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DISCURSO DE RECEPÇÃO PELO ACADÊMICO MIGUEL REALE
Acadêmico: José Pastore
Não creio seja necessário acrescentar algo para legitimar o ingresso entre nós de José Pastore, notória que é a sua competência como sociólogo da economia, como analista dos grandes problemas político-sociais do País, e como jornalista.


Saudação de Miguel Reale

Há muito tempo se discute no Brasil se as Academias de Letras devem ou não acolher em seu seio os distinguidos cultores das ciências naturais e humanas, bem como os que se converteram em figuras representativas do País.

Já expuseram razões opostas Machado de Assis e Joaquim Nabuco quando da criação da Academia Brasileira de Letras, sustentando o autor das Memórias Póstumas de Braz Cubas que elas deveriam ser reservadas aos autores das chamadas letras floridas, admitidos apenas os historiadores pelo que há de pessoal e artístico nas obras de História. Joaquim Nabuco, ao contrário, entendia que as Academias de Letras, como instituições representativas de um povo, deveriam acolher, embora excepcionalmente, também as figuras mais expressivas da cultura em geral, desde que tenham sabido contribuir, com seus escritos, para o aperfeiçoamento dos valores individuais e coletivos.

Penso que a razão assiste ao mestre pernambucano, pois a representatividade de uma nação não cabe apenas a seus poetas e prosadores, mas também aos que, tratando de problemas científicos, filosóficos, políticos ou jurídicos, tenham sabido fazê-lo com zelo e amor pelas palavras, ou seja, pelos valores da língua.

De mais a mais, como salientou Euclides da Cunha no famoso prefácio aos Poemas e Canções de Vicente de Carvalho, referindo-se a Engenharia, não há nada de golpeantemente decisivo nessa profissão de números e diagramas, assim como, acrescento eu, nos domínios dos demais saberes positivos.

É essa, aliás, a conclusão a que chega a Epistemologia contemporânea, a qual tem demonstrado quanto de problemático e de conjetural há no estudo das questões científicas e até mesmo no campo da Lógica e da Matemática.

Temos marchado, a bem ver, no sentido da universalidade do conhecimento, não sendo privilégio dos homens de letras valer-se da imaginação criadora, prevalecendo cada vez mais a interdisciplinaridade no plano das perquirições sobre a natureza e o espírito. Há até mesmo quem vá mais longe, falando da recíproca influência exercida por todas as modalidades de valores no universo da cultura, fixando o sentido dominante de cada época histórica.

Afirma-se, em suma, que no cenário cultural, as ciências e as artes podem agir umas sobre as outras, sendo mais freqüentes essas ações recíprocas no reino das artes. Nessa ordem de idéias, tem-se dito que a pintura de Césanne teria sido influenciada pela poesia de Rimbaud, assim como a de Picasso pelas inspirações de. Baudelaire. Seriam, assim, até certo ponto convencionais as divisões feitas entre as atividades humanas, o que parece exagero. O certo é que, no tocante à linguagem e aos modelos espirituais, não se pode pretender a existência de domínios absolutamente separados e insulados.

A globalidade, que se costuma erroneamente reduzir ao mundo econômico-financeiro, é uma das linhas norteadoras, hoje em dia, da atividade cultural, o que redunda em uma intercambialidade no plano da linguagem, o poeta recorrendo não raro às descobertas dos físicos, e estes se inspirando em mitos poéticos.

A interdisciplinaridade parece ser um caminho aberto a todas as formas de invenção cultural, aproximando-se cada vez mais os seres humanos, qualquer que seja o objeto de suas pesquisas e indagações, e ninguém sabe isso melhor do que um cultor de Sociologia Econômica, atividade primordial de José Pastore.

Isto seria bastante para legitimar a presença de um notável sociólogo e economista na Academia Paulista de Letras, mas há algo a acrescentar, pois o que mais me agrada e impressiona em seus escritos é o sentido humanista que sempre exorna o que escreve, como professor titular da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo, lecionando sociologia aplicada às atividades econômicas.

Ora, não há ciência tão marcada pela incerteza como a Economia, cujos cultores são obrigados freqüentemente a rever e retificar suas previsões, reconhecendo a interferência do acaso ou do imprevisível em seus cálculos baseados em dados estatísticos.

Nos revolucionários tempos que estamos vivendo, quando se verificam alterações inopinadas e violentas no mundo financeiro, que lembram os imprevistos movimentos sísmicos, é bem difícil proclamar a cientificidade tranqüila e positiva da Economia, que antigamente prudentemente se denominava Economia Política, tão atuante e perturbadora é nela a interferência do poder do Estado.

De mais a mais, como esquecer que Adam Smith, o fundador da Economia moderna, antes de escrever, em 1776, Indagação sobre a Natureza e Causas da Riqueza das Nações, escrevera, em 1757, Teoria dos Sentimentos Morais, que o filósofo italiano Luigi Bagolini denomina a Moral da Simpatia, tratando, em ambas as obras, com reconhecida genialidade, do problema do valor, palavra mágica que, com renovados sentidos, iria alterar o ritmo da Filosofia e da Política, desde Marx aos posteriores axiologistas?

Bastaria a Economia ser, substancialmente, uma "ciência do valor", para verificar-se quanto nela existe de qualitativo e de problemático e, por conseguinte, de pouco redutível às verdades definitivamente assentes e indiscutíveis.

Por outro lado, a Sociologia, como ciência da sociedade, do ser humano enquanto entidade intersubjetiva que condiciona a atuação dos indivíduos na vida de relação, é a ciência que mais se aproxima dos domínios das letras e das artes, as quais não se desenvolvem como meras abstrações, mas, ao contrário, como expressão da existência social concreta emanada da consciência individual e da consciência coletiva.

Vejo, assim, um liame provocador entre a Sociologia e o que há de imagético ou variável no mundo das Letras, havendo muito de pessoal nas teorias sociológicas contemporâneas, sobretudo quando quem as desenvolve tem básica formação filosófica, como é o caso de nosso novo confrade.

Ao sentar-se, pois, José Pastore ao lado de poetas, romancistas e contistas - para não falar de filósofos, historiadores e juristas - estará ele compartilhando das mesmas hesitações e dúvidas que nos acomumam, máxime em se tratando de um mestre de Sociologia, que é uma ciência que, a meu ver, se situa entre o conhecimento positivo das ciências naturais e o da Filosofia tão impregnado de conjeturas.

É esse magnífico patrimônio cultural que enriquece as obras de nosso novo colega que apresenta um currículo universitário de marcantes amplitude e profundidade, compreensível por ser de quem ostenta o expressivo título de doutor honoris causa da Universidade de Wisconsin nos Estados Unidos da América, e que no Brasil, veio construindo seu cabedal de conhecimento invejável ao longo de sua carreira no magistério da USP, na qualidade de professor titular.

Não podem também ser esquecida suas fecundas participações na vida pública, como Chefe da Assessoria Técnica do Ministério do Trabalho, ou representante do Brasil na OIT - Organização Internacional do Trabalho, em Genebra.

Autor de centenas de artigos em jornais e revistas, seria impossível, nesta breve saudação, enumerar todos os seus livros, bastando lembrar alguns deles, os mais recentes, A Evolução do Trabalho Humano, de 2001, sendo editado no mesmo ano Trabalho, Família e Costumes, títulos que falam por si, mostrando os amplos horizontes em que sua atividade cultural se desenvolve.

Não posso, todavia, deixar de recordar outra obra elaborada com rigorosa técnica científica e com alta sensibilidade social. Refiro-me a Oportunidades de Trabalho para os Portadores de Deficiência, que é de 2000. Graças a essa obra, ficamos sabendo que o Brasil possui cerca de 16 milhões de pessoas deficientes, com nove milhões em idade de trabalhar, dos quais apenas um milhão trabalha. Pastore conseguiu demonstrar que tão somente menos de 200 mil possuem carteira assinada e dispõem da proteção das leis trabalhistas e previdenciárias. Basta esse impressionante cenário para termos ciência de quanto devemos às pesquisas sócio-econômicas de José Pastore, que, ademais, apresenta uma série de sugestões e medidas a serem tomadas para superar esse degradante quadro de exclusão social.

O homenageado desta tarde não se limita ao estudo do Brasil, estendendo seu poder de indagação à Ásia e notadamente ao Japão, como revelam dois livros de 1993, a Flexibilização do Trabalho na Ásia e Relações do Trabalho no Japão, tão importantes quanto seu estudo de 1994 sobre Uma Revolução pela via democrática: o Caso de Nova Zelândia.

Ademais, em 2002, o Instituto Japonês do Trabalho, de Tókio, editou seu estudo "Labor Standards and International Trade: The Case of Child Labor in Brazil".

É com essa preciosa bagagem cultural que o novo acadêmico vem enriquecer a nossa Instituição, mas seria imperdoável se olvidasse que ele é também jornalista na plenitude de suas contribuições.

A particularidade do jornalista consiste em jamais querer guardar para si aquilo que sabe, sentindo constante necessidade de dá-lo a conhecer ao público em geral.

O jornalismo é, inegavelmente, uma atividade literária, implicando a sabedoria da notícia ofertada periodicamente, o que exige técnica especial de comunicabilidade.

Jornalismo quer dizer comunicação e informação literária periódica para a acessível compreensão do maior número de leitores, o que exige conhecimento da língua tão bem como o dos demais companheiros de uma Academia de Letras.

Não creio seja necessário acrescentar algo para legitimar o ingresso entre nós de José Pastore, notória que é a sua competência como sociólogo da economia, como analista dos grandes problemas político-sociais do País, e como jornalista.

É à luz desses amplos e diversificados atributos que tenho o prazer de saudá-lo, e de dizer-lhe com alegria: “seja bem-vindo!”



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