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DISCURSO DE POSSE
Acadêmico: Dom Fernando Antônio Figueiredo
" Estaremos juntos na busca da verdade, cuja essência é a liberdade, movidos pelo amor fraterno. Muito obrigado!"

Minha saudação fraterna e amiga a todos, ao Excelentíssimo Governador José Serra, ao nosso prefeito Gilberto Kassab, às autoridades presentes, ao representante do Papa no Brasil, o Núncio Apostólico D. Lorenzo Baldisseri, ao cardeal de s. Paulo D. Odilo Scherer, aos demais bispos, membros do clero, religiosos e religiosas. Na pessoa do presidente, Dr. Renato Nalini, saúdo todos os membros desta ilustre Academia Paulista de Letras. Agradeço a saudação de acolhida que me foi feita pelo Acadêmico Professor Gabriel Chalita. Em nome da acadêmica, grande dama da literatura, Ana Maria Martins, saúdo todas as mulheres presentes.

Caros amigos e amigas, todos vocês que vieram, alguns de longe, como minha irmã Lurdinha e demais familiares. Aqui também presente, alguém que me avigora na esperança, vencendo barreiras e superando dificuldades, sem jamais esmorecer, o maestro João Carlos Martins. Seremos brindados por belíssimas músicas, com a atuação do grande pianista, nosso estimado e dedicado Núncio Apostólico no Brasil, D. Lorenzo Baldisseri. Para elevar nossos corações à Mãe do céu, o amigo cantor, sempre presente em nossos eventos, Agnaldo Rayol. E nestes últimos anos, um jovem padre, tendo sua vida voltada para Deus, em seu incansável trabalho evangelizador Pe. Marcelo Rossi. A todos o meu muito obrigado!

Meu coração se volta a todos vocês, amigos e amigas, movido por uma certa inquietação, buscando, segundo s. Agostinho, a “estrela polar” a brilhar em meio às sombras e às vagas das incertezas, apontando para a verdade que, no seu dizer, “muitas vezes parecia-me não poder encontrar”. Encontrá-la é ser conduzido ao sentido de sua vida, à harmonia interior e à paz da alma. Ela não é uma simples afirmação intelectual, realidade abstrata, mas é encontro com a sabedoria suprema, que se revela, entra na história e nela age na pessoa do Filho Jesus. É a verdade que faz com que há 100 anos esta Academia de Letras defenda a pessoa humana, imagem e semelhança de Deus. É ela que me faz, com emoção, agradecer aos meus confrades e confreiras o privilégio de celebrar a literatura, a poesia, a filosofia, a vida, neste recanto acadêmico, como igualmente convida-me a homenagear aqueles que me antecederam nessa cadeira de número 36.

Seu patrono é Euclides da Cunha. Um cultor da brasilidade, um gigante da pesquisa e das letras. “Os sertões” se constituem, em unanimidade, na expressão de cientistas das mais diversas áreas, assim como do próprio Euclides, um vulcão que não cessa de transmitir saber e acurada análise de nossa realidade. O primeiro a ocupar esta cadeira foi Raul Soares. Educador como tantos outros que por aqui passaram. Cresceu intelectualmente nas Arcadas do Largo de São Francisco. Em Minas Gerais, foi deputado, Secretário de Estado e Presidente das Minas Gerais, cujas montanhas, alterosas, nos abraçam. Seu sucessor foi Afonso de Taunay, que escreveu centenas de importantes trabalhos. Dentre eles a “História do Café”, obra de 15 volumes com pesquisa rigorosamente original e a “História Geral das Bandeiras Paulistas” que narra a saga do ciclo do bandeirismo. Seu lugar foi, posteriormente, ocupado por Sérgio Buarque de Holanda, notabilizando-se com a obra “Raízes do Brasil”, que define o espírito da civilização brasileira. Tavares Miranda foi recepcionado nessa academia pelo ilustre confrade, membro também da Academia Brasileira de Letras, João de Scantimburgo. Homenagem de um grande jornalista ao jornalista que fez da comunicação um serviço à construção de uma sociedade em que o saber diminui as distâncias e constrói a cidadania. Na sucessão de Tavares Miranda, Oracy Nogueira, sociólogo de investigação objetiva e criteriosa. Professor de qualidade, incansável defensor da dignidade humana, lutando contra o preconceito. Dois trabalhos seus merecem destaque: “Tanto Preto Quanto Branco” (Estudos de Relações Sociais) e “Negro Político Político Negro”. E minha antecessora imediata, Esther de Figueiredo Ferraz. Temos o mesmo sobrenome e, modéstia à parte, o mesmo amor pela pessoa humana. Abraçamos a educação como uma missão inseparável de nossa vida. Esther foi precursora. Primeira mulher a integrar o cargo docente da Faculdade de Direito da Universidade de s. Paulo. Primeira mulher a exercer as funções de Ministra de Estado, na área da Educação e Cultura. Foi Secretária de Estado da Educação em S. Paulo. Atuou no Conselho Estadual e no Conselho Federal da Educação. E tudo isso sem perder a singeleza da mulher apaixonada pela bandeira que honrou durante toda sua vida. Esther, a guerreira da educação e da justiça. Quanta falta ela faz a essa Academia! Quanta responsabilidade tenho eu ao sucedê-la! Que a educação e a busca pela verdade sejam nossa ponte.

Caros amigos, “peregrino de coração inquieto”, título dado a esta reflexão, expressa o desejo de achegar-me à verdade, desejo que se aninha em meu coração. A verdade é, aliás, o objetivo que anima toda reflexão espiritual e percorre o pensamento humano em sua evolução desde os antigos, com os grandes filósofos gregos, até nossos dias, com a pós-modernidade. As categorias predominantes são a história e o progredir levando-nos a mergulhar, segundo Paul Ricoeur, na alteridade, na diferença e no mistério que conduzem, na liberdade, à plenitude da vida, à felicidade. A verdade é fonte de liberdade, ou ainda, a liberdade, em nós jamais absoluta, é a essência da verdade. Aliás, na busca da verdade, não podemos sofrer coação, donde falarmos da liberdade de imprensa, liberdade religiosa etc.

Desta forma, a busca da verdade se liga intimamente à livre realização da pessoa e a torna feliz, pois dizia Heidegger, “buscar a verdade é estar livre para o que é manifesto no seio do aberto”, ou, segundo s. Agostinho, buscar a verdade é estar mergulhado na “doçura e na beleza do mistério de Deus”. Para apreciarmos melhor esta concepção cito, sobretudo, dois autores dos primeiros séculos da nossa era, S. Irineu de Lyon (3º séc.) e S. Gregório de Nissa ( 4º séc.). Eles se referem à criação do homem, à imagem e semelhança de Deus, em que o texto do Gênesis expressa um elemento estático e outro dinâmico, impressos na estrutura fundamental do ser humano.

S. Irineu de Lyon (+202) estabelece a distinção entre imagem e semelhança, o que terá uma grande repercussão na reflexão filosófica e teológica posterior. Pelo termo imagem (eikwn), S. Irineu quer designar algo que pertence ao homem desde a origem, pertence à sua natureza, e ele não a perde, nem a pode perder. Ela é igualmente natural e universal.

Sua visão da pessoa é, portanto, profundamente positiva, o que realça o imperativo de respeitá-la em toda a sua extensão. Todo ser humano traz a imagem, ou seja, ele é marcado pela presença daquele por quem tudo foi criado, o Verbo Divino. Emmanuel Mounier, assinalando a compreensão positiva do ser humano, considera “a “pessoa” como centro de uma presença espiritual, em sua abertura ao transcendente no sentido religioso e em vista de um empenho histórico pelo reino da liberdade”.

O homem, criado à imagem, no seu interior é impelido, por uma força arrebatadora, a se ultrapassar constantemente, pois, observa s. Irineu, ele também foi criado à semelhança (homoíwsis) de Deus. Semelhança, ao mesmo tempo perdível e progressiva, ele a pode perder ou desenvolvê-la. Quando acolhida, ela se torna expressão do agir do Espírito na ação transformante conduzindo-o a um assemelhar-se cada vez maior ao Criador. Se a imagem é compreendida num sentido ôntico e está presente em toda criatura humana, como parte integrante de sua natureza, a semelhança indica o aspecto dinâmico, o processo de um progredir incessante em direção à sua realização plena, à verdade, o que o leva a dizer: “A glória de Deus é a vida do homem e a vida do homem é a visão de Deus (Adv.Haer.IV, 20,7).

Esta caminhada interior não é privilégio de alguns, todos são convocados a se lançarem neste processo de assemelhar-se, compreendido igualmente como encontro e participação, no ritmo de sua criação e de sua re-criação. Com Orígenes reconheceríamos: “Todo ser espiritual é, por natureza, um templo de Deus, criado para acolher em si a glória divina” (Com.Ev.S.Mt 16,23). O ser humano é “limite”, “fronteira” entre o visível e o invisível, o criado e o Criador. Este mistério da pessoa não é estranho às religiões não bíblicas, como também ao humanismo moderno. Gabriel-Honoré Marcel, no século passado, refere-se ao ser humano como “mistério” não definível conceitualmente, pois ele não se pode possuir mas, ao contrário, exige ser reconhecido como algo que se supera constantemente. Professava s. Gregório de Nissa: “Trazemos a marca da inacessível divindade no mistério que está em nós” (Da Criação do homem, 11). Reconhecemos e proclamamos que nossa vocação postula o empenho por um crescimento constante no anúncio esperançoso da liberdade.

Encontramo-nos assim diante da agudeza do pensamento do grande filósofo S. Gregório de Nissa, que expressa este crescente desejo, como característica própria do homem, com as palavras: “Quem olha para a infinita beleza de Deus, se maravilha do que continuamente aparece e não diminui nele jamais o desejo de contemplar, pois o que é pouco a pouco descoberto se apresenta sempre como o mais novo e extraordinário do que já foi compreendido: o que é esperado se torna mais divino e grandioso de tudo quanto já se tem sob os olhos” (Com. Cant.dos Cant., 11). Celebra-se assim a irredutível grandeza do ser criado, pulsando nele o abismo sem fundo do mistério da vida. O homem descobre em si a realidade que ultrapassa todos os dados biológicos, sociológicos e psicológicos e o impulsiona a se achegar ao sentido mais global de sua pessoa, pois nele habita o mistério, que o atrai e o plenifica. “Esta é a causa, declara Gregório de Nissa, pela qual eu, na minha qualidade de terra, estou ligado a esta vida terrena, mas, tendo também uma centelha da divindade, o desejo.

Esta capacidade de superação “faz decolar” o homem do mundo e o torna livre para exorcizar o sem-sentido de sua vida. S. Agostinho, resumindo este ideal de vida, sintetiza a busca pela verdade na expressão da visão de Óstia, partilhada também por sua mãe Mônica: “Voamos para atingir, numa iluminação de pensamento, a eterna sabedoria que está acima de todas as coisas” (Conf. IX,10). Ele atinge então a apátheia, serenidade interior em Deus, em quem encontra o verdadeiro repouso. Ele confessa que, por um instante, ele e sua mãe têm a convicção de terem roçado a eterna sabedoria. O encontro com a verdade, de fato, suscita no homem a aspiração pelo que o supera e constitui abertura para sua fundamental liberdade.

A liberdade, no entanto, não se reduz, observa s. Agostinho, ao livre arbítrio, que nos permite escolher entre o bem e o mal. Em sua experiência mística da visão de Óstia, ele lê a liberdade na profundidade humana do seu encontro com a verdade e a define como crescimento no bem. Movido pela liberdade, ele se entrega à descoberta da verdade de sua vida, insondável e inesgotável, no seu desvelar-se na prática do bem. É a presença nele da totalidade do sentido de sua vida, tão buscada e almejada, que ele entrevê, em realização plena, no seu encontro com o Bem supremo. Mais do que encontrá-lo é, pelo amor, possuí-lo. Agostinho faz eco às palavras do Senhor, ao exclamar com ardor: “Amai-me e me possuireis. Vós não podereis amar-me sem me possuir”(Com.Sl 149, 2-6). É a correspondência entre o Bem e a Verdade da vida, por força da qual ele não cessa de saborear, em cada instante, a serenidade interior, apátheia, liberdade da alma, no amor à verdade pela prática do bem. O amor é a força a impeli-lo na identificação, sempre maior, à fonte de todo bem. Ultrapassa-se propriamente a experiência da visão de Deus (theoría), ligada ao conhecimento, e se permanece no amor. A busca do sentido da vida não é dissociada do amor, o que leva Max Scheller a compreender que é “deixando-se atrair pelo amor a Deus”, o Bem supremo, que se é conduzido à autêntica liberdade. No vislumbre da Verdade, o homem não cessa de crescer em se superando constantemente e, à medida que se une à Verdade, seu amor se torna mais ardente e insaciável. Sábias são as palavras de s. Agostinho: “Devemos buscar o conhecimento da Verdade, manifesta e evidente, com a mesma veemência que progredimos no amor” (De agone christ., 33). Nosso coração inquieto encontra finalmente paz e tranqüilidade de alma, participando da imortalidade em estreita união com o Deus imortal.

Caros amigos e amigas, julgo ter esboçado ao longo destas breves considerações, o anseio de um peregrino de coração inquieto em busca da verdade de sua vida, cuja essência é a liberdade, experimentada e vivida como crescimento constante na prática do bem. A força a nos impulsionar, a nos avigorar neste itinerário é o amor. Ele nos conduz e nos atrai à Verdade, permitindo que, graças à liberdade, o bem desponte, floresça e nossos corações encontrem repouso. Por isso, na grandeza das palavras de S. Agostinho, citadas por Heidegger, reconhecemos que “só chegamos à verdade pelo amor” (Contra Faust., 32,18).

Ainda, antes de terminar, uma singela oração aos que aqui não estão. Falar em amor é lembrar em mim a doação generosa de minha mãe e a de meu pai. Minha professada fé, todos estes anos, faz ter a certeza de que eles vivem a felicidade na verdade de Deus. Aqui não posso abraçá-los. Eis nossa vida na terra. As pessoas vão, mas permanecem em nosso coração. Termino assim minhas palavras, externando o desejo de cumprir, com dignidade e respeito, a missão que recebo no dia de hoje. Caso consiga, estou certo de que é devido ao apoio de meus confrades, aos quais agradeço a acolhida generosa e amiga. Estaremos juntos na busca da verdade, cuja essência é a liberdade, movidos pelo amor fraterno. Muito obrigado!



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