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DISCURSO DE POSSE
Acadêmico: Fábio Lucas
"Incluo nessa profissão os agradecimentos aos companheiros da Academia Paulista de Letras que também acreditam no poder transcendental da expressão e que, por isso, constituíram este cenáculo de fervorosos escritores. Simbolizo na afeição por Anna Maria Martins, prosadora admirável, a minha estima por todos os acadêmicos."

Senhor Presidente, Senhores Acadêmicos

Ao ingressar na Academia Paulista de Letras, vejo-me rendido à tentação de retraçar as imagens de São Paulo que se foram delineando no meu espírito desde a infância. Antes mesmo dos 10 anos de idade, na pequena cidade de Santa Quitéria, quando ainda me preparava para o primeiro salto migratório rumo à Capital de Minas Gerais, já ouvia de meu pai, homem de ação e vontade, palavras de encantamento pela vocação de progresso da terra dos Bandeirantes. A qualquer pretexto, ele nos lembrava, como lição, do poder de São Paulo, graças à sua capacidade de indústria e operosidade, seu exemplo de iniciativa e trabalho.

Mais tarde, quando vivi o capítulo mais vertiginoso de minha formação e me libertava do jugo do ensino tradicional, loquaz e retórico, foi em Mário de Andrade que vislumbrei as diretrizes da vocação literária e os prolegômenos da percepção crítica. As obras do Autor de Aspectos da Literatura Brasileira e dos escritores modernistas, buscadas com persistência e obstinação, contribuíram para esboçar no meu espírito o primeiro molde intelectual, contornos de uma busca insofrida da natureza da obra de arte e de sua projeção na sensibilidade humana. Deste modo, vivi a minha puberdade entre autores paulistas que, àquela altura, se me figuravam revolucionários.

Ao me converter em colaborador de suplementos literários de Minas, do Rio e de São Paulo, os primeiros contatos com grupos organizados de escritores se deu com autores de Atibaia e São Paulo, numa intensa e ardorosa correspondência, de que ainda guardo preciosas lembranças. Representam a minha iniciação na vida literária.

O destino que guiou até São Paulo no ano das celebrações do IV Centenário da Cidade e foi aqui que iniciei outra fase decisiva da vida. E o capricho da Sorte acabou por me conduzir definitivamente para São Paulo em 1977, quando passei a dirigir a Faculdade Paulistana de Ciências e Letras e me ac1imatei nesta capital. Aqui reencontrei amigos já conhecidos pela imprensa e em congressos e cursos universitários. Menciono Naief Sáfady, Normam Potter, Uilcon Pereira e Julieta de Godoy Ladeira, companheiros admiráveis, a cuja memória rendo o preito de minha saudade. E também me vi diante de Lygia Fagundes Telles, Ricardo Ramos, Antonio Candido, Edla Van Steen, Sábato Magaldi, Bóris Schnaiderman, Ivan Ângelo, Florestan Fernandes, Octávio Ianni, Aluysio Sampaio, Júlio Barbosa, Marisa Lajolo, Deolinda Dutra Dias, Antônio Arnoni Prado, Floriano Corrêa Vaz da Silva, e de Massaud Moisés, que logo abriram as portas para o estreitamento da amizade e da convivência cultural e afetuosa.

Hoje, vivenciadas duas décadas de relacionamento com a intelectualidade deste Estado, já produzi copiosa obra de análise e interpretação de textos paulistas, quer da Capital, quer do interior. E, depois de ter participado intensamente de eventos sociais e políticos do Estado, vejo-me associado a um grupo de penetrante reflexão sobre o destino da pátria, em face das intensas modificações tecnológicas que transformam o processo de produção do planeta. Com efeito, ante a perspectiva de nova era da História Universal, com o término do emprego majoritário da força de trabalho na produção social, substituído pelo poder da máquina e controlado pela informática, novas formas de organização da sociedade, do Estado e das relações se fazem necessárias. E mais do que nunca, com a perspectiva de redução da jornada de trabalho, de maior demanda de qualificação e de ampliação do lazer, temos que desenvolver as áreas do esporte, das artes e das interações prazeirosas, a fim de lograr para a comunidade internacional uma fase de humanismo e democracia, ou seja, de relações harmônicas, progressistas e sadias. Desse modo, adormecer o lobo que o neoliberalismo tenta açular no cenário do chamado livre mercado. Este, sim, opressor das pessoas e destruidor da natureza. Daí a pertinência do Movimento Humanismo e Democracia que, sediado em São Paulo, procura aliciar companheiros dos demais Estados, a fim de sistematizar o pensamento e a ação humanizadores da atividade produtora do homem brasileiro.

Ao ocupar a cadeira n° 27 da Academia Paulista de Letras, passo a cumprir o rito de evocar os vultos luminosos que nela tiveram assento e a engrandeceram. Justo, portanto, é lembrar o digno patrono da cadeira, o Barão de Ramalho (1809-1902) que, na verdade, pontua a primeira fase de juristas que colaboraram com sua inteligência e saber para fazê-lo fulgurar na Academia Paulista de Letras. É sabido que a Faculdade de Direito de São Paulo atraiu, no século XIX, as principais figuras da nascente produção literária do país.

Devo, aliás, fazer uma breve confissão a esse respeito: desde a minha alfabetização, que se deu aos cinco anos de idade, a minha capacidade oscilou entre o pensamento lógico e o pensamento mágico, entre o discurso racional e pragmático, e a formulação artística e literária. Daí ter dedicado parte de minha vida ao estudo do Direito, chegando mesmo a me doutorar em Direito Público e Ciências Sociais; mais tarde, mediante concurso público, tomei-me professor de Economia Política, de Teoria da Renda e História das Doutrinas Econômicas, cargo que exerci em tempo integral durante treze anos.

Com efeito, o Barão de Ramalho instaurou, na cadeira 27, a prosa didática, conforme fina observação do meu antecessor, o poeta Afrânio Zuccolotto. Filho de espanhóis, o Dr. Joaquim Inácio Ramalho, antes do baronato, logrou os títulos de Oficial da Ordem da Rosa, Comendador da Ordem de Cristo e Barão de Água Branca. Essa última honraria foi anulada a seu pedido, a fim de que se lhe concedesse a de Barão de Ramalho, como reconhecimento à família que o acolhera e o fizera formar-se.

Foi principalmente professor. Na juventude lecionara Geometria. Acadêmico de Direito, fora nomeado professor-substituto de Filosofia Racional e Moral do antigo Curso Anexo.
Em 1836, viu-se nomeado, mediante concurso, lente substituto da Academia de Direito, vindo a ser efetivado e passando mais tarde a ministrar cursos de Direito Processual. Naquela condição é que contribuiu para os estudos de Direito Judiciário Brasileiro, tendo compendiado uma Prática Civil e Comercial e uma Praxe Brasileira. Morreu gloriosamente aos 93 anos de idade, como diretor da Academia de Direito e reconhecido pela capacidade e inteligência.
Quem o escolheu como patrono foi Luís Barbosa da Gama Cerqueira, advogado e político. Também professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Político, preferia sempre estar na oposição. Formado em 1886, dirigiu-se para a terra natal, Paraíba do Sul, então Província do Rio de Janeiro, onde inscreveu-se no Partido Republicano, embora o pai fosse um dos chefes do Partido conservador e já tivesse sido ministro do Império. Proclamada a República, Gama Cerqueira elegeu-se deputado à Assembléia Legislativa de Minas Gerais, mas resignou o mandato, em protesto contra o golpe de Floriano Peixoto.

Vindo residir em São Paulo, inscreveu-se em concurso aberto na Faculdade de Direito para provimento da cadeira de Direito Penal. Competiu com Alfredo Pujol e saiu vencedor, em famosa pugna intelectual.
Granjeou fama de grande orador e expositor, dissertava com brilho e independência sobre a antropologia e a sociologia Criminal e teceu críticas severas ao Código Penal de 1890 que, ao seu ver, se voltava mais para o delito do que para o delinqüente. Afrânio Zuccolotto registra-o na prosa falada, em contraposição à prosa didática do Barão de Rama1ho.

Em 1926 ocupará a cadeira de N° 27 o poeta Manuel Carlos de Figueiredo Ferraz, nascido em Cajuru a 25 de fevereiro de 1885. Vindo estudar em São Paulo, uniu-se a um grupo de estudantes e poetas de grande poder de agitação cultural, como Ricardo Gonçalves, Gustavo Teixeira, Edward Carmilo, Vi1a1va Júnior e outros, todos de inspiração parnasiana. Foi sob essa int1uência que Manuel Carlos compôs, entre 1908 e 1912, os sonetos que, em 1934, reuniu sob o título Poesias (S. Paulo, 1934).

De 1912 a 1934, Manuel Carlos de Figueiredo Ferraz havia-se dedicado à magistratura, tendo percorrido várias comarcas do interior, até instalar-se na Capital como desembargador e atingir o elevado posto de Presidente do Tribunal de Apelação do Estado. No ramo do Direito, legou à posteridade os trabalhos Apontamentos sobre a Noção Ontológica do Processo (S. Paulo, 1936) e Notas sobre a Competência por Conexão (S. Paulo, 1937). Foi professor de Lógica na Faculdade de Ciências, Filosofia e Letras da Universidade de São Paulo, e catedrático interino de Crimino10gia do curso de doutorado da Faculdade de Direito. Deixou um estudo crítico e biográfico sobre Ricardo Gonçalves. Faleceu a 24 de abril de 1967.

Sucedeu Manuel Car10s na cadeira 27 Vicente de Paulo Vicente de Azevedo, nascido na cidade de São Paulo a 10 de outubro de 895, igualmente poeta formado pela Faculdade de Direito, por onde se bacharelou em 1936. Como profissional, foi promotor público em comarcas do interior, como Bebedouro e São Carlos. Na Capital exerceu o cargo de Procurador Geral do Estado por dez anos e o de Chefe da Polícia no governo de Armando Salles Oliveira. Depois chegou a desembargado[ do Tribunal de Justiça. Na ciência Jurídica especializou-se no Direito Judiciário. Elegeu-se para a Academia Paulista de Letras a 18 de junho de 1967.

Em 1931 publicou a obra Manuel Antônio Álvares de Azevedo ¬Dados para sua biografia (S. Paulo, Revista dos Tribunais, 1931) e no mesmo ano Genealogia de Álvares de Azevedo. Mas não esgotou então o seu vivo interesse pelo poeta romântico. Em 1936 organizou as Cartas de Álvares de Azevedo e, em 1937, reuniu novos estudos e investigações na obra Álvares de Azevedo Desvendado.

Em 1966 publicou importante biografia ilustrada com o títuloA Vida Atormentada de Fagundes Varella (S. Paulo, Martins, 1966). Faleceu a 9 de janeiro de 1979.

Falemos agora do meu antecessor, Afrânio Zuccolotto, que trouxe à cadeira N° 27 o predomínio da expressão poética. Nascido em Albinópolis a 24de maio de 1913, onde freqüentou o curso primário, fez o secundário na cidade mineira de S. Sebastião do Paraíso e bacharelou-se pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo em 1935.

Foi principalmente poeta. Estreou em 1948 com Poemas (S. Paulo, Ed. Brasiliense, 1948). E usou seu estro para externar o desconforto das mudanças, pois arraigadas ficaram em sua alma as primeiras impressões da vida. Da cidade de São Paulo, por exemplo, que aparece em mais de uma de suas obras, guardou as imagens congeniais com os verdes anos da formação do poeta. Os aspectos de crescimento e modernização da Capital feriam-lhe a sensibilidade e despertaram nele o sentimento de revolta.

É tal o envolvimento do logos, em que se espelhava a sua expressão, que alguns poemas se tomaram não somente confessionais, mas descritivos da existência do poeta. Tal é o caso deste trecho da coletânea Retrato do Artista Remanescente (S. Paulo, Clube de Poesia de São Paulo, 1976):

Foi iniciado na velha antologia
(que menciona com nostalgia)
de Fausto Barreto e Carlos de Laet
não muito depois da Primeira Guerra. Com poucos anos, alguns além dos seis,
já havia lido de um fôlego
a Última Corrida de Touros em Salvaterra
e já conhecia a lenda
do estalo do padre Antônio Vieira.
Aos doze enfrentou Camões
e do aludido padre os Sermões
cuja análise alguns louros
lhe propiciou
e muita canseira.

No final da obra, bem no estilo de Afrânio Zuccolotto, encontramos um traço elegíaco revestido de certo desencanto com o passar dos dias:

o Remanescente tomaria o mesmo bonde
se o mesmo bonde ainda pudesse ser tomado.
Todos os dias viaja (bem haja!)
no bonde azulado da lembrança
que o leva em tardes de bonança
a um bairro do passado.

Não é sem propósito que, na obra Episódio do Soneto (S. Paulo, Ed. Obelisco, 1966), uma das composições mais destacadas seja "Heráclito", em que o poeta registra a fugacidade da vida associada à glória vã, que outro artista já denominou "o sol da noite". É que em Afrânio Zuccolotto prevalece a fragilidade do ser humano diante do fluir do tempo:

Esse que hoje voltou não foi o que partiu,
dizendo ter o mundo ampliaberto à sua frente.
A vida não permite, o tempo não consente
que o que foi retome igual em ardor e brio.
Se esse que hoje voltou não se mostra sombrio,
a verdade é que o gesto no olhar se desmente.
Ninguém duas vezes entra na mesma corrente:
o passante mudou; a água, veloz, fluiu.
É arriscado voltar; é insensato, direi,
ambicionar que o tempo fique à nossa espera,
pretender anular dos eventos a lei.
O que volta é sempre outro, diverso do que era.
De nada pode um homem proclamar-se rei,
pois nem sobre si mesmo há de dizer que impera.

Além da celebração do efêmero das coisas e da vida, Afrânio Zuccolotto entregou-se a certo azedume que desaguava numa ironia superior e bonachona. Se tomarmos Notícia de São Paulo a Mário de Andrade, (S. Paulo, clube de Poesia, 1970), publicado por ocasião do 25° aniversário da morte do autor de Pau/icéia Desvairada, encontraremos um amor decepcionado com a cidade de S. Paulo. A certo ponto da obra, Afrânio Zuccolotto diz a Mário de Andrade:

Não conto estas coisas para magoar-te.
Seria até bom que tornasses. Os amigos
como te disse estão partindo.
O nosso desejo seria continuar contigo
uma conversa interrompida
mas tememos que seja difícil.
Onde poderia ser? No Trianon, no Bonde 3?
Na Rôtisserie? Tudo acabou.

De Porto Geral (S. Paulo, clube de Poesia, 1957), falaram Antônio DElia em A Mágica Mão (S. Paulo, Conselho Estadual de Cultura, 1953) e Domingos Carvalho da Silva em Eras (] Orfeu (S. Paulo, Conselho Estadual de Cultura, 1966). Antônio DElia assinala o "tom de displicência humorística" com que Afrânio Zuccolotto trabalhava os seus versos. E refere-se ao modo "amigavelmente ferino" do poeta, embora veja em Porto Geral "um poético momento de um paulistano".
E Domingos Carvalho da Silva reclama que, além da apreciação da obra de Afrânio Zuccolotto sob o aspecto temático, se deva também alcançar-lhe "o clima formal e expressional". Chama a atenção para a variedade de ritmos de Porto Geral e a ousadia de assimilar aos poemas "vocábulos estrangeiros e outros inventados, como o esplêndido guarujar" (...). Curiosamente, na minha leitura dos poemas de Porto Geral, também encantou-me o trecho:

Vossa meiguice é infinita,
vosso verbo frutifica,
ide repousar, ide guarujar

Achei brilhante o encontro de um tom antiquado, refletido na segunda pessoa do plural "ide", com o neologismo indicador de férias, lazer e descompromisso psíquico: "guarujar".
Um dos melhores depoimentos de Mrânio Zuccolotto pode ser encontrado na obra Plataforma da Nova Geração (Porto Alegre, Ed. da Liv. Globo, 1945), organizada por Mário Neme. Depois de eruditas considerações sobre os problemas que se punham naquela ocasião, à frente do artista, o poeta reclamou que se devesse extrair da vida a essência divina e "viver na plenitude de um instante de criação o que o comum dos homens só pode experimentar espaçada e parcialmente". E termina seu depoimento com uma observação profética: "E não é possível chegar octogenário com todo o decoro, quando em tempo se verifica que o homem, no verdadeiro sentido da palavra, não é uma realidade criada, mas urna simples possibilidade do perfectível, que só se realiza (se é que isso acontece), através do mais árduo itinerário de sonhos e decepções, de júbilo fecundo e depressões estéreis, itinerário só trilhado por seres de natureza olímpica, cuja personalidade é superiormente complexa e ricamente dotada para perceber, através das ciladas que a atraem à vida cotidiana, o caminho para a verdadeira imortalidade." (ob.cit., p.230).
Diante de palavras tão eloqüentes, fica posto o convite para, afinal, silenciar-me. E o faço propondo uma profissão de fé na palavra escrita, corno único antídoto que o homem conquistou contra a ação devastadora do tempo. Incluo nessa profissão os agradecimentos aos companheiros da Academia Paulista de Letras que também acreditam no poder transcendental da expressão e que, por isso, constituíram este cenáculo de fervorosos escritores. Simbolizo na afeição por Anna Maria Martins, prosadora admirável, a minha estima por todos os acadêmicos.





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