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DISCURSO DE RECEPÇÃO PELO ACADÊMICO FRANCISCO MARINS
Acadêmico: Paulo José da Costa Junior
Ouvimos atentos vossa formosa oração que, obediente aos Estatutos, ateve-se a um breve retrospecto biobibliográfico das ilustres figuras que vos antecederam e tanto ilustraram, com suas presenças, ideais de vida e seus escritos, o nome desta Instituição.

Acabais de tomar posse - Senhor Paulo José da Costa Jr. - da Cadeira n.º 21 e cabe-me a honrosa tarefa de recebê-lo na Academia Paulista de Letras.
Ouvimos atentos vossa formosa oração que, obediente aos Estatutos, ateve-se a um breve retrospecto biobibliográfico das ilustres figuras que vos antecederam e tanto ilustraram, com suas presenças, ideais de vida e seus escritos, o nome desta Instituição.
Somos sensíveis aos propósitos de participar dos trabalhos e objetivos que mantêm viva uma associação, por mais de noventa anos, voltada para o amanho da língua, das letras, da cultura, mas que também, por seus titulares, lutou por cidadania, direito, liberdade, democracia e, ainda, viveu sonhos, transfigurados em escritos: prosa, poesia, ensaios - enfim em arte, nos seus belos significados, a lembrarem imagens do poeta, fundador de nossa Cadeira, nestes versos esculpidos:
"O sonho de beleza, esse estado de graça,
Não se fixa jamais: move-se com a vida.
A obra surge e resplende.
Ele prossegue e passa.
E a obra viva e perfeita é a que não foi concluída..."
Assim, na busca do permanente alguns eleitos tornaram-se credores das sentenças eçaqueiroseanas: ''A arte é tudo - tudo o resto é nada... Não morrerás inteiramente".
Em vossa peroração, quase evocatória de Alcântara Machado - e como aquela com treze listas de paulistanidade, concluístes: "Servir à Academia, o quanto possível, ou então amá-la com grande ardor".
Ao responder-vos, peço licença ao Senhor Presidente e aos nobres confrades para me referir, também, a alguns fatos gloriosos e a outros pitorescos, descontraídos, no sentido de amenizar-se a seriedade da sessão, em homenagem ao grande público que aqui comparece e tanto prestigia esta tradicional cerimônia de posse e recepção.
De forma individual e, também, coletiva, a Instituição, através de decênios, cumpre o seu papel. Para só nos referirmos aos últimos anos, bastaria um exame das resenhas de fim de exercício, exigidas com rigor pelo nosso Erwin Theodor e verificar-se-á quão prolíficas vêm sendo as atividades: publicação de obras literárias, ensaios, estudos, tratados; artigos jornalísticos, participações em Congressos no país e no exterior, em programas de rádio e televisão; discursos, conferências, além de colaboração continuada em nossa revista.
Reportemo-nos a alguns dos antecessores do recipiendário: Almeida Nogueira, o patrono, estaria a estabelecer desde o início, através de uma ponte ou "elevado", um imaginário "minhocão" a ligar o Largo São Francisco ao Arouche, pois foi ele professor de Direito nas Arcadas de onde, nos anos seguintes e até hoje, vieram tantos bacharéis, cujo número representa historicamente sessenta por cento de todos os titulares.
Outra coincidência a estabelecer "duas mãos" na imaginária via: Arouche de Toledo Rendom, o primeiro Diretor da Faculdade, teria seu nome ligado à praça onde se situa esta Academia.
O livro Tradições e Reminiscências, de Almeida Nogueira, foi, assim, o precursor de abundante literatura das Arcadas, com centenas de publicações até hoje, quando registramos A Folha Dobrada, de mestre Goffredo Telles Júnior.
O fundador - ÁLVARO GUERRA -, dedicado filólogo, haveria de marcar uma certa vocação para o estudo do idioma. E preocupou-se até com questiúnculas gramaticais, hoje despiciendas. Foi sucedido por: Otoniel Motta, Plínio Ayrosa, Afrânio Zuccolotto, Antonio Soares Amora... cultores do vernáculo: "Inculto e belo", "com trom e o silvo da procela ...", "o arrolo da saudade e da ternura", "o viço agreste", "e o aroma de virgens selvas ..." que continua "esplendor", mas não é "sepultura", pois hoje o império da lusofonia, abrange cerca de trezentos milhões de falantes e é a sexta língua do mundo, e como disse Maurice Druon, por ela "é a latinidade que se completa e se afirma". Mas a este assunto ainda voltaremos quando nos referirmos a confrontos, na era do "virtual" e da "globalização".
Ao referirdes, Senhor Acadêmico, a Freitas Valle, dissestes que, sob pseudônimo, suas obras principais foram publicadas e representadas em francês.
É fato conhecido que Valle, em seu salão "Vila Kyrial", estimulou jovens talentos e até levou-os a banhos de cultura em Paris. E, dizem as más línguas, tornou-se precursor do chamado "jeitinho" brasileiro, para driblar regulamentos, como usual hoje entre futebolistas, no tocante à idade, pois embora os artistas candidatos a bolsa de estudos devessem ter rigorosamente menos de 25 anos, muitos, quase quarentões, foram rejuvenescidos - o que, no caso da artista Anita Malfatti, tal mudança foi duplamente feliz - para conquistar a bolsa e remoçá-la!
Monteiro Lobato, Mário e Oswald de Andrade, entretanto, lançaram suas farpas: "Não queremos a europeização dos nossos artistas. ... Deixam lá a inspiração da juventude, trazendo de volta apenas o metro falso, de regras cediças e mal aprendidas. ... Voltam inermes, desmusculados, verdadeiros defuntos da arte!".
Era uma continuidade de reação nativista e de autenticidade, com antecedentes na Semana de Arte Moderna e que se projetaria para outros setores culturais.
Como crítica também aos freqüentadores daquele refúgio de privilegiados, cultores da prosa e da poesia, conta-se que um jornalista que passara rente ao muro ouviu gritos e lamentações. Tentou saber o que seria e surpreendeu-se: nada demais - os poetas, lá dentro, ciosos de tornar mais belos os versos, de metros corretíssimos, apenas "castigavam" o estilo!
A eclosão do movimento revolucionário de 32 colocaria nas linhas de frente e, também, na retaguarda, numerosas figuras que mais tarde se assentariam em nossas cadeiras. É difícil imaginarmos mestre Reale - hoje monumento vivo da Academia, no último ano homenageado e consagrado, urbi et orbi por sua Teoria Tridimensional do Direito - fardado, de brim cáqui, com bibi ou capacete de aço, lenço ao pescoço, empunhando velho fuzil nas trincheiras, como, também, Honório de Sylos, Ibrahim Nobre, Pacheco e Silva, Ernesto Leme, César Salgado, Odilon da Costa Manso...
A saga paulista, louvada por Ibrahim Nobre, como referistes, ainda não contada suficientemente, inspirou um vigoroso romance - Madrugada sem Deus - de Mário Donato, escritor da maior importância em nossa literatura, ainda pouco estudado. Refere-se ele ao episódio do Túnel e à ação do Trem Blindado, no clímax da epopéia.
No exame dos vários antecessores de vossa cadeira, também vos referistes a Leonardo Arroyo e a seu livro sobre literatura para jovens. Nele há justa menção a Marcos Rey, a ser lembrado pelas obras infanto-juvenis, no mesmo plano de destaque de seus romances urbanos.

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Sois - Senhor Paulo José da Costa Jr. - filho de advogado pelo lado paterno, neto de médico pelo materno e, assim, por progênie, às duas principais correntes formadoras do nosso corpo acadêmico.
Para efeito prático, ao traçar-vos a biobibliografia, sinalizo épocas: a do estudante acadêmico, a da vida profissional; ao périplo na Europa e África e às obras publicadas; umas consagradas ao saber jurídico e, finalmente, as coletâneas de pareceres, discursos, artigos, crônicas - bagagem que vos credencia merecidamente a assentar-se numa cadeira desta Casa.
Publicastes, Senhor Acadêmico, no último ano, 312 páginas autobiográficas para as quais escrevi algumas palavras introdutórias e destaquei o "momento supremo", indicador de uma decisão de vida a relembrar obra de Stefan Zweig, de nome similar. Pois, no dia de vossa última aula, ao sairdes para o Largo de São Francisco, ao lado de companheiros, realmente não fizestes o last bow, o último adeus, de lágrimas nos olhos, mas apenas dissestes um até logo... até breve..., pois do mais profundo do vosso ser já brotava a determinação de voltar sobre os passos, de novo alisar uma cadeira – esta não mais do aluno atento e receptivo, pois sempre fostes dos primeiros em notas, porém a do Mestre, capaz de traçar rumos à juventude, opor-se a normas retrógradas, ensinar para os embates da profissão e, também, da cidadania, já que a Escola do Largo sempre estivera à frente de seu tempo, nas lutas por ideais patrióticos, éticos, de liberdade e democracia. E, ao consegui-lo, tudo o mais viria em conseqüência.
Na publicação indicada mesclam-se lembranças e fatos da vida familiar, social e profissional e, conseqüentemente, de pessoas que se lhe cruzaram o caminho ao longo da jornada. E ficamos surpresos, tal a quantidade e a diversidade de nomes - talvez mais de mil, para compor um índice onomástico. Então perguntei ao Paulo se os possuía armazenados em computador, para repeti-los, como o fez, três a quatro em cada página. E admirei-me em saber que não. Isto faz lembrar Balzac - dos maiores romancistas de todos os tempos que, n'A Comédia Humana, creditada, em português, ao saber de Paulo Rónai, criara e fizera viver cerca de três mil e quinhentos personagens, sem o uso de recursos da Informática.
Entretanto, para traçar a bibliografia do prolífico autor de Eugène Grandet e Père Goriot, o crítico inglês Graham Robb? teve que se valer da parafernália da computação, que ajudou-lhe a invadir bibliotecas e museus.
Em referidas memórias - certamente do conhecimento da maioria dos presentes, amigos e admiradores - encontramos, nos cinco capítulos iniciais, as referências ao clã familiar; aos dias de meninice e juventude, alegres e despreocupados, no seio de família paulistana tradicional e abastada. Só houve uma turvação à época, quando fostes ameaçado de perda de visão, desgraça felizmente superada.
Naqueles primeiros tempos vos encontrastes, de forma descontraída, com heróis do imaginário, através de recontos de bons livros infantis, os quais vossa querida mãe bem conhecia e amava transmitir-vos, prática educacional infelizmente hoje rara nos lares, pois os pequenos quase sempre ficam à mercê de personagens esdrúxulas e dos malfadados vídeo-games e assistem, ao invés de estórias edificantes, apropriadas à sua idade, cenas de violência e de sexo e, quanto a estas, sempre como espectadores e não como participantes. E, também, não mais precisáveis só ouvir os Grimms, a Perrault, La Fontaine, Defoe, Swift, Collodi, Lewis Carrol, pois já surgira Thales de Andrade - pioneiro da literatura infantil do país - e Lobato com estórias brasileiras, a abrirem caminhos a todos que, no futuro, tentariam povoar de sonhos o mundo da criança e deles têm saudades como o nosso consagrado poeta Paulo Bomfim:
"Quem me devolve o menino?
Que varandas me convidam
A ser criança de novo?”
No Capítulo VI revemos vosso início de vida profissional a partir de modesto escritório na rua São Bento - "Um caminho de mil quilômetros começa com o primeiro passo", já dizia Lao-Tse. E bem levastes a sério a advertência de Calamandrei de "Troppi avvocati", procurando, em carreira tão competitiva, vencer pela competência, dedicação, honestidade. E àquela época, na qual nem pensáveis em serdes acadêmico, já constava da história da crônica Academia Francesa, modelo de quase todas as academias, que Richelieu expulsara, sumariamente, os advogados de seus quadros.
Alexandre Correia, renomado mestre de Direito Romano e tradutor da Suma Teológica, de São Tomás de Aquino, então vosso sogro, sabedor de que desejáveis prestar concurso à matéria, houve por bem estimular-vos sugerindo, antes, proceder a nova tradução das "Institutas de Justiniano", já vertida por Spencer Vampré. Devíeis começar afiando armas, ou melhor, carregando pedras!
Fatos intercorrentes vos levaram a não concorrer, nem executar a tarefa da tradução. A seguir viriam colaborações jornalísticas nas revistas Turf Ilustrado e O Coruja, e sinalizam-se lances de vida boêmia, os primeiros passos e alguns sucessos em incipiente advocacia criminal.
Mediante apoio de bolsa de estudos do Governo italiano estaríeis na Universidade de Roma, onde, graças a ingentes esforços, conquistastes o doutorado, cum laude, tornando-se o primeiro latino-americano a lecionar em uma cadeira na Cidade Eterna, fato que lhe conferiu o prêmio "Roquete Pinto" como personalidade do ano em 1969. Freqüentastes, também, a tradicional Universidade de Pavia.
Ao regressardes a São Paulo, ocupastes na Universidade Mackenzie a cadeira de Direito Penal e dedicastes anos de pesquisas à tese Do Nexo Causal, que julgais ser vossa melhor obra e fostes à disputa concorridíssima, na São Francisco, onde obtivestes, entre os candidatos, a maior média.
Vossa advocacia haveria de principiar pela revisão do processo do velho Meneghetti, personagem folclórica de ladrão, conhecido em todo Brasil. Lembro-me de que, certa feita, como estudantes da cadeira de Direito Penal, fomos visitar a Penitenciária de São Paulo e, ao chegarmos, recebemos pronta advertência: não ficar à frente da cela, pois o preso era useiro e vezeiro em saudar os visitantes com cusparadas.
Pouca gente se lembra dessa lendária e triste figura da crônica policial, cujos crimes seriam hoje considerados de bom seminarista, perto dos que abalam o país por sua violência - os de sangue e os que nos enodoam, respingados dos réus de colarinho branco.
Múltiplos foram os êxitos do criminalista em outros pleitos memoráveis, que não iremos recapitular e não haveriam de subir-vos à cabeça, e empavonar-vos, alterando a postura de homem modesto, cordial com os colegas e discípulos e fraternal com os amigos. Mais de trinta volumes ornam-vos a bibliografia, a saber: tratados e estudos da especialidade jurídica, pareceres, artigos, verbetes, prefácios, traduções: Do Nexo Causal, Tutela Penal da Intimidade (O Direito de Estar Só), Delito e Delinqüente, Comentários ao Código Penal, Direito Penal Objetivo, Agressões à Intimidade (O Episódio Lady Di), Curso de Direito Penal, O Crime Aberrante, Crimes contra a Administração Pública, Infrações Tributárias e Ilícitos Fiscais, O Crime do Colarinho Branco, etc. Nomeadamente, os títulos dedicados à interpretação e/ou ensino do Direito, pelas suas contínuas reedições, demonstram atender ao mercado específico a que se destinam.
Destaquem-se ainda: A Missão do Advogado, Criminalidade Organizada e, especialmente, Crônicas de um Criminalista, este a me recordar o livro As defesas que fiz no Júri... de Dante Delmanto, jovem que, vindo modestamente de minha cidade, Botucatu, se tornaria, por talento e esforços próprios, dos mais brilhantes criminalistas do país.
Naquele último volume enfrentastes com destemor e segurança alguns assuntos dos mais polêmicos e desafiadores da atualidade, marcando posição pessoal e original, mesmo quando em confronto ou em arrepio à doutrina, à sociedade e aos costumes: aborto, eutanásia, pena de morte, prisão perpétua, crimes hediondos, prolongamento artificial da vida, o direito de amar em paz, o direito de adoecer em paz, inimputabilidade penal, punição ao consumo de drogas, estupro, regime aberto das prisões, porte de armas, seqüestro, temas que geram manchetes, diariamente. E os discutistes à luz de novas visões e em linguagem viva e atraente, como convém a um bom cronista. E até vos aventurastes a meter colher-de-pau em assuntos de "cobras criadas" da crônica mundial: Ayrton Senna, vítima de homicídio culposo?; No julgamento do estupro de Mike Tyson houve componente de racismo?; Os paparazzi - responsáveis pelo desastre de Lady Di? As duas últimas crônicas, "Meu primeiro leitor" e "Rosas vermelhas", principalmente, nos tocam fundo por carregadas de sentimentos de afeto a seus genitores.
Permitam-me, ainda, Senhor Presidente e Senhores Acadêmicos, algumas referências a esta Casa de Cultura, que alguns chamam de Palácio, construído em época de homens probos, como os da estirpe de Goffredo Silva Telles, tão distanciados dos que se locupletaram à custa do Fórum Trabalhista de São Paulo.
Reportemo-nos a Pedro de Oliveira Ribeiro Neto, saudoso ex-Presidente, que pretendeu dar sentido didático no atendimento a grupos de professores e estudantes, que visitassem esta Academia, talvez na esperança de colher autógrafos de Guilherme de Almeida, Menotti, Cassiano, ou dos mais jovens - Geraldo Pinto Rodrigues, Lygia Fagundes Telles, Anna Maria Martins, Myriam Elis, João de Scantimburgo, Nilo Scalzo, e, para tanto, organizou, a exemplo dos grandes museus, um roteiro escrito de visitação aos vários andares e salas, com explicações relativas a pinturas, estátuas, mobiliário, fotografias, tapetes.
Destacaria ele a Biblioteca, do terceiro andar, como das mais ricas do país, porém ameaçada de falta de espaço para livros que fariam inveja ao nosso caro Mindlin. Não podia prever que, de futuro, a Enciclopédia Mirador, a mais volumosa obra de consulta editada neste país, com dezenas de volumes - 12.000 páginas e 14 milhões de palavras -, iria caber hoje em CD, do tamanho de um só dos volumes.
Em contrapartida, alguns profetas do futuro, ao lerem estrelas, cartas ou búzios, fazem previsões sombrias sobre o próximo fim do livro. Que mundo triste será esse! Antes profetizemos sejam eles desacreditados, como o foram Huxley, Orwell e Hermann Kahn. O rádio, o cinema, a televisão, a Informática seguiriam uma seqüência de canibalismo ou autofagia - uns devorando outros e o último eliminando o um.
Quanto aos livros: evidencia-se realmente o desaparecimento de livrarias tradicionais, o ressurgimento dos "sebos" e a vendagem por canais diferenciados e aposta-se que a indústria editorial do futuro será a do e-books. Como fato positivo, o sucesso das Bienais do Livro, que têm levado milhões de jovens a visitá-las. Mas, pergunta-se: Serão eles futuros leitores e compradores?
É previsível, e também desejável, que os amantes dos volumes impressos jamais venham a trocar totalmente os escritos pelas imagens, nos aparelhos. Sabemos que apreciam o cheiro do papel novo, da tinta. Percorrer as linhas, sentir a variação da tipologia, virar as folhas, fazer marcas e anotações, interromper a leitura quantas vezes quiser, descontraidamente, para volver depois ao já lido e apreciado. Isto quanto a volumes novos, pois quanto aos velhos até o cheiro de naftalina, para combater os papirófagos, é tolerado pelos poucos eleitos dessa rara paixão.
É preciso, porém, uma visão positiva em relação a estas mudanças e ao futuro, apoiando-nos e consolando-nos, mais uma vez, nos Evangelhos, Apocalipse 21,5, onde uma sentença premonitória nos faz meditar:

"Eis que eu faço novas
todas as coisas"!

O "Guia de Visitação" não destacou, como devera, uma sala especial, onde está o maior de nossos tesouros. Seus janelões se abrem para o verde esmaecido das árvores e as flores do jardim do Arouche e possui quarenta estantes repletas de obras de todas as cadeiras, a maior parte jamais será reeditada, mas que sem elas tornar-se-á impossível reconstruir-se a memória histórico-política e sociocultural de São Paulo e até do país. Em destaque a produção histórica de Afonso de Taunay - que alguns maldosamente diziam escrever "às toneladas" - e livros da maior importância de Fernando de Azevedo, autor de Cultura Brasileira, e Lourenço Filho, de Introdução ao Estatuto da Escola Nova. Estes nossos acadêmicos certamente deram as mais importantes contribuições, em todos os tempos, à renovação educacional brasileira.
Ao centro localiza-se mesa antiga e uma poltrona vazia. Ali se sentou um autor excepcional, que seria distinguido em qualquer país do mundo em que se valorize o trabalho intelectual.
Modesto e arredio, sempre mais a ouvir do que a falar, por trinta e quatro anos, quase diariamente com peregrina paciência e enorme saber, escreveu livros em prosa e versos. Artigos, discursos, adendas, subsídios literários e traçou a história da Academia para dois volumes comemorativos, sem saber se aqueles ao menos seriam publicados.
E quais foram os autores e livros traduzidos? Apenas a Odisséia e a Ilíada, de Homero; Clávigo e Estela de Goethe; Efigênia em Táuride, de Goethe, a Trilogia dos Niebelungos; as Tragédias, de Hebel; a Amazônia, de Genta; e, ainda, O Teatro Completo, de Shakespeare (tragédias, comédias, dramas históricos); e, ainda mais o Corpus Platonicum. Thdo a beirar uma centena...
O nome desse distinguido acadêmico, símbolo maior dos que cultuaram e valorizaram a palavra escrita, estará certamente inscrito no pórtico principal desta Casa, para que jamais possa ser esquecido - Carlos Alberto da Costa Nunes!
Apenas para amenizar: - estava o ilustre autor do "Guia da Academia", como cicerone de alegre grupo de jovens visitantes, quando, chegados ao átrio monumental, ia falar-lhes sobre as estátuas gregas, ouviu pergunta inoportuna, a evidenciar nossa precária imortalidade:
- Aqui é, também, o velório dos acadêmicos?
Preciso voltar ao art. 1.º do Estatuto, cada vez mais de objetivo inatingível: o vernáculo - como sinônimo de língua escorreita, com sinonímia autêntica, frente à Mídia, ao Virtual e à Globalização.
O dicionário pioneiro, de nosso patrício Antonio Moraes e Silva, de 1789, pai de todos os léxicos portugueses, é paupérrimo se comparado com o Dicionário Melhoramentos, o Aurélio e o "Houaisão", a sair, este com abrangência prevista para 400.000 verbetes e subverbetes, para atender a uma língua que, como dito, "cresce também à noite"! E já estamos condenados a conviver com velhas e novas palavras nossas ou ádvenas: "genoma, arroba. digital, chips, bytes, light, viés, clonagem, xerox, site, e-mail, efeito estufa e também com os www.com. ...". Mas admitir a invasão é "como rejeitar o clima". Sérgio Corrêa da Costa, em seu recente e volumoso Palavras Sem Fronteiras, prefaciado por Maurice Druon, da Academia Francesa, reconhece que, em quarenta e seis dos mais ativos idiomas do mundo, já existe um enorme vocabulário comum. Entre eles o português.
Outro dia ainda trocava idéias com dois enormes sabedores da História brasileira - meu amigo de infância e de toda a vida Hernani Donato e Odilon Nogueira de Matos - sobre um momento único na história da nossa língua. Aquele em que os marujos de Cabral ouviram, pela primeira vez, palavras em tupi-guarani e, o natural, desnudo, o português lisboeta. Nenhum deles se fez entendido. Que dia de glória para o idioma! Dois afluentes lingüísticos se encontravam, para mais tarde formarem um único caudal. A fala dos nativos, em certa época, quase sufocou a dos ádvenas, mas, como forma ágrafa, acabaria por sucumbir - scripta manent. Dois degredados da frota, conforme Pero Vaz Caminha registrou na sua carta-batismo do Brasil, foram abandonados no país dos "papagaios" e das "jibóias".
É certo que os portugueses, experientes conquistadores de mundos novos, quando tinham dúvidas a respeito da hospitalidade dos habitantes, faziam desembarcar os condenados, como "bois-de-piranha". Se mal recebidos, já estava feita a punição...
No caso daqueles dois infelizes, foi diferente. Tornaram-se, fato histórico, os primeiros estrangeiros a dialogar com os naturais, dizendo as suas e ouvindo novas palavras, no território que haveria de ser a pátria comum das duas línguas. É o que contam Varnhagen, Capistrano, Rodolfo Garcia e Eduardo Bueno, Afortunadamente o destino deles não foi o do primeiro cronista do Brasil, que jamais voltou a Portugal, pois sucumbiu em desastre marítimo nas Índias. Assim, não foram comidos pelos índios - porque durante os muitos meses de viagem não tomavam banho e, com cheiro tão forte, sua carne certamente não apetecera aos canibais...
Para concluir:
Em certo trecho de vossa oração, Senhor Acadêmico, dissestes: "Será a Academia o oásis em que irei retemperar minhas forças... e um dos raros pontos de refrigério...".
Estaríeis relembrando as palavras do pastor Títero, em resposta a Melibeu, da égloga virgiliana, tão bem traduzida pelo acadêmico Péricles Eugênio da Silva Ramos: "Deus nobis haec otia fecit"?
Realmente, Senhor Paulo José da Costa Jr., não podemos concordar em que Vossa Excelência venha, placidamente, colher ócios num suposto oásis, para se retemperar.
De minha parte, ainda com ganas de ex-Presidente, desejoso de determinar tarefas, caso os confrades apóiem a idéia, sugiro que nosso dedicado Israel Dias Novaes vos dê trabalhos, e muitos. Entre eles a primazia para, na próxima viagem de professor e membro de Academias da Itália, façais uma parada em Portugal, onde sois Doutor Honoris Causa da Universidade Católica, e vos encaminheis à Torre do Tombo - cuidado para não cairdes - e investigueis que palavras tupi-guaranis os dois degredados daqui levaram, para começar a enriquecer a língua e que explicações deram por não terem sido devorados e se aqui deixaram os primeiros mamelucozinhos?

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- Confiemos! Jamais perecerá uma língua em que estão os escritos de Camões, Eça e Saramago, d'além-mar e Machado de Assis, Euclides da Cunha e Mário de Andrade desta parte e possamos sempre repetir com Antonio Ferreira:

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"Floresça, fale, cante, ouça-se e viva
A Portuguesa língua!"

Parabéns ao novo confrade Paulo José da Costa Jr., lembrando-lhe os versos de Fernando Pessoa:

“Valeu a pena?
- Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena” .

Sêde bem-vindo à Academia Paulista de Letras!



Francisco Marins




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