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70 ANOS SEM MÁRIO DE ANDRADE, DE JÚLIO MEDAGLIA
Acadêmico: Academia
Discurso proferido na Abertura do Ano Literário 2015

No ano de 1894, Alberto Nepomuceno concluiu seus estudos com distinção no Conservatório de Berlim e regeu um concerto de obras suas com a Filarmônica da cidade. O grande compositor do final do romantismo Edward Grieg assistiu a essa apresentação, encantou-se com o talento do cearense e o convidou para ir à Noruega. Hospedou-o em sua própria casa e deu-lhe mais algumas orientações. Depois de algum tempo, coerente com seus próprios objetivos, os de valorizar a cultura musical de seu país, Grieg disse a Nepomuceno: “pare de copiar Wagner e Brahms e faça uma música com as cores sonoras de sua Terra”.
Se isso era verdade, podemos lembrar também que Carlos Gomes compunha em italiano; Machado de Assis, o maior escritor brasileiro do romantismo, quando escreveu letras para canções, o fez em francês; todo o Barroco Mineiro, assim como José Maurício, compunham em latim, e assim por diante. Nepomuceno, ao voltar, além de esbravejar que “um povo que não canta em sua língua não tem pátria”, passou a ouvir o som das ruas, seus ritmos, trejeitos, linguagens, formas de expressão em busca de uma solução estética que conciliasse os conhecimentos adquiridos e o vigor daquela cultura espontânea. E conseguiu. Suas obras posteriores passaram a ter as provocações da cultura popular, expressas através das ferramentas composicionais da grande música ocidental.
Tivemos a sorte de ter, logo no início do século XX, um autor Heitor Villa-Lobos que, considerando Nepomuceno o “pai” da música nacional, soube estabelecer com ela uma relação não provinciana ou ufanista. Villa trabalhou a matéria-prima nacional a partir de uma visão universalista, estabeleceu uma relação dinâmica e crítica entre o folclore e a cultura ocidental, postura essa que lhe valeu o reconhecimento internacional que possui ainda hoje.

Outra “sorte” que tivemos foi a de termos, paralelamente aos esforços de Nepomuceno e de Villa, um intelectual de profunda formação cultural que soube, como ninguém, investigar a criatividade da alma brasileira, o paulista Mário de Andrade. Se Villa captou a energia e identificou os polos efetivamente criativos de nossa cultura popular e os transformou numa nova realidade musical, Mário soube distinguir, codificar e valorizar aquilo que era realmente talentoso e importante em nossas manifestações espontâneas. E isso é bem diferente de um “patriotismo piegas” ou de um “orgulho” do rincão onde se nasce.

O curioso e excepcional é que ambos chamaram a atenção para valores regionais a partir da segunda década do século XX, época em que o mundo caminhava, artística e tecnologicamente, no sentido radicalmente contrário, no de uma globalização desenfreada. No auge do romantismo, no final do século XIX, surgiram na música de concerto inúmeros e saudáveis movimentos nacionalistas. Mas, depois das explosões devastadoras do Sacre de Stravinsky, do Pierrot Lunaire de Schönberg e do Jeux de Debussy todas de 1913 ninguém mais queria saber de folclores esquecidos ou injustiçados.
Mas foi aí que Mário e Villa, a partir de uma convicção fora do comum dos possíveis valores de nossa regionalidade, souberam comparáveis, talvez, só a Bartok provar que ainda seria possível ser criativo a partir de uma matéria-prima telúrica.

Entende-se que aquela infinidade de danças e ritmos europeus praticados nas cortes e nas ruas, hoje transformados em movimentos de sinfonias ou concertos, são coisas do passado longínquo. Ninguém imaginaria, numa reunião festiva dos G 20 em Davos, ver Angela Merkel dançando um minueto com Putin ou, numa solenidade qualquer, a rainha da Inglaterra trocando passos delicados ao som de lentas sarabandas com François Hollande, como ocorria nas cortes do passado. E polonaise, nos dias atuais, nada mais é que uma forma composicional usada por Chopin e pavana uma nostálgica peça instrumental lenta de Ravel. Nas ruas de Budapeste, ninguém mais dança csardas e nem nas de Palermo sicilianas...
Mas no Brasil, a coisa é outra. Os grandes carnavais de rua, com seus monumentais cenários ambulantes impulsionados pelo samba de milhares de percussionistas, ou os desfiles do Boi-bumbá de Parintins, que contam lendas amazônicas num espetáculo de puro deslumbramento, duas gigantescas óperas populares ao ar livre, são algo sem igual no mundo e estão mais que vivas. Da mesma forma, as danças populares dos dias de festas do Brasil. No Nordeste, as frenéticas bandas de pífanos, os forrós, com seus ritmos bárbaros do frevo, xaxado, baião ou maracatu, os repentistas que se desafiam noites inteiras ao improviso, as danças das violas de cocho do Brasil-central, as gaitas de fole que impulsionam as festas gaúchas, são valores humanos e culturais de riqueza e originalidade únicas.
Só um grande músico, um grande poeta, um grande escritor, um intelectual de peso, uma mente universalista como a de Mário, que organizou dezenas de congressos sobre a cultura nacional, criou o Departamento de Cultura de São Paulo, a Discoteca Pública, o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico, entre outras coisas, é que estaria em condições de destrinchar e conferir “status cultural” à essa rica mas frágil e espontânea cultura popular. Mais que isso, Mário criou o “Grupo dos 5” brasileiro, ao lado de Anita Malfatti, Menotti Del Picchia, Tarcila do Amaral e Oswald de Andrade e partiu para organizar a Semana de 22, o mais radical acontecimento da cultura brasileira daquele século, o qual transformou radicalmente os conceitos de uma cultura nacional. Se em outros trabalhos Mário valorizou nossas tradições, aqui, ele apontou para o Brasil artístico do futuro.

Sobretudo numa época em que os meios de massa eletrônicos trituram a sensibilidade das pessoas, comercializando uma primitiva cultura de massa, artificialesca e vulgar, o legado de Mário de Andrade, devidamente conservado na Academia Paulista de Letras, onde foi membro, e na mente daqueles poucos que levam este país a sério, é e será uma referência balizadora de um povo criativo que, seguramente, ainda tem muito a oferecer à cultura universal.

Júlio Medaglia (cadeira nº 03)





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