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DISCURSO DE RECEPÇÃO PELO ACADÊMICO FRANCISCO MARINS
Acadêmico: Hernâni Donato
Hernâni Donato, escritor do Peabiru - A Academia Paulista de Letras engalana-se hoje, num dia de glória e de espera, para receber-vos, como o mais novo membro de sua grei, eleito para vos assentardes aqui até à morte, pelo trabalho já produzido como autor fecundo em múltiplos e variados gêneros - mas, e ainda, pelo muito que a cultura deste país espera de vossos talentos, vocação e inegável tenacidade.

Pejado de lendas, dúvidas e mistérios, mas alicerçado no testemunho de abundante crônica histórica, existiu um caminho pré-colonial, via indígena de penetração, que partia do lagamar santista, galgava o planalto e desbordava no rumo das brenhas do Oeste, desconhecido e selvagem, vincando morros e rasgando a mataria. Por ele jornadearam: o índio, primitivo e injustiçado dono do chão, o sacerdote que tentou fazê-lo beijar a cruz, o soldado que preferiu convencer com a espada e o - bandeirante de punhos e botas pesados - que não podiam ser contidos; entrecruzaram-se nas longas caminhadas, em que cada qual carregava sua sementeira no bornal, alforje, gibão ou sotaina, mas, irresistivelmente, alargavam a conquista num misto de sonho, de aventura, de decisão e de coragem.
Aquele traçado, a que se chamou de Peabiru, desde Piratininga buscava Sorocaba e dali infletia para a fazenda de Botucatu, na serra, e, além, ia em direitura do Paranapanema, buscando o território das missões para alcançar o Rio Paraguai. Pelos tributários, poderia o aventureiro chegar até às terras dos incas.
Tão extenso era aquele caminho, mais de mil e duzentos quilômetros, traçados num vazio hostil e impenetrável, que o imaginaram, naqueles tempos, obras dos céus - milagre caseiro de Pai Sumé ou, de maior monta, São Tomé. E até encontraram, em vários pontos ao longo do traçado, as pegadas do demiurgo, chapadas indelevelmente nas pedras.
O Peabiru foi um varadouro civilizador para nossas terras e correspondia-lhe uma grande família cultural - a dos tupi-guaranis.
No ciclo áureo das bandeiras, o Peabiru caiu em desuso. É que, a seu lado - rolando suas águas e oferecendo menor soma de sacrifícios ao viajor aventureiro - estava o Anhembi.
E muitos preferiram ir ao sertão em canoões, mesmo que tivessem de carregá-las pelos varadouros.
O Peabiru, nos anos que se seguiram, caiu no olvido. Afogou-o a mataria invasora. Mas, por vários séculos, todas as trilhas em que se desgalhou a primitiva grande rota, até os caminhos de ferro implantados pelo pioneirismo paulista do café, seguiram obrigatoriamente o seu traçado.

PEABIRU LITERARIO

Hernâni Donato, escritor do Peabiru - A Academia Paulista de Letras engalana-se hoje, num dia de glória e de espera, para receber-vos, como o mais novo membro de sua grei, eleito para vos assentardes aqui até à morte, pelo trabalho já produzido como autor fecundo em múltiplos e variados gêneros - mas, e ainda, pelo muito que a cultura deste país espera de vossos talentos, vocação e inegável tenacidade.
Repetistes coincidentemente, em vários passos de vossa jornada de vida e nas inúmeras tarefas de escritor, a vocação desbravadora de um Peabiru literário. Os temas da aventura, do desbravamento e da conquista, inspiraram vossos dias de moço livre e lutador, entregue a bem ásperas caminhadas. Nelas, porém, estivestes, sempre, fiel à rota de terra, ainda que terrivelmente íngreme e penosa, enquanto a vosso lado deixastes rolar as águas mais mansas dos Anhembis literários, com remansos e fascinações; continuastes, assim, fiel aos primeiros amores, aos sonhos de infância, que, de regra, não geram riquezas nem glórias, mas identificam as criaturas com Deus, com a natureza, consigo mesmas e, assim, as tornam mais autênticas e felizes. Bendito, pois, o vosso Peabiru literário, de rota áspera, aventureira e salvadora, buscando os confins, nem sempre inatingidos, dos Andes ou dos incas; mas, num caminhar seguro pelos vossos próprios pés, que sangraram, certamente, porém avançaram com as próprias forças, estribadas na vontade, na determinação de não parar. . .

ESTREITA É A PORTA...

Em verdade, no pórtico de "Os Filhos do Destino" com que iniciastes o ciclo dos vossos romances de fundo social, inscrevestes, citando Mateus, - "Estreita é a porta e apertado o caminho para a vida" - e dedicastes aquela obra aos imigrantes - de todos os tempos e lugares, isto é, toda a humanidade, porque se uns chegam, outros se vão, através do jornadear dos povos ao longo da história e, por isso, todos somos irmãos - dedicastes, dizia, no fundo, ao imigrante vosso pai - que chegou no bojo de um navio ao porto de Santos, como milhares de outros ádvenas, que buscavam uma nova pátria para nela arregaçar mangas e puxar enxadas na maior lavoura cafeeira do mundo, a de São Paulo, ou erguer casas e igrejas, imigrante que, do planalto piratiningano, iria caminhar, nos rumos indicados pelo Peabiru, até fixar-se no alto da Serra, nas terras de Botucatu.
Ali, nascestes, escritor Hernâni Donato, naquele ano agitado em que, em São Paulo, ainda ecoavam as vozes dos que se batiam por novas formas artísticas na explosão da Semana de Arte Moderna. Menotti del Picchia, Guilherme de Almeida, Mota Filho, Plínio Salgado, Cassiano Ricardo, para só citarmos os nossos companheiros de Academia, traçavam rumos para uma tentativa de renovação cultural, renovação a que iríeis emprestar mais tarde, também, dentro de suas características, a vossa contribuição.

PORTA-BANDEIRA

"Apertado o caminho para a vida...", repetistes, com Mateus. Duros, realmente, os primeiros anos do menino interiorano que iniciava passos vacilantes no curso primário anexo à Escola Normal, a "escola da grande via-láctea".
Um acontecimento marcaria aquele período de vossa vida:
Aquela manhã de 7 de setembro, distante no tempo, mas tão próxima na vossa saudade, recordo-vos, Sr. Acadêmico, era de dia festivo no grupo escolar, pois o estabelecimento devia comemorar a grande data com desfile pela cidade, que se engalanava. E a presença dos meninos, em seus uniformes, o rufar dos tambores da fanfarra, os aplausos, a bandeira desfraldada, tudo punha arrepios naqueles coraçõezinhos inquietos...
Sim, a bandeira devia ser conduzida em festas. Mas somente por uma reduzida guarda de honra.
Na pré-véspera, pela vossa classe, correra um frêmito de ansiedade. Quem seriam os meninos escolhidos para tão honrosa missão de conduzir o pendão auriverde?
- Só os melhores, os que se destacaram!
E havia, ainda, a competir, os alunos de outras classes. Como tudo na vida: poucos seriam os escolhidos!
Felizmente, um dedo amigo apontou para um garoto de olhar sonhador encolhido a um canto da sala, que haveria de tresnoitar, depois, febricitante de entusiasmo, por estar entre os eleitos que conduziriam a bandeira.
Na manhã ensolarada, os olhos vermelhos de pouco dormir, no seu uniforme branco e o mais engomado dentre todos, o peito arfante, abraçara a mãe e saíra a correr, coração aos saltos, para aquele que deveria ser o seu primeiro dia de afirmação e glória. . .

SONHOS DA INFÂNCIA

Consta da biografia do escritor futurólogo Júlio Verne que, em muitas tardes de sua adolescência, à beira do cais, lera embevecido as extraordinárias aventuras do Barão de Münchhausen; e tal emoção e fascínio lhe despertaram que, desde muito jovem, formulara um plano: o de levar a outros, algum dia, as mesmas alegrias por ele provadas. Que mundo mágico começara a ser criado naquela cabecinha, cujo pensamento mais tarde transporia as fronteiras do tangível numa antecipação do futuro?
Contastes, senhor acadêmico, ainda há pouco o espisódio do primeiro livro, que tão fundo marcou a vossa sensibilidade e que talvez vos despertou a vocação para o mundo das letras, um livro de marinheiros, navios e lutas no mar. Pergunto-vos: fora ele o inspirador da novela escrita a quatro mãos, "O Tesouro", com dezenas de capítulos e heróis, e flibusteiros e batalhas sem conta, em que deixáveis as soluções azaradas para o companheiro completar?
Na formação do futuro escritor, realmente influíram também os serões literários da província - repetindo fenômeno encontradiço em cidades do interior brasileiro - tal como anos antes, no grupo de Lobato e Godofredo Rangel de o "Cenáculo" e do jornalzinho "Minarete", marcantes na vida desses autores.
Não faltou ao grupo o cronista inesquecível, Luís Carlos de Moura Campos, que se apagou ao primeiro clarão da aurora adolescente, mas fixou momentos de vida no livro "A Crônica de Itagerê". Outros exercitaram talento nas páginas da imprensa local, em livros, nos salões, discursos e recitativos; Alceu Maynard Araújo, os irmãos Minicucci, Gonzaga, Beraldo Rangel, Diógenes Negrão, Djalma Grohmann, Arlindo Pacheco, Milton Mariano, Rivaldo Cintra, Vanice Camargo, sob a batuta de mestres como Eunice Chaves, Tião Pinto, Amaral Wagner, Raimundo Cintra. Uns nunca sairam da serra: Pedretti Neto, escritor de mil talentos, Osmar Delmanto, José Sartori, o "papa" Pedro Chiaradia. Nem vos faltou, Sr. Acadêmico, como traços de inquietação e exercício literários, longa correspondência com o companheiro que deixara antes o ambiente provinciano, a relembrar, se reunida em volume, uma espécie de "Barca de Gleyre".
*
Mas voltemos àquela manhã radiosa de 7 de setembro, à apoteose de palmas à bandeira e à guarda de honra.
No alvoroço, na confusão, um a um iam sendo chamados os meninos! Mas... capricho das coisas, o que passara toda a noite insone, - esperando o seu momento de dizer: "Presente!" - que se angustiara e sofrera na longa espera, não ouviu pronunciarem seu nome. Ficastes anônimo e esquecido. E, não havíeis de dar, na timidez e na modéstia, um passo à frente antes de serdes chamado, para conduzirdes a bandeira.
Ruíra um sonho de criança. O céu se fechara a seus olhos, afogados em lágrimas.

A LITERATURA INFANTIL

Um sonho de menino, outros sonhos de menino, verdes esperanças estariam retratadas nos primeiros livros que escrevestes.
Enquanto nos "Contos Muito Humanos" exercitava-se o aprendiz de escritor, dentro de uma linha maupassantiana tradicional, muito vos divertistes, certamente, ao vos recordardes travessuras e proezas da infância, que foi a de quase todos os brasileiros, na tentativa feliz da literatura infantil publicada dentro dos melhores padrões do gênero, e na constante da concepção traçada pelo grande mestre que foi Lourenço Filho.
Todos nós, que nos exercitamos nesse complexo e difícil gênero literário que não é como muitos podem pensar: "um amontoado de cenas imaginárias, em que bichos e duendes falam e os homens se fazem de idiotas", devemos muito a Manoel Bergström Lourenço Filho. "A escola deve preparar para a vida real, pela própria vida", disse ele, destacando o papel do livro infantil na formação do adolescente, porém dentro de orientação definida. Não basta falar uma vara de bichos e alguém fazer-se de idiota.
Lourenço Filho compreendeu a literatura infantil como expressão de arte, capaz de suscitar os sentimentos do belo, adequada a grupos etários diferenciados, veículo de informação, repositório de conhecimentos e ensinança. Mas advertiu: "Erro é supor que o que agradou a adultos possa agradar sempre a crianças". Deve ele "suscitar o bom gosto, o senso de medida, o incentivo de mais altos níveis de aspiração: há de concorrer para o aperfeiçoamento do uso da linguagem e o equilíbrio sentimental. Ademais, deverá facilitar a compreensão entre o mundo das crianças e o mundo das coisas, idéias e sentimentos do adulto".
Assim, nas recomendações do mestre desaparecido, o livro infantil deve ser lição de boa linguagem; clara, digna, adequada às idades. E sendo seu objetivo comunicar-se, usará apenas vocabulário comum, para ser bem compreendida, mas isto não significará "apelo a plebeísmos, infantilismos ou formas deturpadas do dizer", nem sarcasmos ou ironias, que só o adulto compreende e, se a criança as percebe, isso se dará com prejuízo da sua formação".
Infelizmente esses ensinamentos parecem não ter sido devidamente apreendidos e incorporados à massa de obras supostamente infantis, que invade os lares e a escola e em que, por influência de novas formas de comunicação, cada vez há mais o que ver pelos olhos e menos o que intuir e aprender pela inteligência: abundância de imagens e quadros e míngua de vocabulário e texto.
Em vossa investida pelo campo do livro para a infância e juventude assinalastes vários volumes dentro daquela linha mestra: "Histórias da Floresta", "Novas Aventuras de Pedro Malasartes", "Histórias dos Meninos índios", "Os Apuros do Macaco Pium", "Façanhas do João Sabido". Em muitos passos, o vosso Barão de Münchausen é o Malasartes nacional e o João Sabido. Aproveitastes, assim, os temas de um folclore rico e colorido, os quais andavam na fala das gentes e agora fazem parte do patrimônio da nossa cultura popular, como acervo indestrutível, graças aos estudos e pesquisas difundidos por Alceu Maynard Araújo.
E, dentro daquela concepção, uma das mais seguras da literatura para jovens - a de aliar recreação e ensinamento - reconstituístes a vida de vultos da nossa história e da literatura, inclusive a do homem que incorporou o Acre ao Brasil, Plácido de Castro, e a daquele médico que, no município de Botucatu, viajando no lombo de burros, ia trazendo cotiaras, jararacas e urutus para estudos de ofidismo, dos quais resultou mais tarde a salvação de tantas vidas, no meio rural: Vital Brazil.

O PATRONO

Ezequiel Freire, patrono da cadeira número 20 desta Academia, escolhido por Reinaldo Porchat, no dizer de Soares de Melo, não por ser o advogado, nem o juiz, mas o homem de letras, poeta e prosador, que "amou religiosamente, como ninguém, a flor, a mulher, a poesia", quer dizer, o belo, é recordado nesta noite, certamente, não pelo que representem, hoje, numa avaliação crítica de sua obra, as "Flores do Campo", mas, certamente, por aquela lembrança de patronato devida ao primeiro ocupante. Realmente, se o poeta anda hoje vasqueiro das antologias, desconhecido do público e da crítica atual, como tantos vates menores do passado, Machado de Assis, que sobre seu livro de estréia escrevera formosa página, havia de deixar esta pergunta estimuladora:

"Não sei se escreveu mais versos o Sr. Ezequiel Freire; é de se supor que sim, é de se lastimar que não".

ORADOR SOARES DE MELO

Também José Soares de Melo ascendeu a esta Casa, não por ser o promotor, o magistrado, o professor de Direito por tantas razões brilhante, mas por seus dotes de orador. E é de se lastimar, porém, como ocorre sempre com mestres da palavra, entre outros Ibraim Nobre, Roberto Moreira, Cesar Salgado, Mário Toledo de Morais, que tão pouco ou quase nada daquilo que produziram nas tribunas permaneça apenas para alguns eleitos como guardados da memória, sobre a postura do orador, o gesto, o ardor das frases, o imprevisto de algumas imagens, a reação do auditório. Eis o que resta da palavra falada: Verba volant, scripta manent.
É que Soares de Melo, como Porchat - recordado pelo recipiendário desta noite, também ouvira muitas vezes, de inopino, aquele brado, no calor das solenidades ou no agitado das assembléias, a provocar calafrio, surgido do auditório exigente, apelo irrecusável e ao mesmo tempo consacratório: Fale o Soares de Melo! Como recusar? Como não atender?
Os meios modernos de fixação sonora da palavra falada guardariam inesquecíveis momentos de emoção, que se perderam para nós, e que nos trariam, num "tape" retrospectivo, a voz, as frases e a genialidade oratória daquele trio inesquecível de oradores - que marcaram época e o antecederam na Faculdade de Direito: - João Monteiro, "de dicção impecável, mestre da palavra e não da frase", porque a sua oratória era requintadamente artística, tanto no som como no gesto; de Brasílio Machado, mestre da frase, que a sabia colocar com ritmo, harmonia e sonoridade; de Porchat - uma fusão providencial daqueles predicados - "mestre da palavra e mestre da frase", "com a dicção impecável daquele e o ritmo perfeito deste"; traria também, para deleite de todos nós, o sonoro cascatear de Soares de Melo, herdeiro dessa linha de oradores, a não desmerecê-los, pelo contrário, acrescentando aos dons daqueles mágicos uma cultura geral polimorfa, ele que foi frequentador assíduo das artes rubarbosianas e familiar do processo Dreyfus, cujos antecedentes, com sua problemática de grande repercussão, abalaram a França e o mundo. Ouvimo-lo, embevecidos, de certa feita, Ernesto Leme, Pedro de Oliveira Ribeiro Neto e outros acadêmicos, em casa de Carlos Rizzini, "noite velha" e até madrugada bruxuleante, no seu vocabulário policrômico de adjetivação fácil e candente, a discorrer sobre este tema de eleição, como o foi o de Rui, que ambas as preocupações o acompanharam até a morte.
Saudades de Soares de Melo! Que nunca decepcionou ao troar imperativo dos que queriam ouvi-lo e se compraziam em escutar o orador, que tão pouco deixou de sua arte.

MODERNISMO

Cinquenta anos depois, nas comemorações evocativas da 1ª Semana de Arte Moderna, coincidentemente, ascendeis, companheiro Hernâni Donato, a esta Academia.
Mário de Andrade compreendeu o nacionalismo com uma etapa de "alto conhecimento nacional, que um dia devia ser suplantada pela integração das artes brasileiras na universalidade", com otimismo idealista. Este o real sentido de um Modernismo brasileiro, sem estilizações, em contraposição ao ufanismo da literatura anterior.
Traços sadios e progressistas, que nossa Academia certamente acolheria, aberta a ideais renovadores, no pensamento, nas letras e na escala social, esta marcada pela ascensão inequívoca da burguesia e a integração do estrangeiro, que conosco viera trabalhar, ajudando-nos ombro a ombro a construir este país. Ponto alto daquela nova visão desraizada de preconceitos estaria gravado literariamente, quanto ao elemento formador italiano, no livro "Brás, Bexiga e Barra Funda", de Antônio de Alcântara Machado.

O ESCRITOR E SUA LINGUAGEM

Um corte vertical, para estudo da temática de vossos romances e do vosso exercício de interpretação social em estudo literário, ainda está por fazer, como também para a análise da obra de outros escritores de nossos dias. Sentimos a ausência de uma crítica militante e orientadora, para sua avaliação e os confrontos necessários.
Aí estão "Os Filhos do Destino", primeiro na ordem dos romances, vasto painel da cultura cafeeira e do papel do imigrante; o "Chão Bruto", sobre as lutas do Pontal do Paranapanema, a "Selva Trágica", sobre a região ervateira dos confins do Peabiru, nos seus antigos galhos para o paraguai, e, ainda de pouco, "O Rio do Tempo", a reviver as angústias geniais do Aleijadinho. Dois deles alcançaram esse veículo de comunicação de massa capaz de levar a obra de ficção para um plano divulgador que poucos escritores conseguiram: o cinema. Os argumentos e os tipos criados adquiriram, assim, a realidade da imagem viva. Os poucos críticos que lhe tentaram interpretar a obra destacaram certamente o sentido telúrico de identificação do escritor com o seu meio, do qual captou a força votiva, as misérias, a brutalidade e a selvagem floração dos sentimentos ainda por lapidar. Mas tudo isso ao ser retraçado, ao correr das novelas escritas, não se apequenou no estreito regionalismo - pelo contrário, com painel rasgado para as vertentes universais, transforma os temas de província num elo a mais no grande drama de toda a humanidade, de qualquer parte, de qualquer tempo.
Os mesmos críticos por certo destacariam no exame da obra sua forma simples e correta.
Herdeiros que somos de um dos mais formosos idiomas, com recursos ainda inexplorados, que desde Camões se enriqueceu em nosso país com a contribuição indígena, africana, a das correntes imigratórias, do progresso, das intercomunicações e da ciência, é ela instrumento capaz de proporcionar, aos que escrevem, possibilidades indimensionáveis.
As palavras, como já foi dito, são o corpo da língua; esta, porém, não é um corpo inerte, é um organismo vivo; é mesmo um organismo espiritual" . "Linguagem, já disse Simone Weil, não é arbitrariedade, nem uma simples convenção; longe disso ela nasce e cresce como se fora uma planta" .
No caso da língua portuguesa do Brasil, numa avaliação bem próxima da real, verifica-se que, desde os Lusíadas, só com a nossa contribuição alimentar o corpo engordou em cerca de duzentas mil palavras e expressões, sem que, entretanto, se tenha alterado a estrutura da última flor do Lácio, da "nossa flor do Lácio". Repositório documental para avaliar essa transfusão de sangue novo estará parcialmente na literatura interpretativa da vida brasileira, especialmente a de dimensões regionais, provinda de várias fontes, com o sabor do vocabulário colhido da fala popular; e nos trabalhos de pesquisa como os de Teodoro Sampaio, Amadeu Amaral, Firmino Costa, entre outros.
As tentativas de reprodução da fala roceira, na área lingüística paulista, feitas por Valdomiro Silveira, a partir do conto "Rabicho", publicado em 1891, considerado marco pioneiro de nosso regionalismo, e os causos de Cornélio Pires, poderiam ser dados como expressões intermediárias, para integração da fala caipira na corrente da língua. As formas populares deturpadas, mas de tanto colorido, e as regências solecistas representam estágios primários que buscam altear-se a formas definidas, à alforria, integrando-se, quando dicionarizadas, no caudal lingüístico, tal como o indivíduo provindo de meio inferior se eleva, pela instrução, adquirindo modos de falar correto.
Assim, como justificar a pura invenção ou mesmo criatividade no universo expressional e vocabular, que não borbulhe legitimamente da fonte popular, sem apoio na vivência oral? Apenas como exercício de acrobacia lexicográfica e literária?
A obra de ficção do escritor Hernâni Donato, com fortes incursões regionais, pelos temas e personagens, é conduzida, entretanto, por vocabulário e linguagem adequados ao ambiente e à época, vivos e coloridos, mas perfilham o padrão vernacular do Brasil, sem furores inventivos ou inovações pouco convincentes, que estes seriam, talvez, destinados a breve olvido.
Um dos críticos mais sagazes, dentre os raros analistas da vossa obra, escreveu:
"Quando se fizer o mapa lingüístico das diversas áreas de São Paulo, e o estudioso tiver de valer-se de um documentário escrito, "Chão Bruto" não poderá ser esquecido, pois que o aspecto lexicográfico desse livro não só surpreende quanto à sua riqueza, mas também transmite toda uma força humana e cósmica que somente os escritores, que fazem da linguagem uma aquisição do espírito, podem ter.
"Na sinergia da forma e do conteúdo; no raio de luz da ação em que se lhe esbatem as personagens, soma de tipos e de símbolos, simultaneamente; no centro do drama, luta sem tréguas entre posseiros e grileiros - o romancista realiza-se lingüisticamente, e isto se torna deveras admirável num ambiente, como o nosso, em que certos romancistas consagrados ainda vacilam ou se travam no processo lingüístico do romance" .

OUTROS TEMAS

Com preocupações culturais voltadas para o aspecto universal, dentre as quais a pacientíssima tradução da Divina Comédia, em prosa moderna, publicastes, ainda, uma série de ensaios, estudos ou simples obras de divulgação, que denotam facetas de um espírito inquieto e investigador. Tais, entre outros, o escrito sobre o Peabiru, modelar pela evocação e pesquisa histórica; e o dedicado a Schliemann - que cedo formula o plano ciclópico de encontrar a desaparecida Tróia homérica; mergulhado, mais tarde, na tentativa de buscar o tesouro de Príamo, Schliemann chegou ao local dos muros da cidade cantada nos versos da "Ilíada". A literatura instigara e conduzira à descoberta arqueológica. No mesmo rumo divulgador é outro trabalho acerca de "Galileu", o devassador do infinito, em que destacastes o cientista, o descobridor, o inventor, mas não esquecestes o homem, com seus sofrimentos, amores, grandezas e misérias.
Com estas preocupações, a do homem, buscastes, em certa fase de vossa. vida, experiência social própria, de comunidade, à base do pensamento tolstoiano e, no intuito de comprovar a História, buscastes repetir o jornadear nas veredas do Peabiru.

A PALAVRA ESCRITA

Constantes preocupações manifestastes, também, Sr. Acadêmico, pelo destino da palavra escrita, tanto que em 1958 escrevestes um roteiro de sua história e, ao depois, redigistes artigo e conferenciastes sobre o futuro do escrito, por extensão, do livro.
"Na obra de cultura, o ensino e o livro se completam. Com o primeiro vive a tradição que, nos livros, se acumula e se expande. A ação do livro é onímoda e universal" e, sem o escrito, a experiência humana não se teria guardado através de séculos, para chegar até nós.
Varrão, organizador de bibliotecas públicas, a mando de César, já afirmava: "É preciso forjar a vida lendo e escrevendo".
O hábito de ler estimulou a tarefa da produção literária e seu serviço aos copistas. Mas a atividade se desenvolveu de tal modo que provocou reação, a ponto de Sêneca, há dezenove séculos, ter declarado: "Para que livros inúmeros e bibliotecas, se quem os possui apenas pode ler, em toda a sua vida, os títulos?" E, mais adiante: "É preferível que nos dediquemos a poucos autores a andar vagando por muitos".
Mas, se é velho e salutar o hábito de ler, é recente a preocupação pela sobrevivência do livro, quando nos dias que correm ele entra em confronto com outros meios de divulgação da palavra. Se na fase manuscrita ele dependia do papiro e do escriba, com o desenvolvimento dos processos tipográficos estará sujeito às máquinas modernas e ao papel, mas sempre o texto continuará na prisão do volume. E oferecerá este, ao escritor, a forma, o veículo mais fácil e agradável, para se comunicar com seu público? O livro, quando o seguramos na mão, é apenas papel, mas nele há algo mais, é o pensamento que está aderido às páginas, mas o pensamento por si mesmo já não é o livro! De que vale o escrever se a mensagem do autor não se difunde e só com dificuldade chegará aos leitores? Sobreviverá a literatura de letra impressa, engastada no livro em plena era dos audiovisuais?
Esta pergunta vós a formulastes, conhecedor que sois da publicidade e comunicação modernas, em vários de seus aspectos.
Os minicassetes não serão os "pocket-books" e os "paperbacks" do futuro?
Anunciam-se, para breve, livros impressos mas com possibilidades de, pela simples passagem de um estilete sob as linhas, o leitor ouvir música e as vozes dos diálogos, simultaneamente, e até aspirar o doce aroma dos jardins descritos. . .
E, para repetir vossa pergunta: estará nesses futuros livros repetida a volúpia do torcedor de futebol que, no estádio, se empolga a ver a partida diretamente, lance a lance, mas ainda tem preso aos ouvidos o radinho transistorizado, como se não confiasse na sua própria visão do cenário?
Como resistirá o livro, tradicional, sem bons ou maus odores e sem vozes ao vivo?
*
No mito daquele legislador bêbado, de Platão, baralhavam-se as relações naturais entre as palavras e as coisas: responderão a Cibernética e a Teoria da Informática com nova e moderna logística da linguagem, alteando-a tão-somente em "informação"?
O livro do futuro será uma síntese de imagens, texto, sons e odores, contidos em original forma de "hard wear"?
Estas indagações e muitas outras serão respondidas mais cedo do que pensamos e até possamos desejar. Em especial quando, na ânsia desesperada de projeção sobre o futuro, o homem conseguir desvendar o que houve exatamente em seu passado. Teria existido, em verdade, uma idade de ouro recuada, na qual os milagres da ciência foram iguais, se não mesmo superiores aos de hoje? E que papel representava nela a escrita?
Onde, porém, buscar esses traços perdidos do passado? No subsolo? No tempo? No espaço?
*
Amigo Hernâni Donato - fui designado para saudar-vos nesta vossa noite de posse na Academia Paulista de Letras. Talvez porque juntos nos assentamos nos bancos da escola, e em outros bancos, ao longo dos anos, em que nossas preocupações foram coincidentes.
"Para o coração não há passado, nem futuro, nem ausência... - dizia Rui na "Oração aos Moços", - mas presença animada e vivente, palpitante e criadora, neste regaço interior, onde os mortos renascem, prenascem os vindouros, e os distanciados se ajuntam, ao influxo de um talismã, pelo qual, nesse mágico microcosmo de maravilhas, encerrado na breve arca de um peito humano, cabe, em evocações de cada instante, a humanidade toda e a mesma eternidade."
Rejubilo-me por esta oportunidade e honra-me a designação de meus confrades, lembrando-me ainda que, nos confins da rota do Peabiru, mais uma vez a marcar-vos, nas plagas do Guaíra, fostes encontrar a vossa companheira de todos os momentos, D. Nely Martha, e de que, no alto da serra, ainda vivem felizes vossos venerandos pais.
Felizes, também, os que, nos verdes anos, puderam formular sonhos de encontrar tróias homéricas, embora um dia pudessem ou não passear vitoriosos sobre muros da cidade de seus sonhos; felizes, porque no seu pensamento morou a aventura e o desejo de escavar o chão, de desenterrar verdades, outros tantos tesouros! Mesmo que, em certo momento, o mais precisado de estímulo, lhe tivessem negado a bandeira e recusado sua sonhada guarda de honra!
Entrai, Hernâni Donato, por estas portas da Academia, escancaradas à renovação e a ideais novos, embora aqui se cultue e se dignifique o passado e o tradicional; entrai, com vossas aspirações e toda essa invejável bagagem literária e de estudioso, vosso tesouro de Príamo, para aqui ser descerrado e repartido, mas de tal forma que mais se nobilite, se engrandeça e multiplique, e ajudai-nos, Senhor Acadêmico, ainda com maior direito, a conduzir nossa bandeira, que agora vos é oferecida, irrecusavelmente!





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