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DISCURSO DE POSSE
Acadêmico: Ada Pellegrini Grinover
"Encerro meu discurso de posse com uma promessa solene: continuar lutando ao vosso lado, inspirando-me no vosso pensamento e na vossa ação e participando assiduamente, convosco e por vós, das atividades da Academia que agora generosamente me acolhe."

Discurso de Posse em 29/08/2002


Senhor Presidente

Senhores Acadêmicos

Senhoras e Senhores.

É tradição desta venerável Casa das Letras que o ingressante, em seu discurso de posse, recorde a vida e a obra dos antecessores na cadeira que vai ocupar. O sentido dessas reminiscências é claro: reafirmar, a cada nova posse, a imortalidade dos que deixaram a vida terrena. Mas outro significado pode ser atribuído a essa homenagem: buscar, entre os precursores e o novo acadêmico, e entre eles todos e a Academia, o elo misterioso que formou as circunstâncias de vê-los reunidos na mesma cadeira.

Como bem disse o Acadêmico Massaud Moisés, no inspirado discurso de posse que pronunciou a 16 de março de 2000:

"Quiseram os Fados, ou as circunstâncias, que me fosse destinada uma cadeira nesta academia, cujo ocupante anterior mais próximo foi Marcos Rey. Por que esta e não outra, se todas se eqüivalem neste circuito democrático de idéias, sentimentos e aspirações? Jung, como sabemos, não acreditava em acaso, mas em coincidências significativas, sob a égide da sincronicidade... ".

Busquemos, portanto, as coincidências significativas a que se refere Jung.

Examinei em profundidade a vida e a obra de meus antecessores, perscrutei a minha, deixei aflorar o ideário da Academia e me atrevo a afirmar que encontrei o elo misterioso que nos une na cadeira nº 9 e nos enquadra nesta Casa. O elo, as coincidências significativas, estão na Utopia.

Como é sabido, o termo "utopia" foi criado por Thomas More - o mártir e santo da Igreja Católica - na obra em latim de 1516, De optimo reipublicae statu, deque nova insula utopia, e foram extraídas das palavras gregas oú (não) e tópos (lugar), significando "em lugar nenhum". Mas a idéia de utopia é muito mais antiga. Embora no sentido mais comum a expressão denote uma comunidade ideal, cujos habitantes, pela nova organização da sociedade, conseguem usufruir de condições perfeitas de vida e de um estado de felicidade geral, a utopia também permeou a filosofia e a literatura. Aparece ela no Timaeus de Platão e é plenamente desenvolvida em sua Republica. A descrição idealizada de Esparta na vida de Plutarco, escrita por Licurgo, pertence à mesma categoria. Idéia semelhante encontra-se nos gregos e nas lendas celtas e árabes da Idade Média que descrevem um paraíso terrestre no Oceano Atlântico. Nos escritos de Hobbes e Rousseau é referido o estado ideal da sociedade. Para Bacon, a ciência é a chave da felicidade universal. Tommaso Campanella, com a Civitas Solis (1623) descreve uma sociedade comunitária, largamente inspirada em Platão. James Harrington, em Oceana (1656), obra que exerceu profunda influência sobre o pensamento norte-americano da época, funda-se na idéia de que a propriedade, especialmente no campo, constitui a base do poder político. E existiram, na literatura, as utopias cristãs, como Christianopolis, de J. V. Andreae e Nova Solyma, de S. Golt (ambos de 1648). A utopia, que tinha passado do plano sociológico para o literário, recuperou seu sentido inicial com o advento da Revolução Industrial. A mais célebre utopia da primeira metade do séc. XIX foi a de Fourier, com a disciplina rigorosa do trabalho comunitário e os sonhos libertários. Outro utopista, Cabet, o líder dos Icários, pensou na fundação de colônias utópicas na América, que era à época o país da liberdade e das possibilidades ilimitadas. O maior adversário da utopia em todas as suas formas foi Karl Marx, que refutou e imaginou ter tornado dispensáveis os sonhos de Fourier e seus discípulos, substituindo o Socialismo Utópico pelo Socialismo Científico, baseado no estudo das relações econômicas e na dialética. Mas socialistas não-marxistas não hesitaram em esboçar sistemas utópicos. Nesse grupo, pode-se incluir o grande poeta inglês William Morris, cujo livro News from Nowhere renova a tradição literária iniciada por Thomas More na Utopia. Quase ao mesmo tempo, nos Estados Unidos da América, Bellamy escreveu o romance utópico Looking Backward.

Mas é preciso assinalar que a utopia - projeção de reivindicações para o futuro - é o contrário do mito de uma idade áurea que teria existido em passado remoto. E que nesse sentido, de anseios capazes de mudar o presente, é tão antiga quanto o mundo.

Basta ler o Paraíso Perdido de Milton. Que mais, senão a utopia, empurrou os anjos caídos para o inferno? Que mais animava Satanás, em sua força, coragem e capacidade de liderança, pervertidas pelo mal? No discurso de Satanás a seu lugar-tenente, Belzebu, em cada palavra manifesta-se o desafio a Deus, sua falsa concepção de liberdade, sua alienação de todo o bem, reforçando e ampliando um sentimento de poder moralmente corrupto e cego. Que mais tentou Adão e Eva, ela sucumbindo ao apelo a sua vaidade e ambição, no desejo de conhecimento e poder iguais aos de Deus, ele permitindo que seu amor por Eva sobrelevasse o amor a Deus? Ambos, ao invés de atingir o conhecimento divino, foram vítimas da concupiscência humana. E as comoventes últimas linhas da obra descrevem sua partida do Éden, não mais como donos da criação, mas como dois seres humanos começando a vida num mundo de pecado, sofrimento e morte, embora com a Providência como guia e na esperança de encontrar o paraíso interior.

Utopia para o mal, mas também utopia para o bem. Utopias frustradas e utopias realizadas. Anseios de mudar o presente, projeção de reivindicações para o futuro. Sonhos possíveis, capazes de se traduzir em realidade. A utopia que impulsiona cada projeto de vida. É nesse sentido que busco na utopia o fio condutor que tece as coincidências significativas entre meus antecessores, entre eles e mim, entre nós e a Academia.

Comecemos pelo patrono da Cadeira nº 9, Álvares de Azevedo. Mas antes, seja-me consentida uma digressão, a mostrar minha vinculação muito especial com o "príncipe do romantismo brasileiro".

Aportei no Brasil a 12 de janeiro de 1951, com 17 anos de idade. Vinha dos estudos clássicos e com o 2º colegial iniciado na Itália. Lá, o professor de literatura, Francesco Biondolillo, eminente autor da Storia della Letteratura Italiana, havia terminado de estudar conosco o romantismo. E eu ainda guardava impressa na memória a obra dos grandes autores da renovação do mundo poético italiano: sobretudo Ugo Foscolo, Alessandro Manzoni e, o mais amado de todos, Giacomo Leopardi. Deste, um poema - A Silvia - havia ficado indelevelmente gravado em meu espírito:

"Silvia, rimembri ancora

quel tempo della tua vita mortale,

quando beltà splendea negli occhi tuoi

ridenti e fuggitivi

e tu, lieta e pensosa,

il limitare di gioventù salivi? "

No canto dolente do poeta de Recanati eu sentia o perecimento das ilusões, a certeza de que tudo é em vão, a verdade inexorável da morte.

Quando o ano escolar começou, no mês de março, tive a ventura de encontrar no "Dante Alighieri" o professor de português Francisco Sodero e, reiniciando o segundo clássico, deparei-me, pela sua mão, justamente com o estudo do romantismo brasileiro. Logo me apaixonei, e minha paixão se concentrou em Álvares de Azevedo, o mais pungente dos românticos brasileiros. Ainda hoje recordo-me do primeiro poema que memorizei na língua portuguesa, Lembrança de morrer:


"Como o desterro de minh alma errante,

Onde fogo insensato a consumia:

Só levo uma saudade - é desses tempos

Que amorosa ilusão embelecia. "

...........................................................

"Se uma lágrima as pálpebras me inunda,

Se um suspiro nos seios treme ainda

É pela virgem que sonhei... que nunca

Aos lábios me encostou a face linda!"

Pois é justamente este poeta que me é dado recordar agora, como patrono da cadeira que passarei a ocupar. Certamente uma coincidência significativa, na sincronicidade de Jung.

Álvares de Azevedo, pois, e sua utopia, que é, antes de tudo, a utopia do romantismo.

O movimento teve início em 1797, na Alemanha, e em 1798 na Inglaterra. Nos primeiros anos do séc. XIX invade a França e os países escandinavos, aparece em 1816 na Itália, um pouco mais tarde na Espanha, em 1822 na Polônia. Dentro em breve, todos os países - inclusive o Brasil- estarão impregnados pelo novo espírito.

Esse espírito, que diferencia o movimento do classicismo e do realismo, caracteriza-se por um complexo de elementos pelos quais se pode desenhar a utopia de seus seguidores: individualismo e subjetivismo, atitude pessoal e íntima que condiciona a visão do mundo à personalidade do artista; preocupação com o mundo interior e com o primado da emoção, da imaginação, da paixão; desejo de fuga da realidade para um mundo idealizado pela imaginação; a importância do sonho e o sentido de mistério; oscilação entre alegria e melancolia, entusiasmo e depressão; culto da natureza, fonte de inspiração do homem simples e puro; historicismo, com a reminiscência de épocas antigas envoltas em mistério; exotismo e culto do pitoresco, pela descrição de lugares cheios de melancolia e cor local, evocadores da saudade e da expressão lírica e sentimental; reformismo e busca de um mundo novo pela revolução e pelos movimentos capazes de levar à liberdade.

Nos seus breves 20 anos de vida, Álvares de Azevedo, introdutor no Brasil da poesia de Byron, Shelley, Heine e Musset, teve conhecimentos literários extremamente extensos: Shakespeare, Goethe, Charteton, Lamartine, Victor Hugo e tantos outros são por ele não apenas mencionados, mas servem de modelo para muitas composições poéticas. Seus discursos ostentam a vastidão e a variedade das leituras literárias, históricas e filosóficas, o conhecimento do francês, do italiano, do inglês, do alemão e, naturalmente, do latim. Sua aplicação ao estudo do direito, que cursou até o quarto ano na Faculdade de São Francisco, sua distinção inata, a delicadeza de seus sentimentos sugerem que o engajamento na "Sociedade Epicuréia", a devassidão, a libertinagem, as extravagâncias byronianas descritas em seus poemas são mais fruto da imaginação do que da realidade. Seja como for, encarnou o "mal do século" romântico, erguendo-se como porta-voz de sua geração e um dos protótipos do romantismo entre nós. Profunda influência exerceu sobre Casimiro de Abreu, Fagundes Varela e Castro Alves, o iniciador da poesia condoreira. E até hoje sua lembrança é perpetuada na Faculdade de Direito, juntamente com as de Fagundes Varela e Castro Alves, os três grandes poetas filhos da casa, cujos nomes, com a reforma do prédio, em 1884, encimaram em placas de mármore as três portas que se abriam para o Largo de São Francisco.

"Nem anjo nem demônio", segundo Sílvio Romero; poeta da dúvida existencial, enclausurado no seu mundo de intelectualizada fantasia, perdido no dualismo entre o amor terreno e o amor de Deus, obcecado pela visão da morte prematura, passou sua vida literária, breve mas tão intensa e densa de obras, a chorar o amor desiludido, os sonhos desfeitos, a morte fatal. Como escreveu o Acadêmico Massaud Moisés, em sua História da Literatura Brasileira, o poeta viveu esse "périplo que começa no amor-medo e termina no sonho, passando pelo erotismo, Deus e morte".

Acredito que o sonho foi sua verdadeira obsessão. O sonho, que não só permeia toda a primeira parte da Lira dos Vinte Anos, mas que, nas belas palavras de Massaud Moisés, "constitui-lhe a matriz poética, não apenas como tema, senão como símbolo de menosprezo pela realidade concreta: o sonho como escoadouro e refúgio, como fonte do Mal e razão de viver".

Ouçamo-lo:

"Fui um doudo em sonhar tantos amores.

Que loucura, meu Deus!

Em expandir-lhe aos pés, pobre insensato,

Todos os sonhos meus! "

E mais:

"Não te rias de mim, meu anjo lindo!

Por ti - as noites eu velei chorando,

Por ti - nos sonhos morrerei sorrindo!"

Ainda, agora no Poema do Frade:

"Escrevi o meu sonho. Nas estâncias

Há lágrimas e beijos e ironias.

Como de noite muda nas fragrâncias

Perde-se um ai de ignotas agonias!

Tudo é assim - no sonho o pesadelo,

- Em almas de Madona quanto gelo. "

E, a ceifar-lhe a vida e o sonho, a utopia e o projeto de vida, o presságio da morte:

"Quanta glória pressinto em meu futuro

Que aurora de porvir e que manhã!

Eu perdera chorando essas coroas,

Se eu morresse amanhã! "

A utopia pessoal, o projeto de vida de Álvares de Azevedo ficaram, enfim, insculpidos no epitáfio que escreveu para si mesmo e que se lê sobre a lápide de sua sepultura:

"Foi poeta, sonhou e amou a vida."

A Faculdade que freqüentou assiduamente estava instalada no Convento de São Francisco, edifício de taipa, construído em meados do séc. XVII no estilo barroco-jesuítico. Nela, de 1848 a 1851, o patrono da cadeira nº 9 viveu sobretudo a utopia da poesia e da literatura, tão comuns entre os estudantes da época. Mas certamente seus estudos jurídicos, o acompanhamento do primeiro jornal acadêmico ("A Voz Paulistana"), a convivência com os colegas instalados nas celas do velho convento, nas pensões em casas de família e, sobretudo, nas famosas repúblicas, integraram-no a todo o ideário da instituição, que talvez se possa resumir em duas palavras: liberdade e justiça. Todavia seu projeto de vida não pôde incluir, em sua breve e fulgurante duração, os ideais então incipientes entre os estudantes: a Abolição, que alimentou a utopia de Fagundes Varela e Castro Alves e, pouco após, a República.

Diversamente ocorreu com o fundador da cadeira, Wenceslau de Queiroz, que se matriculou em 1883 na Faculdade de Direito e, devido a várias interrupções do curso motivadas por doenças, só se formou em 1890. Já haviam concluído seus estudos, na década de 60, Prudente de Morais, Campos Salles, Bernardino de Campos e Rangel Pestana. Da turma que colou grau em 1870, faziam parte Rui Barbosa e Joaquim Nabuco, além dos futuros Presidentes da República, Rodrigues Alves e Afonso Pena. Esses antecedentes não poderiam deixar de influenciá-lo. Além de escrever versos (Goivos, 1883, e Versos, 1890), colaborou em jornais e revistas, sendo redator de alguns, cujos títulos apontam para seu engajamento: "A Idéia", "A República", "A Vida Paulista". Mais tarde, escreveu para o "Diário Mercantil" e no "Correio Paulistano". Foi juiz federal, membro do Conselho Superior da Instrução Pública e Deputado estadual.

Como ardente republicano, viveu a utopia dos rigorosos princípios políticos e do heroísmo, este descrito nas poesias patrióticas Os Heróis, e como filosofia de vida adotou o estoicismo:

"Dia e noite, hora a hora, em ânsia extrema,

Indago, estudo e sondo,

Ainda que a razão vacile e trema,

Este báratro hediondo.

Que ninguém saiba! Nele a dor suprema

Barbaramente escondo;

E se um dia eu quebrar-lhe a férrea algema

Não se ouvirá o estrondo. " (Coração de um estóico).

Sucedeu-lhe, na cadeira n. 9, Rubens do Amaral, autodidata, que iniciou brilhante carreirajomalística em 1907, como revisor do "Comércio de São Paulo". Chefe de redação de diversos jornais ("Cidade de São Carlos", "Diário da Tarde" de Curitiba, "A Nação" de São Paulo, "Comércio" de Jaú), chegou a ser preso, em 1924, sob a acusação de ter tomado parte no movimento revolucionário chefiado pelo general Isidoro Dias Lopes. Em 1931, reorganizou a "Folha da Manhã" e a "Folha da Noite", que haviam sido fechadas em conseqüência do movimento revolucionário que depôs o presidente Washington Luís. E, em 1932, fundou o "Correio de São Paulo", que foi a bandeira da Revolução Constitucionalista. Lutou pela liberdade de imprensa, como conselheiro, em dois períodos, da Associação Paulista de Imprensa e membro efetivo da União Jornalística Brasileira.

As obras que publicou retratam a utopia que moldou sua vida. Destaquem-se, dentre todas, A Campanha Liberal, ensaio sobre os pródromos da revolução de 1930; Terra Roxa, o romance do café; Os Cristãos e o Problema da Terra, com seus propósitos reformistas; Hino à Terra Branca, esboçando o perfil do Noroeste do Estado. Sem falar em sua atividade jornalística, a revelar outro aspecto da utopia que o norteou: a luta pela liberdade de imprensa.

Não era fácil, durante a ditadura de Getúlio Vargas, perseguir a liberdade de imprensa e conclamar os paulistas à revolução. Mas ele o fez de maneira destemida e ardente.

E os paulistas responderam "presente!". O povo de São Paulo, consciente de suas responsabilidades na formação nacional e na construção política do Brasil, exigiu a Constituição. Por quê? Pelo idealismo, por um Brasil melhor, por uma nobre utopia.

Bem o afirma o Acadêmico Paulo Bomfim, o poeta de São Paulo:

"O que foi 32? Foi a soma dos sonhos e o sacrifício de um povo, a confraternização de raças e condições sociais no batismo das trincheiras, o esforço da indústria, o desprendimento do comércio, a grandeza de uma causa, a generosidade dos moços, a participação dos cabelos brancos, o entusiasmo das crianças, a força que vem da mulher terra paulista, o verbo dos poetas e dos tribunas, dos jornalistas e dos sacerdotes, a sacralidade da lei, o fuzil ao lado do livro, a trincheira continuação da escola, a caserna dependência do lar e o campo de batalha sementeira de justiça. " (Soma de Sonhos e o Sacrifício de um Povo).

E o que foi a epopéia do café, escrita em 1932 por Rubens do Amaral, inspirado na grande geada que assolou o Estado em 1918? A prosperidade e a derrocada do café, a queima dos estoques, as labutas, as agruras, as alegrias e o sofrimento dos fazendeiros, sua lida com o trabalhador braçal, os colonos que haviam substituído o braço escravo, criando os filhos sem saúde e sem escola. Terra Roxa é um hino a São Paulo, a seu esforço pela independência econômica e por novas relações sociais. Todo o romance é uma lição de otimismo na grandeza da terra, na liberdade, na energia, no progresso.

Mas não é só. Os propósitos reformistas de Os Cristãos e o Problema da Terra, baseados em Henry George, inscrevem-se num verdadeiro desenho utópico. Os remédios sugeridos contra a exploração da terra, a tributação como meio de resolver os problemas da habitação e da saúde, são tratados como problemas de consciência e de religião. E, mais tarde, no Hino à Terra Branca, descreveu os sacrifícios das expedições, o desentendimento entre seus componentes, a luta dos engenheiros, os ataques dos índios, os urros das onças, as cidades brotando do chão, crescendo depressa, multiplicando-se, civilizando-se. E, com a civilização e o progresso, o caldeamento das raças, a acolhida dos imigrantes.

Eis suas palavras:

“Brasileiros brancos, mamelucos, mulatos, cafuzos e pretos. Imigrantes de Portugal, da Espanha, da Itália, da Áustria, da Alemanha, da Polônia, da Síria, das Antípodas. Vindos para as fazendas do Oeste, onde, misturados, aprenderam a nossa língua, os nossos costumes, a nossa agricultura. E onde ganharam o pecúlio com que um dia desembarcaram em Bauru, fazendo escala para o Noroeste, para o seu sítio. Misturadamente. Sem concentrações raciais. Sem quistos étnicos. Assimilados e integrados. Portanto, paulistas. Portanto, brasileiros.”

O sucessor de Rubens do Amaral foi Octacílio de Carvalho Lopes, médico e literato. A utopia que impregnou sua vida, retratada em escritos saborosos, foi a da generosidade, da solidariedade e do altruísmo. As andanças do médico interiorano da Bahia, o atendimento aos pacientes nos lugares perdidos do sertão, o socorro à pobreza, o cultivo de amizades nos inícios de sua carreira; a bondade, sabedoria e força, transfundidas em simpatia, quando já triunfador nas grandes cidades - Salvador e São Paulo; a dedicação à ciência e a escalada espetacular sem prejuízo da atmosfera de sonho que permeia suas obras literárias: estas as características do membro e presidente das mais importantes instituições médicas e do autor de ...E a Dieta, Doutor? - reminiscências de um médico da roça -, Harmonia dos Sentidos, A Cor do Gosto, Os Sertões, diagnose e denúncia, Appassionata, Faça-se uma Estrela nos Céus - estudo a respeito da enfermidade de Castro Alves -, Tempo e Revolta de Beethoven - somando a devoção pelo gênio criador ao interesse médico pela surdez histórica do grande músico.

Finalmente, sua utopia está particularmente retratada em A Vocação Médica, mensagem confessional aos moços sobre a grandeza e a nobreza da profissão.

Como disse o Acadêmico Menotti Del Picchia, em seu discurso de saudação proferido nesta Casa a 30 de abril de 1965,

"Se, por um lado, todas as formas de beleza atraem e seduzem o artista, a dor e a miséria abrem no coração do homem generoso e do médico humanitário, a fonte espontânea e desinteressada da assistência por um impulsivo e cristão sentido de solidariedade humana ".

O Padre Hélio Viotti foi seu sucessor. Nele, a utopia da Companhia de Jesus fez-se realidade. Seu discurso de posse nesta Academia, proferido a 20 de outubro de 1975, é uma homenagem aos enviados de Inácio de Loyola, em cujas leituras e vivências formou seu espírito e que o armaram cavaleiro de uma cruzada ideal.

No período da formação do Brasil, o catolicismo foi a Sociedade de Jesus. E, sem o catolicismo, o Brasil não seria o grande bloco de continente que vai das Guianas da Amazônia às Missões do Paraná. Sem ele, como apontou Joaquim Nabuco, o território seria dividido pelo menos em três ou quatro imensos fragmentos, um huguenote, outro holandês, o terceiro espanhol e só o quarto brasileiro. Sem ele, a nacionalidade brasileira não se teria fundido amalgamando o indígena, o português e o africano. Sem a larga passada do jesuíta, Portugal não se teria antecipado em tão extensos domínios e sem ele não teria mantido sua posse.

Após 15 anos de experiências malogradas, a colônia estava perecendo. O sistema das feitorias e das capitanias não havia vingado. Por toda parte, miséria, abandono, ruína. Até que Dom João 111 entendeu, em boa hora, confiar à Companhia de Jesus a evangelização de seus vastos domínios americanos.

Foi a catequese que lançou os fundamentos de uma nova nação. Quando o Padre Manoel da Nóbrega desceu, com seus companheiros da frota de Tomé de Sousa, na Baía de Todos os Santos, bem avaliou a grandeza da tarefa que o soberano lhe havia confiado. E escreveu: "Esta terra é nossa empresa".

"E que empresa!" - exclama o Acadêmico José Augusto César Salgado em sua saudação ao Padre Viotti:

"Naquele mundo bárbaro, sem Deus e sem lei, os jesuítas, que tinham por missão cristianizar os aborígines, compreenderam logo que deviam também recristianizar os colonos... E, se pecado havia, não era certamente entre aqueles rudes habitantes da selva, que procediam de acordo com suas normas de conduta, em paz com seus deuses e sua consciência. O pecado estava entre os brancos, letrados e iletrados...”

O próprio Nóbrega, em carta a Tomé de Sousa, em 1559, fala nos pecados mortais dos colonos: a decomposição da moral, a luxúria, o ódio, os roubos e rapinas, os enganos e as mentiras. Sem os jesuítas e sem o cruzamento das raças, os colonos teriam exterminado todos os índios, ou estes teriam destruído os estabelecimentos portugueses, retardando - por um ou mais séculos, segundo Eduardo Prado - a civilização do Brasil.

O I Congresso Nacional de História, realizado no Rio de Janeiro em 1914, proclamou que

“o nome da Companhia de Jesus se acha indissoluvelmente ligado à História do Brasil, e de modo tão estreito que, relembrar seus fastos, é assinalar, ao mesmo tempo, os extraordinários serviços que na tríplice missão humanitária, política e social, prestaram os jesuítas ao Brasil por mais de dois séculos, evangelizando as tribos selvagens, salvaguardando o princípio da moralidade, em face da corrupção e da execrável cobiça dos colonos, alimentando a chama do patriotismo, que repeliu as invasões estrangeiras, concorrendo eficazmente para a conservação da unidade e integridade da Nação e preparando em toda a parte a cultura intelectual que preparou o surto brilhante de nossa literatura”.

Foi a utopia da Companhia de Jesus que o Padre Hélio Viotti incorporou, aplicou e vivenciou nos seus aspectos atuais. Profundo estudioso de Anchieta, dedicou-lhe sua obra máxima - Anchieta, o Apóstolo do Brasil - na qual demonstra, a par da erudição, o rigor do historiador, no escrupuloso respeito à verdade. E esse conhecimento ímpar sustentou-o em duas cruzadas, que retratam o viés de sua utopia pessoal: a luta para restabelecer a verdade em relação à tese do também jesuíta e historiador, o português Padre Serafim Leite, que exaltava Nóbrega em detrimento de Anchieta; e a luta pela reconstrução da Igreja do Pátio do Colégio, o velho templo dos jesuítas, a primitiva igreja dos paulistas quando, por decreto do Governo Federal, foi ordenada a suspensão das obras, num verdadeiro atentado contra o patrimônio histórico de São Paulo.

Os desdobramentos hodiernos da utopia da Companhia de Jesus mostram-se, também, nas atividades de educador do Padre Viotti: Doutor pela Universidade Gregoriana, de Roma; Reitor do Colégio São Luís; fundador e primeiro Diretor da Faculdade de Ciências São Luís; Superior da residência de São Gonçalo; Reitor do Colégio Antônio Vieira, da Bahia; Diretor do Arquivo da Cúria Metropolitana.

Nessas casas de ensino, foi professor de várias disciplinas: Direito Canônico, Religião, Português, História Geral e do Brasil, Geografia e Cosmografia.

Vivenciou, ainda, o patriotismo da Companhia de Jesus como capelão da Força Expedicionária Brasileira na II Guerra Mundial e como capitão-honorário do Exército Nacional.

Embora jesuíta, o Padre Viotti viveu numa pobreza que se poderia chamar franciscana. No fim da vida, para recolher-se ao Colégio dos Jesuítas de Belo Horizonte, recebeu uma passagem de ônibus e somente graças à generosidade pessoal de nosso Presidente, Acadêmico Israel Dias Novaes, é que ganhou o bilhete aéreo que o levaria a seu último refúgio.

Finalmente, teria ocupado a cadeira nº 9 - se a morte não a tivesse levado entre a eleição e a posse - a Acadêmica Idelma Ribeiro de Faria. Justo é recordá-la nessa oportunidade, sobretudo por ser a única mulher a integrar a cadeia de antecessores e por ter-se formado em farmácia nos albores da Universidade de São Paulo.

Viveu, assim, a utopia da USP, fundada em 1934, com a criação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, à qual se incorporaram as seis antigas instituições oficiais: a Faculdade de Direito, a Faculdade de Medicina, a Escola Politécnica, a Faculdade de Medicina Veterinária, a Escola Agrícola Luiz de Queiroz e a Escola de Farmácia e Odontologia. Além disso, já estava prevista a abertura da Faculdade de Ciências Econômicas e Administrativas e da Escola de Belas Artes.

O grande sonho de Armando Salles de Oliveira era criar uma universidade inspirada no modelo alemão em relação à liberdade acadêmica, à indissolubilidade do ensino e da pesquisa, à importância da investigação científica independente e desinteressada.

A Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras constituiu, nos primeiros anos, o eixo de gravitação de toda a universidade, um centro de cultura filosófica e um foco poderoso de atividades científicas. E a vinda de professores estrangeiros acabou determinando o rumo de toda a universidade.

Embora recebidos com hostilidade pelas velhas Faculdades de Direito e de Medicina, pelo partido republicano e, na própria Escola, por muitos autodidatas, que se sentiam ameaçados, a USP afirmou-se, inclusive, pelo reconhecimento da importância dos professores estrangeiros no desenvolvimento da ciência e na renovação da educação superior no Brasil. Sua colaboração generosa, constante e produtiva desempenhou a função de verdadeira revolução cultural e, por outro lado, o Brasil demonstrou estar capacitado a receber a influência estrangeira sem se desfigurar, influindo por sua vez sobre o temário, a sensibilidade e a visão do mundo dos mestres europeus. O interesse era recíproco: à utilidade que traziam os europeus para a USP correspondia, para eles, a possibilidade real de criar novas escolas de pensamento e de pesquisa.

A utopia da USP - uma universidade que produz e irradia conhecimento -, vivenciada pessoalmente pela Acadêmica Idelma Ribeiro de Faria, não só em seu curso de Farmácia, mas também em dois estágios junto à Reitoria, está encarnada no Acadêmico Miguel Reale. Duas vezes Reitor da USP (1949-1950, quando configurou o campus, e 1969-1973, quando empreendeu administração criativa e realizadora, com a reforma universitária), esse Mestre de todos nós inscreveu no pedestal da emblemática Torre do Relógio a frase luminosa que se tornou lema e leme de nossa universidade: "No universo da cultura, o centro está em toda parte".

Mas Idelma também viveu a utopia do feminismo. Bacharel quando a universidade ainda contava com pequeno número de mulheres, jornalista com direito a carteira profissional num mundo masculino, escritora com obras publicadas desde 1941, poeta da geração de 45, teve que quebrar barreiras, impor-se, vencer o preconceito, afirmar-se enquanto mulher e apesar de mulher.

Demonstrar que a mulher é tão competente quanto o homem, que pode ser uma profissional de valor, que deve ocupar seu espaço em todos os aspectos da vida cultural, social e política, que é tão responsável quanto o homem pela sociedade em que vive, cabendo-lhe moldá-la e aperfeiçoá-la graças a sua peculiar cosmovisão, esta é a utopia do feminismo. E esta foi, também, a utopia de Idelma Ribeiro de Faria.

Suas numerosas obras literárias, como Aquarela Teatral, teatro infantil; Alma Nua, Meridiano do Silêncio, Acalanto para a menina morta, Presença do Enigma, Quarteto, Uma Abelha ao Sol, poemas; Você não conhece Jeanete, romance; assim como as traduções de Eliot e Dickinson dão conta de sua importância como escritora e do vazio que deixou não chegando a ocupar a cadeira a que fez jus, por todos os méritos.

Senhor Presidente, Senhores Acadêmicos, Senhoras e Senhores.

Chegamos ao dia de hoje, ao tão honroso ingresso desta que vos fala na Academia Paulista de Letras. Permiti que vos confidencie, em poucas palavras, qual é a utopia que rege minha vida, a fim de que se siga e se perfaça até o fim esse fio condutor que liga meus antecessores entre si e eles a mim.

A utopia em que sempre acreditei, que lutei constantemente para ver realizada e que vivenciei desde as vicissitudes da infância, passando pela adolescência e pela juventude, com os estudos na Faculdade de Direito da USP, e depois, na maturidade, em minha vida profissional e particular, é a utopia da justiça. É esta utopia que acompanha meus sonhos, que moldou todo meu projeto de vida, que me absorve constantemente. A justiça, falha porque humana, mas generosa, solidária, renovadora. Justiça individual, justiça social, justiça política, justiça econômica, justiça nas instituições. A manutenção do justo, a transformação pela justiça, a justiça que transcende ao direito, o justo que modifica as leis.

É tempo de terminar. Resta apenas examinar como todas as utopias descritas se enquadram na utopia maior da Academia Paulista de Letras, de modo a se desvendarem as coincidências significativas que nos trouxeram a todos, patrono e titulares da cadeira nº 9, à acolhida em seu seio.

Li com grande atenção os discursos de posse de muitos Acadêmicos, as orações proferidas por aqueles que os saudaram, os escritos e trabalhos publicados na nossa primorosa Revista. E penso não estar errada ao afirmar que o ideário maior de todos os Acadêmicos, presentes e passados, pelos quais o espírito da Academia se manifesta e se perpetua, é o humanismo. O humanismo que desabrochou entre a Idade Média e a Renascença, com Petrarca e Boccaccio, e pelo qual o homem, considerado quidam mortalis deus, não admite outro mundo senão o criado por seu subjetivismo, pelo qual livre e harmonicamente desenvolve suas faculdades. O humanismo, como revelação do valor intrínseco da vida humana e da grandeza de suas potencialidades, segundo a visão renascentista de Leonardo da Vinci, Pico della Mirandola, Erasmo. O humanismo, que tem como fonte o desenvolvimento de todas as virtualidades do homem, na concepção de Jacques Maritain.

Num mundo de avançada tecnologia, é preciso saber que esta deve sempre estar a serviço do homem. Numa época de avassaladoras descobertas científicas, é imperioso respeitar os valores éticos perenes que preservam a identidade do homem. Numa sociedade cada vez menos individualista, o homem deve permanecer como centro do universo, revisitando-se a afirmação de Protágoras: "O homem é a medida". O humanismo e, nesta Casa, o humanismo pelas letras, deve ser perseguido como idéia- força capaz de transformar o mundo, de transformar o próprio homem, de fazê-lo melhor e menos imperfeito, de afastar os males do século que se inicia: a violência, a intolerância, o fanatismo. Humanismo, enquanto utopia em que se englobam todas as outras.

Fortalecida por esses valores, Senhor Presidente, Senhores Acadêmicos, encerro meu discurso de posse com uma promessa solene: continuar lutando ao vosso lado, inspirando-me no vosso pensamento e na vossa ação e participando assiduamente, convosco e por vós, das atividades da Academia que agora generosamente me acolhe.


Muito obrigada.



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