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DISCURSO DE POSSE (20 DE SETEMBRO DE 1990)
Acadêmico: Benedicto Ferri de Barros
A imortalidade – qual bem sabemos! – não nos pertence, não está em nós, mas na vocação, no ofício e no ritual que esta casa celebra e que se resume à memória, registro e evocação da arte literária.

Cadeira se chama o lugar que ocupamos nesta casa. Na humildade de seu sentido não se poderia encontrar designação mais apropriada à modéstia de nossa posição e a precariedade de nosso direito de ocupá-la. Aqui não estamos vitaliciamente pelo mérito de trabalhos cujo valor somente os tempos futuros poderão eventualmente chancelar, porém, se bem entendo a finalidade e o espírito desta Academia, para, com a penúria de nossos recursos, não deixar que se percam o anônimo e o louvor da inteligência que se exprime pelas letras. E assim entendo, senhor presidente, que a fala cerimonial de investidura e posse do acadêmico deva se destinar à lembrança do brilho que a esta cadeira prestaram meus antecessores, como oficiantes que foram da inteligência dedicada à palavra usada na prosa e na poesia, também eles modestos herdeiros e orgulhosos portadores de uma imortalidade que a todos nós transcende.

A imortalidade – qual bem sabemos! – não nos pertence, não está em nós, mas na vocação, no ofício e no ritual que esta casa celebra e que se resume à memória, registro e evocação da arte literária. Memória. Outra coisa não há que vença a morte, cujo nome verdadeiro é esquecimento; assim, entre os homens o nome singelo da imortalidade é lembrança e à de meus antecessores dedicarei minhas palavras.

Antes, gostaria, porém, de aprofundar um pouco o significado do ritual que neste instante me orgulho de oficiar. Durante incomensurável passado o homem esteve, como todos os seres, sob o império da zoologia e a lei da morte. Sua presença nada acrescia ao mundo. Seus pensamentos morriam com eles; o esquecimento apagava seus feitos e suas palavras. Inexistia a imortalidade, a história inexistia. Ela se iniciou com a lembrança; a lembrança é a história e a história se inaugura com as letras.

São elas que cultuamos nesta casa.

Para melhor compreender sua relevância, socorro-me das reflexões profundas, inspiradas e luminosas que Lewis Mumford desenvolveu em seu estudo sobre “A Cidade na História”, nos capítulos em que tenta recuperar onde se acha a contribuição da polis grega para a humanidade. A Acrópole e o Partenon não guardavam a resposta que ele procurava, apenas propunham com a grandeza de suas ruínas o mistério do milagre grego. “… as pedras de Atenas – conclui – não nos revelariam a história (desse milagre) se nos faltassem os documentos escritos. “E esses documentos não têm o simples efeito de nos permitir decifrar as ruínas portentosas, mas o de esclarecer que elas não passam do exaltado testemunho de um milagre que as produziu e que se encontra em outra parte: na inédita e inaudita safra de personalidades criativas que durante um século, pelo culto da inteligência e o ofício das palavras, asseguraram a imortalidade cultural da Grécia.

O culto da polis, de que a Acrópole se tornou o símbolo, o altar, a legenda e o mito, escamoteia as raízes do espírito que a produziu. Sob sua forma imortal e imperecível, Mumford vai encontrar a origem do esplendor intelectual grego, entre tantos outros aspectos, no fato de que a cada ano, um ano após outro, durante um século, algo assim como “dois mil atenienses (um de cada vinte cidadãos de pleno direito) tinham de memorizar as palavras, aprender a música e praticar as figuras de bailado de um coro lírico e dramático. ” Atenas era um teatro da inteligência e os atenienses seus atores. Foi essa prática coletiva (hoje diríamos: mercado cultural) que no breve lapso de quatro gerações (até 406 a.C.) criou condições para que se escrevessem e encenassem 1.200 dramas, entre eles as cem peças de Sófocles e as outras tantas de Ésquilo, Eurípides e dezenas de outros dramaturgos. Ao esquecimento – nome autêntico da morte entre os homens – se deve o fato de que esse portentoso acervo não se tenha preservado mais do que um punhado de obras, cuja lembrança, entretanto, bastou para lhes assegurar a imortalidade. Embora Atenas tenha tentado narcisistamente imortalizar no mármore sua glória e capitalizar em seus momentos e estátuas o gênio grego, não foi nessas ruínas nem na democracia ideológica exaltada por Péricles que o legado da Hélade se imortalizou. Para Mumford, mais em Delfos, Olympia e Cos se exprime o gênio helênico do que na orgulhosa e imperial Atenas, e nesta, mais nas figuras humanas de Sófocles e Sócrates que sobrevivem nas palavras que nos legaram. Pois, muito depois que a morte engendrada pelo clima, pelo fogo e pela terra consuma as derradeiras colunas do Partenon, permanecerão vivas na memória humana os monumentos deixados por Sófocles e Sócrates, exemplos do espírito traduzidos e gravados pelas letras. O milagre grego é o milagre do pensamento e nas letras – só nelas – ele encontra o invólucro de sua eternidade.

E é isso que cultuamos nesta Casa.

Passo a outro símile, com que Eliot volta a apontar, em nosso tempo, o caminho e o lugar da imortalidade, o nunca e sempre. Então e ali, na Inglaterra, em “Little Gidding” foi ele oficiar o culto que transcende a morte. Não estava este culto na cega aceitação dos mestres que se foram; mas tudo estaria bem se os oficiantes da palavra recuperassem a memória de quantos se foram, pois, nessa lembrança se acha a vitória sobre a morte.

Aqui e agora, como em “Little Gigging”, não estamos em busca de nenhum fim ou sentido, para saciar vaidade ou curiosidade, nem para dar um relatório, mas tão somente para recuperar na lembrança a voz de mortos queridos, posto que “as vozes mortas falam com fogo maior do que a dos vivos”. O que pretendemos não é restaurar o espectro de uma rosa morta, mas pelo ofício da lembrança comum dizer uma prece que empunhe a própria rosa. Como fez Buda ao transmitir toda sua doutrina simplesmente oferecendo aos seus discípulos uma flor.

***

Na realidade, senhor presidente, relembrando embora o alto significado das letras e desta Academia, aqui e agora meu propósito é mais humilde e minha tarefa mais simples e mais fácil. Não tenho de oferecer-vos doutrina alguma. Não necessito ir tão longe no espaço quanto Eliot, nem tão distante no tempo quanto Mumford. Aqui e agora nesta Academia, tenho apenas de invocar a memória de alguns poucos antecessores, tão próximos de vós e de mim próprio, que quase me basta estender a mão para alcançá-los: cujos registros cronológicos coincidem quase com os limites de minha memória pessoal e cujas preocupações, espírito, feitos e palavras, sob não poucos aspectos se confundem com os meus.

Eis que Paulo Egídio de Oliveira Carvalho, patrono desta cadeira, valeparaibano, nasceu ali em Bananal, nas vizinhanças mesmo de São José do Barreiro, onde nasci. Eis que toda minha infância me acompanhou, zelando por minha saúde de caboclinho perdido nos socavões da Mantiqueira, como bíblia médica de minha mãe, o “vademecum” de homeopatia de Alberto Seabra, um dos fundadores desta Academia, que escolhera Paulo Egídio para patrono desta cadeira. Eis que Thiollier, segundo ocupante desta cadeira, Secretário-Geral, Presidente desta Academia, se torna seu Secretário Perpétuo a partir de 1941, precisamente um ano depois que para São Paulo me mudei e onde desde então perpetuamente vivo. E finalmente eis que, nesta casa e neste mesmo lugar, vim a conhecer Maria de Lourdes por ocasião da conferência que pronunciou sobre José Geraldo Vieira, em uma das raras vezes que aqui estive, antes de conduzido pelos fados, vir a ocupar a vaga que ela deixou. Assim, o que vos tenha a dizer, assume quase um ar de serão em família, onde menos novidade haverá e, mais, a comunhão de lembranças.

Neste particular, achai-vos até melhor preparados do que eu, pois não poucos conheceram e conviveram com Thiollier e maior número, a partir de 25 de junho de 1969, quando Maria de Lourdes assumiu esta cadeira, teve durante 20 anos a oportunidade de estreita convivência com ela.

Sou eu que devo, assumindo seu lugar, esforçar-me para encontrar na recuperação de lembranças de outros, eventuais afinidades que me ponham a cômodo na posição que vim a ocupar. E em meus três antecessores acho não poucas coisas comuns. Foram todos eles jornalistas, eventuais ou de vida inteira. Encontro em Paulo Egídio, e em Alberto Seabra, uma preocupação de publicista, em prol da modernidade brasileira, que norteou toda minha vida intelectual. E em Thillier, um verdadeiro motor de arranque para as atividades culturais que dilataram o futuro e resgataram o valor do passado para a cultura brasileira – o objeto maior de minha paixão intelectual. Em seu discurso de posse, Maria de Lourdes esclareceu a que ponto foi ele o viabilizador, empresarial, se diria, dos eventos pelos quais se realizou a Semana da Arte Moderna em São Paulo, assim como foi ele que operacionalizou a caravana de paulistas que acompanhou Blaise Cendrars à redescoberta da Minas colonial – a Acrópole do nosso passado. Com ela observa agudamente: “sem o toque de rebate do Movimento iniciado em São Paulo em 1920 (…) teria nascido tão robusto e vivaz o romance nordestino de 30? Teriam sido realizadas as punções modulares de nosso passado que foram Retrato do Brasil de Paulo Prado; as Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda; Populações Paulistas, de Alfredo Ellis Júnior; Canaviais e Engenhos na Vida Política do Brasil, de Gilberto Freyre, para nos atermos apenas a alguns livros fundamentais da nossa sociologia? Seria tal como é o mundo sertanejo-universal de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, que tanto deve ao nosso Mário de Andrade? (…)” Nos movimentos culturais, detonando e viabilizando qualquer evento, há sempre uma ação energética, e nos casos citados, assim como na fundação da Revista desta Academia, foi Thiollier a força atuante decisiva. É simples reconhecimento de como operam os acontecimentos histórico-culturais identificar na ação de Thiollier o disparo que ampliou a consciência de modernidade e brasilidade para a inteligência brasileira, e não apenas nas artes e nas letras, e que de lá para cá, nos fez a um tempo mais brasileiros e mais modernos. Encontro nesta espécie de empresariamento intelectual exercido por Thiollier conhecido impulso íntimo, que em outros campos culturais, me levou a agir, editar, lecionar e promover eventos. E assim, sem nenhuma veleidade de fazer paralelos descabidos, tenho experiência para compreender e avaliar o gesto que esta Academia lhe fez, prestando-lhe o maior tributo e homenagem que jamais prestou a um de seus membros, aclamando-o por unanimidade seu Presidente de Honra, por ocasião da última visita que fez a esta casa.

Inutilmente tentaria acrescentar ao seu perfil e ao de sua obra, traços que Maria de Lourdes já não haja apurado no seu discurso a que referi. E, se quiser completar o traçado literário de sua personalidade e de sua obra com a figura de sua pessoa, lá a encontraremos, na galeria de nossos presidentes, e ainda mais viva, se possível, na sala a que a Academia deu seu nome. Teremos então de volta conosco, aqui e agora, René Thiollier, de como presente, já que seu espírito permeia por inteiro esta casa e a memória de quantos aqui o conheceram.

Outro traço de união vou encontrar com meus antecessores na inclinação eminentemente humanista de seu espírito, e, mais particularmente, neste caso, em grande parte dos trabalhos do patrono desta cadeira, fundador do Instituto de Sociologia de São Paulo, e que se sentiu especialmente atraído para assuntos de sociologia, economia e política, que integram a área de ciências sociais e de antropologia em seu sentido mais amplo, campo em que me formei e que polarizou grande parte de minhas indagações intelectuais. Assim, ao recuperar rapidamente o perfil de meus antecessores, conferindo analogias e afinidades espontâneas que ocorrem com minha trajetória me deu conta, entre surpreso e grato, que nada mais represento nesta cadeira que o prosseguimento de alguns dos seus principais motivos intelectuais.

***

É, entretanto, de Maria de Lourdes Teixeira que me sinto mais perto, não apenas, obviamente, por razões de tempo e espaço, mas principalmente por afinidades e preocupações no campo específico das belas-letras. Foi ela uma ensaísta, como sempre fui em meus trabalhos literários mais sérios, e, diversamente dela, não fui o romancista que ela sempre foi, vocacionalmente gostaria de ter sido, mas não pude ser. Encanta-me em seu trabalho a solidez e discrição de sua cultura, a multiplicidade de seus interesses, a versatilidade de seus temas e de suas explorações, a amplitude de seus horizontes, seu carinho pelas coisas próximas e locais e sua curiosidade pelas coisas distantes, tudo espelhando a abertura de seu espírito e a grandeza a um tempo forte, suave e humana de seu coração.

Sua vocação literária é congênita, pode-se dizer. “Fui uma criança solitária, calada e imaginativa. Não gostava das brincadeiras coletivas, barulhentas e animadas das garotas da minha idade. Preferia brincar sozinha, umas vezes com minhas bonecas humanizadas por minha fantasia, e, na maioria das vezes, com personagens imaginários cujos nomes e feições eram conforme meus desejos e preferências.” - ela nos conta em seu último livro, “Carruagem Alada”, um genuíno voo de pássaro sobre sua vida tão bela e rica. Pode-se ver a ficcionista aprendendo a lidar com seus materiais.

Mas se aos treze anos, acolhida por Menotti Del Picchia ela já se pode ver em letra de forma na revista “Papel e Tinta”, por essas coisas da vida que levam o povo a dizer que “Deus escreve direito por linhas tortas”, Maria de Lourdes há de por decênios conter sua pena e preparar-se, preparar-se como ninguém, para sua futura carreira e produção literárias. Por anos e anos ela mergulhou nas letras e viveu, pode-se dizer, exclusivamente de literatura, preparando-se e acrescendo para quando chegasse sua hora e vez de viver para ela.

O resultado é que seu primeiro livro, “Alfeu e Aretusa”, de 1950, já nasceu premiado, evidenciando uma autora madura de vida, de cultura e de estilo. Daí para “Carruagem Alada”, num intervalo de 36 anos, Maria de Lourdes publica 18 volumes e colhe 5 dos mais altos prêmios literários do país, outorgados pela Academia Brasileira de Letras, pelo Pen Clube, pela Câmara Brasileira do Livro, pela Prefeitura Municipal de São Paulo e por esta Academia, na qual será a primeira escritora a ser admitida. Esta facúndia é tanto mais notável quando se observa que após a publicação dos três primeiros livros, Maria de Lourdes parece recolher-se novamente, para somente voltar a produzir dez anos mais tarde. A “Alfeu e Aretusa”, de 1950, seguem-se em 1951 “O Banco de Três Lugares”, sua primeira obra de ficção, premiada pela Academia Brasileira de Letras, e em 1952, o ensaio biográfico sobre “Graça Aranha”. Entretanto, apenas em 1962, aparecerá novo livro seu, “Raiz Amarga”. Daí por diante, até 1972, ela terá produzido mais oito volumes – um livro por ano, quase.

Não teria sido possível manter um fluxo dessa natureza consistentemente, sem a densa acumulação de vida e literatura de seus anos de recolhimento e preparação. E consciente foi sua produção, como o atestam não apenas os prêmios que recebeu mas o depoimento dos comentaristas e críticos de todo o país, que acompanharam sua obra e cumularam de louvor seu trabalho literário, a partir de Menotti Del Picchia, Sérgio Milliet, Tasso da Silveira, Josué Montello, Adonias Filho, Fausto Cunha, Antônio D’Elia, Jorge Amado, Valdemar Cavalcanti, Homero Silveira, Caio Porfírio Carneiro, Nogueira Moutinho, entre tantos outros…

Nogueira Moutinho, prefaciador de sua “Carruagem Alada”, é quem, em rápida mas densa passagem, nos revela o que fazia essa incansável escritora que por dez anos, aparentemente, abandonara a literatura. É que Maria de Lourdes transferira suas energias de escritora para viver ampla e intensamente a vida intelectual e literária do país. “Um dos espaços axiais da inteligência metropolitana nos decênios de 50 e 60, - conta Moutinho – a residência de Maria de Lourdes Teixeira e de José Geraldo Vieira polarizou, nesses anos de efervescência plástica e poética, tudo o que havia de melhor em São Paulo. Todos os grandes nomes intelectuais brasileiros e estrangeiros que se cruzaram em Piratininga, por lá passaram. Da Geração de 45 às primeiras Bienais; dos Suplementos Literários às tardes no eixo Marconi-Barão de Itapetininga; dos congressos às associações e clubes de escritores e poetas; do já meio mítico Oswald de Andrade aos jovens plumitivos aliteratados…” participavam todos da festa que Maria de Lourdes se dava e dava a São Paulo, integrando quantas Comissões, Conselhos e empreendimentos culturais se promoviam na Capital. Ela os chama assim mesmo, de seus Anos de Festa.

***

Vista em conjunto, sua obra de escritora se divide em dois ramos principais: a ficção e o ensaio – naquela o romance e o conto, destacando-se entre os ensaios as biografias, os trabalhos sobre Goethe, Graça Aranha, Gregório de Matos. No romance, o núcleo do seu esforço está voltado para São Paulo, cuja vida se retrata no quarteto “Raiz Amarga”, “Rua Augusta”, “A Viagem Noturna”, “O Pátio das Donzelas” – a “paulicéia desvairada” que vinha se transformando nesta nossa louca metrópole “megalopolitânica”. “Raiz Amarga”, de 1962, é saudada por Jorge Amado, como o primeiro grande romance de São Paulo, isto é, paulistano. Junte-se a tudo isto as centenas de artigos e conferências e se terá uma ideia da intensidade intelectual de Maria de Lourdes Teixeira.

Não cabe nos propósitos desta solenidade nem na finalidade de minha fala, a análise crítica da escritora, nem o relato de sua biografia, tão belamente bosquejada por ela mesma nesse livro de sabedoria e de ternura pela vida que é “Carruagem Alada”.

Não quero me furtar, entretanto, de dar um pequeno, mas para mim intenso testemunho pessoal, da riqueza e força da sua personalidade. Não a vi senão uma vez, por ocasião da conferência que aqui pronunciou sobre José Geraldo Vieira, ainda que, posteriormente tenhamos nos correspondido brevemente. Mas os instantes tão breves desse encontro significaram para mim uma experiência poética, aquele gênero muito especial de acontecimentos que, falando a nossa sensibilidade, espontaneamente se transformam em poemas, e que registrei assim:

AVEZINHA TÁRTARA

… assim você me pareceu:
- à distância, com seus olhos
mongólicos e nítidos
como os de um pássaro;
- e próxima, quando sua mão
plácida e cálida
por um breve-longo momento confiantemente se aninhou na minha
e a senti pulsando:
irmã… irmão… irmã…

E, em seguida, ecoando o inusitado carinho da primeira imagem o complemento uma explicação:

TARTÁRIA

Na Tartária nunca estive
salvo, digno,
na memória da infância
quando explorava o mundo colecionando nomes, figuras
e lugares – atlas que utilizo
ainda hoje. - Tartária?
Vejo-a em nítida
em gravura:
as estepes
como se foram brancos lençóis
de neve postos nos campos
a coarar; no fundo do horizonte
negras montanhas com seu capuz
de gelo; o boi iaque encapotado
e – no primeiro plano -
ao lado de seu peludo
cavalo de pano, um guerreiro
vestido de peles, um arco à prumo,
o sabre na cintura,
e sob o gorro de peles,
duas frestas oblíquas, de onde
escondido, ele me espreita.
Também o fito.
E ambos nos olhamos
como se examinássemos
uma nédia marmota inesperadamente
achada sobre o gelo.
Mas, claro: não há marmotas
na Tartária – só nas superpostas
gravuras poéticas da infância.

Eu queria dizer que ao encontrar Maria de Lourdes era como se reencontrasse uma irmãzinha de infância, com quem houvesse em criança partilhado o encantamento de descobrir num livro uma marmota e lugares maravilhosos e estranhos… Como ela, assim, agora me parecia: uma pessoa que era um lugar e um acontecimento no mundo. É esta imagem de espanto e de ternura que trago no momento em que assumo a cadeira que ela ocupou.

***

Permita-me, senhor presidente, que afinal, gaste vosso tempo e atenção para vos exprimir, e a todos aqueles a que doravante me orgulho de chamar confrades, a gratidão e espanto por me haverdes admitido a esta casa e ao vosso convívio. A gratidão vem de estímulo que constitui para minha vida intelectual a fértil convivência com conhecimentos, saber, talentos e inteligências tão variados, em um clima onde a fraternidade de espírito proporciona o calor e a companhia tão carentes na solidão natural do esforço intelectual.

O espanto tem outros fundamentos.

O lado visível de toda a minha vida intelectual se apresentou em sua maior parte em jornais, onde, a partir de 1945, mas sobretudo no último quarto de século, mantive duas colunas onde editei mais de 1.000 artigos, superando 5.000 laudas, massa equivalente a matéria de mais de vinte livros de 200 páginas. Ora, excetuada talvez a televisão, não há veículo mais predador da inteligência e das belas-letras do que o jornal, disparado pela urgência do tempo, devorado em seu espaço pela premência do faturamento, a cada dia editorialmente mais acuado pela maré montante da ignorância das ideias e de vocabulário da massa leitora que assegura os “ibopes” de circulação. Sem dúvida deliberadamente me pus contra essa corrente, não por elitismo, mas justamente por considerar que em um quadro cultural tão jovem e carente quanto o nosso o publicismo de ideias tem uma função intelectual de elevado sentido democrático. Sabe-se, entretanto, que triste destino aguarda ideias postas em jornais amanhecidos e que retorno e edificação intelectual se pode esperar disso: na melhor das hipóteses, verem-se adotadas, anonimamente, ideias pelas quais se lutou durante anos, e, com isto, o esquecimento – vale dizer, a morte intelectual. Nas colunas obstinadas desse meu jornalismo se acham soterrados alguns livros, dos quais até agora só tive tempo para resgatar Japão, a Harmonia dos Contrários – e, assim, continua a constituir um mistério e um espanto para mim os meios e caminhos pelos quais vim a me tornar merecedor de vosso conhecimento e estima, ao ponto de me julgardes dignos desta casa e de vossa convivência – não seja o fato de que a grande maioria de meus companheiros acadêmicos também passou e tão bem conhece as grandezas e misérias intelectuais que o jornalismo impõe a nossa literatura e ao nosso trabalho. O mistério e o espanto permanecem; mas não obscurecem minha gratidão por vossa atenção e generosidade.

Muito obrigado.




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