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DISCURSO DE POSSE
Acadêmico: Celso Lafer
Em seu discurso de posse o acadêmico Celso Lafer faz uma homenagem a Antonio Ermirio de Moraes, seu antecessor na cadeira 23 da Academia.

Agradeço, em primeiro lugar, a expressiva generosidade com a qual os ilustres membros e caros amigos da Academia Paulista de Letras acolheram o meu nome para ocupar a cadeira nº 23. Registro que é uma honra e uma responsabilidade suceder, na cadeira nº 23, a Antônio Ermírio de Moraes - admirável figura humana que, com o vigor da sua personalidade e o poder da sua inteligência, deu densidade própria ao nosso país pela sua notável atuação nos múltiplos e diversificados campos da vida a que se dedicou, impulsionado por uma vocação de servir e trabalhar em favor do Brasil e dos brasileiros.

Agradeço o privilégio de ser saudado nesta solenidade pelo querido amigo, o decano desta Casa, Paulo Bomfim, que foi a primeira voz a patrocinar o meu nome para a cadeira nº 23 e que também saudou o ingresso de Antônio Ermírio de Moraes na Academia Paulista de Letras com o sopro inspirador de uma fraternal sensibilidade.

O lema do Barão do Rio Branco, o patrono da diplomacia brasileira, era em todo lugar lembrado da pátria. O lema de Paulo Bomfim é em todo lugar e em todo momento lembrado e tocado pela Poesia. Por isso, para invocar o seu poema Prece, livrou-se “do demônio do tédio/dos infernos da rotina/do viver sem vocação” e nos livra, com o privilégio da sua presença e da sua companhia “do enxofre da subserviência/do purgatório da indiferença/do deserto do desamor”.

O dom da poesia é o poder de nomear. No seu percurso, Paulo Bomfim recorrentemente nomeia, pela criatividade da sua palavra, São Paulo a São Paulo do tecido de suas lembranças, do simbolismo de sua memória mítica penso em Armorial; do alcance irradiador de suas instituições como as Arcadas da Faculdade de Direito e esta Academia Paulista de Letras. São Paulo é a minha querência e por esse motivo ser saudado, na minha acolhida nesta Casa por quem a nomeia com tanto talento é motivo de grande alegria.

São Paulo abrigou, na década de 1890, os meus bisavós vindos da comunidade judaica da Lituânia. Assegurou aos meus avós o oxigênio da liberdade e os horizontes que se abriram para os imigrantes em nosso país. Gerou as oportunidades para que meus pais pudessem ter uma vida significativa de trabalho e realizações. São Paulo foi o ponto de partida da minha grei que, na passagem das gerações, superando os desafios da imigração e da necessidade, encontrou, ao enraizar-se no Brasil, um espaço para empreender e criar tantas coisas em tantas áreas na vida nacional.

Eu sou um fruto de São Paulo, um filho da Faculdade Direito do Largo de São Francisco e da sua tradição, na qual também se formou meu Pai, da USP e do meio empresarial paulista, instruído na efervescência e no estímulo do ambiente intelectual do nosso Estado. Nele incluo Araraquara, onde minha Mãe se criou, foi normalista, lecionou e trabalhou na Delegacia de Ensino do sistema público de educação paulista. A Araraquara de D. Gilda de Mello e Souza e de D. Ruth Cardoso, a Araraquara inspiradora da recorrente tela de recordações do nosso amigo e confrade Ignácio de Loyola Brandão, que a elas deu belo e acabado tratamento em A altura e a largura do nada. Estou integrado na continuidade no tempo do ethos regional paulista e, como pontua Gilberto de Mello Kujawski neste sentido, atento ao respeito pelo passado e aberto às mudanças impostas pelo presente na perspectiva do futuro, conjugando pensamento e ação.

Existe um sentido instaurador no projeto paulista, como observou o querido professor Miguel Reale, eminente membro desta Casa. Por isso as iniciativas geradas no correr dos tempos em nosso meio, observou ele, costumam ganhar amplitude nacional. Exemplifico lembrando Mario de Andrade, que integrou nossa Academia, para quem São Paulo representou um dos estímulos da sua criação poética, mas que foi, desde a Semana da Arte Moderna de 1922 até o seu falecimento em 1945, o grande intelectual voltado, com sentido de missão, para a renovação, que ecoa até nossos dias, das artes e do pensamento brasileiro. O tema da brasilidade permeia com abrangência a sua obra. Por isso foi um ser paulista impregnado da força e do sentido do nacional.

Faço estas observações para registrar que há uma dialética de mútua implicação e complementaridade em participar, tanto da Academia Brasileira de Letras quanto da Academia Paulista de Letras. É o caso de Miguel Reale a quem sucedi na Academia Brasileira. É o caso de Fernando de Azevedo, antecessor de Miguel Reale e meu na cadeira nº 14 da ABL, e que foi igualmente um antecessor de Antônio Ermírio de Moraes e agora meu na cadeira nº 23 desta Casa.

É por essa razão que existem tanto grandes figuras do passado e do presente que integraram as duas Academias. Lembro, no presente, a aura desta admirável criadora que é Lygia Fagundes Telles, que vem desvendando o mar oculto da ficção, e cuja obra de alcance nacional e internacional tem, no meio paulista, um dos estímulos dos seus contos e romances. Entre as numerosas e eminentes figuras do passado vou apenas recordar Vicente de Carvalho, não apenas pelos seus méritos, mas por uma razão de natureza pessoal. Era poeta de predileção dos meus pais Betty e A. Jacob Lafer o que me permite invocar a memória dos dois, que sempre afetuosamente me apoiaram e a quem devo o que sou e que teriam muita satisfação com minha posse na Academia Paulista de Letras.

- II
A cadeira nº 23 tem como membros fundadores Monsenhor Manfredo Leite e como patrono Monsenhor Manoel Vicente, dois religiosos que se notabilizaram como eloquentes oradores, seguramente porque seguindo o ensinamento do pe. Antonio Vieira pregaram “o seu e não o alheio”. “A pessoa, a ciência, a matéria, o estilo e a voz” são as características identificadoras do sucesso de um orador, como explicita o “imperador da língua portuguesa” no Sermão da Sexagésima. O testemunho dos que conheceram e ouviram Monsenhor Manfredo Leite destacam que tinha as qualidades apontadas pelo pe. Antonio Vieira. Possuía “os recursos naturais para se comunicar com os seus ouvintes e influir sobre eles”, como realçou Fernando de Azevedo, seu sucessor na cadeira nº 23, em seu discurso de posse nesta Casa em 24 de setembro de 1969.

“A religiosidade foi um traço marcante da personalidade de Antônio Ermírio de Moraes”, como aponta nosso confrade José Pastore na sua admirável biografia do meu antecessor, ao esmiuçar seu catolicismo. A religiosidade é o que o vincula ao patrono e ao membro fundador da cadeira n° 23. Antônio Ermírio dizia, como pontua José Pastore: “Não adianta querer descobrir os planos de Deus. Melhor fazem os que procuram aprender com eles”. Foi o que ele fez com alto sentido de solidariedade nas obras sociais a que se dedicou, em consonância com a sua maneira de ser. Pregou, assim, na sua vida, o “semen suuum” e não o alheio, como recomendava o pe. Antonio Vieira.

Fernando de Azevedo, a quem conheci pessoalmente e admiro pela sua obra e atuação, foi o sucessor de Monsenhor Manfredo Leite. Entre as muitas vertentes da sua trajetória entre elas a de ter sido, com Julio de Mesquita Filho, que foi membro desta Casa, um dos que conceberam e fundaram a USP, a minha alma mater destaco o alcance do seu papel como educador. Para Fernando de Azevedo a educação devia estar a serviço de um projeto de reconstrução nacional, voltado para a transformação do Brasil pela escola para todos, como caminho para a necessária e efetiva democratização do nosso país. Daí a importância que atribuiu ao ensino primário, secundário e técnico para o povo, como via para lidar com a injustiça e as desigualdades da sociedade brasileira. A profundidade da sua visão foi um desdobramento de quem, em sua Sociologia Educacional, estudou com originalidade os fatos educacionais como fatos sociais e que no seu livro A Cultura Brasileira tratou a educação como força explicativa da trajetória histórica do Brasil.

Fernando de Azevedo foi um homem de pensamento e um homem de ação e seu percurso em prol da educação é o que o aproxima de Antônio Ermírio, que sempre lutou para melhorar o nosso ensino. O Presidente Fernando Henrique relata que um tema recorrente de suas conversas com Antônio Ermírio era a compartilhada angústia com os problemas da educação no Brasil.

Na sua peça Acorda Brasil, Antônio Ermírio encontrou um meio de discutir a calamidade nacional da educação em nosso país, lastreado na bem sucedida experiência, que respaldou, da educação musical voltada para redimir a juventude da favela de Heliópolis, como relata José Pastore na sua biografia.

Meu mestre, Antonio Candido, escrevendo sobre a personalidade de Fernando de Azevedo, de quem foi colaborador e amigo próximo, apontou que tinha “uma vontade firme” e que “nunca recusou as tarefas trazidas pelo senso do dever, que nele era em grande parte discernimento das necessidades coletivas”. A vontade firme e o senso do dever são traços que o aproximam da maneira de ser de Antônio Ermírio de Moraes.

Lycurgo de Santos Filho sucedeu a Fernando de Azevedo e tomou posse na cadeira nº 23, tendo sido saudado por José Carlos de Ataliba Nogueira, meu professor em 1960, no primeiro ano do curso, na Faculdade de Direito da USP. Foi neste ano que me tornei irmão do confrade Tercio Sampaio Ferraz Jr., com o qual, na aristotélica igualdade de estima recíproca, venho, desde aquela época, discutindo os grandes temas do Direito e da Justiça. Temas que procuramos, subsequentemente, e em conjunto fraternalmente aprofundar nas décadas de magistério nas Arcadas, como professores do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito.

Antônio Ermírio, no seu discurso de posse assinalou suas afinidades com seu antecessor, destacando a proximidade de um médico de quem, como ele, dedicou-se à Cruz Vermelha, à Cruz Verde e, em seguida, empenhadamente, durante décadas, à Beneficência Portuguesa. Antônio Ermírio, na Beneficência Portuguesa, cuidou com desvelada atenção dos problemas administrativos de um grande Hospital que, em sua gestão, ampliou sua abrangência e eficácia, transformando-se num centro de excelência médica graças ao aprofundado conhecimento que tinha dos problemas de saúde e do seu interesse pela medicina. Por isso soube apreciar os dois volumes da História da Medicina no Brasil, do seu antecessor, e realçar o “seu extraordinário senso de observação e identificação de particularidades” da medicina no Brasil, assim como apontou o “minucioso estudo sobre a origem e a evolução das Santas Casas de Misericórdia”. É sabida, como relata José Pastore, a importância que Antônio Ermírio atribuía aos problemas de saúde em nosso país e da prioridade que conferia ao atendimento dos mais necessitados, tendo mantido a Beneficência na rede do SUS, como destacou José Serra. Buscou ir além do exemplo da sua atuação por meio do alcance da sua peça SOS Brasil, que nasceu, como disse, da realidade vivida do cotidiano de suas observações em 37 anos de serviços prestados à nossa comunidade.

- III
Explorei pontos de contato entre Antônio Ermírio e seus antecessores na cadeira nº 23. Deste modo fui tecendo uma malha de relações e equivalências para não só cuidar da memória, que é a sede da alma como dizia Sto. Agostinho, da cadeira nº 23, e da APL, mas igualmente nesta tessitura ir antecipando facetas da personalidade e da obra de Antônio Ermírio. É o que agora me ajudará a dar um foco mais preciso ao específico da sua identidade.

Emerson, em Representative Men, caracterizou-os como construtores dos mapas que ampliam as latitudes e longitudes da nossa condição, enriquecendo-nos a todos deste modo. Antônio Ermírio é paradigma de uma figura representativa. Definiu, no percurso de sua vida, novas latitudes e longitudes para o mapa do nosso país. O livro de 2008, organizado pelos confrades Gabriel Chalita e José Pastore, 80 olhares nos 80 anos de Antônio Ermírio, na diversidade dos seus autores e no pluralismo de suas perspectivas, ilustra esta dimensão representativa do meu antecessor nos múltiplos campos da vida a que se dedicou.

Na construção destes mapas Antônio Ermírio foi muito bem servido pela sua condição de engenheiro e empreendedor. Foi a partir desta condição que deu profundidade e abrangência ao legado de realizações da sua família, elevando o patamar de uma herança de múltiplos significados econômico, social, político pelo qual assumiu a responsabilidade de honrar e dar continuidade, com alto sentido de dever.

O engenheiro tem a vocação do concreto e seus conhecimentos estão a serviço de realizações singulares. Esta pode ser uma obra de arte, como lembrou no seu discurso de posse, nesta Casa, ao destacar que foi o engenheiro Euclides da Cunha, autor que ele muito admirava, que escreveu Os Sertões, edifício maior da literatura brasileira. Usualmente, no entanto, o engenheiro tende a uma realização material no âmbito de um espaço de limitações, valendo-se dos seus conceitos e instrumentos para elaborar uma solução concreta de problemas. A condição de engenheiro formado na Escola de Minas do Colorado, nos EUA, operacionalizou em Antônio Ermírio o empreendedor com qualidades schumpeterianas, dotado da visão de projetos difíceis mas possíveis, com capacidade de assumir riscos e o indispensável poder de convicção e convocação para mobilizar recursos e pessoas a fim de levá-los a bom termo.

Foi deste modo que Antônio Ermírio levou a bom termo a consolidação da Cia. Brasileira de Alumínio a CBA, a menina dos seus olhos no complexo Votorantin. Registro, com base na minha própria experiência no mundo da indústria e no conhecimento do papel do alumínio nas cadeias de produção da economia brasileira, que este foi um empreendimento da maior envergadura e de largo alcance. Antônio Ermírio conferiu a esta empresa de controle familiar, patamar próprio. Seguiu, neste sentido, com talento e perseverança, a lição de seu pai, José Ermírio de Moraes, grande liderança do processo de industrialização do Brasil, que identificou nas matérias primas nacionais os caminhos para os rumos industriais do Grupo.

De maneira análoga, no âmbito das atividades sociais, teve, como já mencionei, um papel estratégico na expansão e modernização da Beneficência Portuguesa, criando um novo patamar de excelência para um Hospital que tinha sido presidido pelo seu avô Antonio Pereira Ignacio e subsequentemente por seu pai, José Ermírio de Moraes.

Foi no contexto empresarial que inicialmente conheci Antonio Ermírio por meio de meu Pai, A. Jacob Lafer, que por ele tinha o melhor apreço, prezando a sua determinação, a sua dedicação ao trabalho e o seu gosto para tarefas difíceis, que também eram características do seu modo de ser.

Nosso confrade José Pastore, no seu livro ilustra o modo pelo qual Antonio Ermírio conduzia o seu cotidiano de trabalho. Por isso quero ilustrar um exemplo desta faceta com um episódio que acompanhei como jovem colaborador de meu Pai. Votorantim e Klabin associaram-se para, em parceria, fundar, na década de 1930, a Cia. Nitroquímica Brasileira. Subsequentemente, na década de 60 desfizeram, por mútuo acordo, a sociedade, por conta dos rumos próprios da natureza industrial de cada um dos grupos, como relata nosso confrade Jorge Caldeira no seu livro Votorantim 90 anos. No rescaldo desta negociação ficaram pendentes terrenos que pertenciam em condomínio às duas empresas. Antônio Ermírio e meu Pai assumiram a responsabilidade de equacionar o assunto. Meu Pai telefonou para Antônio Ermírio às 6:30 da manhã para tratar da questão. No dia seguinte, Antônio Ermírio telefonou para meu Pai às 6:30 da manhã para retomar a questão, encontrando-o, como era seu hábito, no Escritório. No terceiro dia, nestas horas matutinas, reuniram-se e, com idêntico gosto pelo trabalho, pleno domínio do assunto e gosto em dar solução para problemas, resolveram a pendência na fraternidade de espíritos que madrugam para cumprir as suas tarefas.

Numa digressão sobre a palavra empreendedor, Carlos Fuentes observou que aponta para a resolução de iniciar e fazer, indicando que isto frequentemente diz respeito à obra que inclui obstáculos e perigos. O empreender não se circunscreve ao campo da produção. Com efeito, é uma dimensão inerente à capacidade humana de criar coisas novas, associando pensamento e vontade. É uma vertente do initium e dos seus desdobramentos, de que trata Hannah Arendt na sua reflexão.

Antônio Ermírio, no seu percurso, deu início a coisas novas, alargando latitudes e longitudes que foram além dos indiscutíveis méritos da sua atuação no campo da produção e das atividades sociais. Foi o que o tornou representativo em outras esferas da vida brasileira, nos quais empreendeu e lidou com assuntos difíceis, trabalhosos e meritórios. No alargamento do seu escopo de atuação seguiu a estratégia do seu temperamento e da sua personalidade, valendo-se das virtudes da coragem e da generosidade que eram constitutivas do seu ser.

A coragem é o sentimento das suas próprias forças na definição de Montesquieu. É a virtude que nos permite, com firmeza, afrontar os perigos e suportar os trabalhos na lição de Cícero, e assim se contrapor ao “cauteloso pouco-a-pouco” registrado no verso de Mario de Andrade. A generosidade passa pelo coração e transita pela solidariedade. Tem em comum com a coragem, como lembra Comte-Sponville, a íntegra firmeza do Ser e de sua Alma, que orienta a norma da vida correta, para recorrer a Spinoza.

Foi no exercício dessas virtudes que se inseriu e conduziu-se no espaço público da palavra e da ação. Participou da elaboração e assinou, em 1978, o Documento dos oito, o significativo manifesto dos empresários em prol da abertura política, marco do processo de redemocratização matéria que acompanhei mais de perto porque dele foi signatário e também inspirador nosso confrade José Mindlin que, como Antônio Ermírio, nunca se sentiu à vontade e nunca aceitou o desrespeito aos direitos humanos na vigência do regime de 1964.

Foi um dos primeiros empresários a levantar a bandeira das Diretas-Já e, como relata nosso confrade José Pastore, mergulhou de cabeça nesta grande campanha cívico-política, percorrendo todo o Brasil, atento ao valor da liberdade e consciente que ordem sem liberdade é ditadura e que esta era prejudicial ao desenvolvimento do Brasil. Apoiou a candidatura e vibrou com a eleição de Tancredo Neves considerando-a, ainda que indireta, como o primeiro passo da redemocratização do Brasil.

Candidatou-se em 1986 ao governo do Estado de São Paulo. As vicissitudes e dificuldades da sua campanha foram admiravelmente relatadas por José Pastore, que foi seu colaborador nesta empreitada, destacando que a ela levou seu estilo de homem prático, que ao enunciar um objeto sempre explicitava o modo de alcançá-lo, destoando do estilo dos políticos, que costumavam prometer muito e fazer pouco. Confrontou-se, no processo eleitoral, com a “matéria bruta” da política a que se referiu Norberto Bobbio em O Futuro da Democracia.

Uma das expressões desta “matéria bruta” é a desqualificação, procedimento por meio do qual, numa confrontação, busca-se deliberadamente minar a integridade e a legitimidade do adversário. Visa-se, com isso, provocar para machucar. Antônio Ermírio, na sua campanha, enfrentou a “asfixia de rótulos”, que Paulo Bomfim nomeia em Prece, de “mau patrão”. Por isso o seu maior sofrimento, o sofrimento de um homem de bem, não foi perder as eleições, mas sim, no processo eleitoral, como sublinha José Pastore, “assistir de mãos atadas, a destruição da sua imagem de empreendedor, criador de empregos e parceiro de obras sociais”.

A dura experiência da sua campanha fez Antônio Ermírio deixar de lado a opção de participar pessoalmente da vida pública pelos caminhos do processo eleitoral. Encontrou, no entanto, um outro meio de exercer a cidadania, mais compatível com a sua maneira de ser, que foi o de atuar como intelectual público. Durante 17 anos seguidos assumiu, a convite de Octavio Frias, que o admirava, como relata Otavio Frias Filho no seu texto para 80 olhares nos 80 anos de Antônio Ermírio de Moraes, a responsabilidade de uma coluna dominical da Folha de S.Paulo. Nela empenhou-se, com a seriedade que dedicava a tudo o que fazia e sem deixar de lado as suas outras e trabalhosas atividades na Votorantim e na Beneficência Portuguesa. Contribuiu semanalmente para o debate dos problemas nacionais de modo construtivo. Valeu-se do exercício da liberdade de opinião e por meio do “uso público da razão” de que falava Kant, batalhou para um Brasil melhor, mais afinado com a sinceridade de suas aspirações cívicas.

Antônio Ermírio, tratando da gênese de sua peça Brasil S/A, registrou que o escrever a sua coluna para a Folha, nele despertou o gosto de jogar com a razão e as palavras. Também se deu conta, em função da sua candidatura ao governo de São Paulo, que a política tem muito de teatro e que se o script precisa ser bom e a interpretação é decisiva. Caminhou, assim, para sua incursão na dramaturgia, nela vendo uma outra maneira de discutir, por meio de suas peças e das suas encenações, os problemas do país. Dedicou-se, como narra José Pastore, às leituras de peças e das técnicas de redação teatral e aproximou-se, com humildade, da gente do teatro para aprender o ofício. Entre eles, o nosso confrade Juca de Oliveira.

As três peças de Antônio Ermírio tiveram como estímulo, de maneira coerente com seu percurso, três temas recorrentes da sua pauta de preocupações. Brasil S/A é uma crítica à especulação financeira. Provém da sua confiança na indústria como alavanca do desenvolvimento nacional e do seu apreço pelos que investem na produção. SOS Brasil tem como tema, como já mencionei, a precariedade dos serviços de saúde em nosso país, que ele conhecia “de dentro” e não “de fora”, em função da sua experiência na Beneficência. Acorda Brasil tem a sua raiz, como já lembrei, no drama da deterioração do ensino.

Nas suas três peças, que são representativas de um teatro de tese, Antônio Ermírio verbalizou a força dos seus sentimentos. Na tradição que, na nossa língua, remonta ao teatro de Gil Vicente, elaborou tipos e não personagens complexos como os do romance, para alcançar, pela simplificação, com eficácia, o espectador, sem deixar de lado, no entanto, por isso mesmo, as suas características de indivíduos vivos com suas emoções, visões e interesses. Apresenta os traços distintos e contrastantes de seus tipos, destacando seus vínculos com uma sóciopsicologia que observou no ambiente brasileiro. Buscou, assim, dar uma abrangência de outra natureza, distinta de suas intervenções no espaço público, à sua palavra e à sua mensagem.

No plano pessoal o teatro abriu para Antônio Ermírio, como relata José Pastore com a sensibilidade de amigo, o mundo das emoções, para o qual também contribuiu um contato mais próximo com a gente de teatro. Deu acabado alargamento a uma personalidade austera, com a vocação da disciplina do trabalho, generosa, com um arraigado sentimento de família e que teve a ventura de ter, no correr dos anos, na sua mulher e extraordinária companheira de vida, Maria Regina, o grande e constante amor de sua vida.

A doença dos últimos anos foi afastando Antônio Ermírio da vita activa tirou-lhe a capacidade de caminhar e de acompanhar o cotidiano. Morreu, como no poema de Augusto Frederico Schmidt, “como quem parte lentamente/Vendo o mundo perder-se pouco a pouco/E com o mundo as imagens da memória”. Mas morreu, como procurei indicar na articulação das grandes trilhas do seu percurso, “levando a vida já vivida!”, morreu, para concluir com a voz do poeta, “maduro e não qual fruto verde/por violência dos galhos arrancado”, como um ser que foi sensível e aberto às múltiplas dimensões do pulsar da vida.





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