem significado. A desproporção entre as armas também contribui: a velha espingarda de matar passarinhos foi substituída pelos poderosos AK-47 que entram assobiando por nossas fronteiras.

Situei a transição para o terceiro tipo por volta de 1980: por que? Muito simples: naquele momento, uma ala das Forças Armadas agarrava-se ao objetivo de se eternizar no poder e a frente de oposições (o MDB) fazia das tripas coração para desalojá-la e restabelecer o regime civil. Nenhum dos dois tinha tempo e olhos para um mega-processo que se operava sob suas barbas: a entrada do crime organizado, notadamente no narcotráfico. Os principais protagonistas de cada lado falavam a linguagem de antigas filosofias: de um lado, Montoro evocava Aristóteles e Rousseau, dizendo que a violência só seria controlada quando criássemos uma sociedade mais justa, cooperativa e voltada para o bem comum; do outro, Paulo Maluf declamava Hobbes, asseverando que toda sociedade é necessariamente uma “luta de todos contra todos”.

Contra esse pano de fundo, os traficantes entraram sem a menor cerimônia, acomodaram-se nos outrora idílicos morros do Rio de Janeiro, e lá transformaram o país, recrutando um vasto contingente de mão de obra, adultos e adolescentes, disseminando armamentos e propagando de norte a sul e de leste a oeste a visão “ética” segundo a qual o assassinato não passa de uma banalidade. Esse é o Brasil em que vivemos.

A pergunta que não pode calar é se faremos as reformas necessárias para reverter esse estado de coisas ou se vamos nos acomodar a ele. É uma questão de escolha: o precipício é logo ali.

Bolívar Lamounier* CIENTISTA POLÍTICO, É SOCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORIA E AUTOR DO LIVRO ‘LIBERAIS E ANTILIBERAIS: A LUTA IDEOLÓGICA DE NOSSO TEMPO’ (COMPANHIA DAS LETRAS, 2016)

Postado no Facebook de 22/11/2018.



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