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SOMOS VÁRIOS...
Acadêmico: José Renato Nalini
Para Coelho Neto, o crítico Silvio Romero era alguém “lerdo, bamboleando o corpo flácido, sempre com livro e papéis debaixo do braço, parecendo, na sua aparência pacata de burguês mal enjorcado e mole, descer a vida na correnteza do destino como uma folha morta ao léu das águas”

Somos vários...

...depende de quem nos enxerga e de como nos enxergamos. Mário de Andrade invocou a condição de ser mais de trezentos... Somos alguém a partir de nossa autoconsciência, embora possamos nos transformar no decorrer do percurso. Como somos julgados pelos semelhantes?

É o que se aprende quando tem de resolver questões de crimes de honra. A honra subjetiva, a nossa lente singularíssima para julgar a nós mesmos e a lente alheia, que pode se utilizar de outros critérios, que não os nossos...

Para Coelho Neto, o crítico Silvio Romero era alguém “lerdo, bamboleando o corpo flácido, sempre com livro e papéis debaixo do braço, parecendo, na sua aparência pacata de burguês mal enjorcado e mole, descer a vida na correnteza do destino como uma folha morta ao léu das águas”.

Era o retrato do ferino avaliador da obra alheia, no final de sua trajetória de lutas, sob o peso de muitos filhos, extenuado das muitas batalhas em que se empenhara. Seu objetivo era fornecer ideias novas a um país medíocre, cultor do lugar comum e da boçalidade.

Já na visão de Abelardo Romero – e o nome de família não é mera coincidência – Silvio era outro: “vistoso na sua sobrecasaca negra e mais alto ainda com o chapéu de coco”. É assim que aparece no último capítulo do livro em que recompõe a imagem paterna, “Silvio Romero em família”.

Por esse tempo estava o crítico viúvo pela segunda vez e estava com quarenta e um anos. Espadaúdo, musculoso, desassombrado, jovial. Gênio alegre e comunicativo, muito agradável o seu convívio, exatamente o oposto do mordaz destruidor de pretensos talentos. Não economizava bordoadas e causava polêmica, refletida em seus artigos de jornal e insertos nos livros que escreveu.

Insatisfeito com a viuvez, estava à caça de outra mulher. Quando a conversar com seu amigo Apulcro Mota, à porta da casa deste, viu duas moças que se aproximavam.

Elevou o tom de voz:

- “Que bonitas raparigas!”.

Uma das jovens lhe respondeu:

- “Ah, Dr. Silvio. Bonita mesmo não sou eu. Ela está lá em casa. É a minha irmã Mocinha!”.

- “Pois se é assim como diz – volveu o escritor – traga a mana, que eu me caso com ela!”.

No dia seguinte, bem cedo, era Silvio quem ia, curioso, a uma casa da Rua do Mercado, querendo conhecer a jovem. Por sinal, era filha de outro amigo seu, o Major Odorico Barreto.

Encantou-se com “Mocinha”. Foi logo direto, sem hesitar:

- “Queres casar comigo?”.

A moça, que talvez já esperasse a abordagem, alertada pela irmã, pareceu concordar. Ainda quis mostrar que estava muito satisfeita com o pedido, diante da fama já granjeada por Silvio Romero:

- “Ora, Dr. Silvio! Que pergunta! Meu pai ficará muito contente com a notícia...”

Não demorou e Silvio pediu ao Major a mão da filha. Como partiria em seguida para o Rio de Janeiro, adiou por quinze dias o seu regresso, para viajar casado.

Feliz com a perspectiva de novo casamento, em casa de Apulcro Maia referiu sua sorte e comentou, enquanto ria:

- “Casei-me com uma pernambucana; nunca mais! Casei-me com uma fluminense; nunca mais! Agora, vou ver como me saio com uma sergipana...”

Tudo indica, ao menos a História registra, que ele foi muito feliz.

Mas continuava a enfrentar dificuldades financeiras. Família grande. Não frequentava a Academia Brasileira de Letras, enquanto não se pagava jeton. Assim que instituída essa ajuda de custo, passou a ser assíduo. Carlos de Laet, bem sarcástico, o provocou:

- “Você, Sílvio, não costumava vir aqui. Mas agora nos dá a honra de sua companhia, com frequência...”

Silvio não se fez de rogado:

- “De fato, eu não frequentava. Mas depois que instituíram o “milho”, passei a vir cá – assim como você e outros que estão aqui – para comê-lo!”.

Casado pela terceira vez, não deixou de ser um cortejador do belo sexo. Chegava a mudar de assento, no bonde, para ficar perto de uma jovem que lhe parecesse abordável. Se estivesse com algum amigo, explicava a atitude: - “Pois não viste aquela mocinha magrinha, com aquele pescocinho fininho e engorgitado? Aquilo é de matar um homem, Nossa Senhora!”.

Esse era Silvio Romero. Não era um, era muitos. Depende do ângulo observado e dos olhos de quem observasse.

Publicado no Estadão/Blog do Fausto Macedo, em 13 06 2025



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