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CONTRA AS TREVAS, UM CLARÃO
Acadêmico: José Renato Nalini
Como dizia Cecilia Meireles, do “Jardim das Memórias”, só eu tenho a chave e o percorro quando quero. Ou como diz a própria Betty Milan: “o amor dos amigos nunca é de agora. Ele precede o encontro

Contra as trevas, um clarão

Tempos tenebrosos os impregnados de interesses, corrupção e falsidade. O advento do universo digital, que iludiu os ingênuos com o prenúncio de uma verdadeira democracia direta na vida pública e um denso amálgama afetivo na vida privada, mostrou-se pender para o mal. Intensificou-o. Desinibiu os que se constrangiam de se mostrar rudes e destravou as cloacas, de onde se expele o que de mais horrendo se possa imaginar.

Tal cenário seria desestimulador para livros edificantes, como “O Clarão” de Betty Milan. É um romance ancorado na vibrante biografia de Carlito Maia (1924-2002), considerado um gênio de criatividade, com destaque no mundo da publicidade e criador de frases que se tornaram populares em todo o Brasil.

Assim como esse verdadeiro pregador da solidariedade, para quem o “penso, logo existo” cartesiano deveria ser “penso nos outros, logo existo”, Betty é mulher sensível e perita nos meandros da alma humana. Sob o verniz da psiquiatria, está a mulher que absorve as vulnerabilidades alheias e se propõe a fornecer um equipamento de sobrevivência para as vítimas de qualquer anomalia ou desordem mental.

Foi o seu charme que fez Carlito Maia se encantar com ela. Ambos exímios artífices da palavra, só poderiam se tornar confidentes. Amizade ancorada na criatividade e nutrida por mensagens doces tais como a frase “Conta no teu jardim as flores e os frutos, mas não conta as folhas que tombaram” ou “O nosso amor de agora é só amor; não é de agora”.

Privar de convívio inteligente é privilégio reservado a poucos. Quem imaginaria diálogos como “Se você diz que me ama, prove”. E a resposta: “Impossível, as provas são para os atletas, e não para aqueles que se amam e nada mais”. O aprendizado recíproco era baseado em confiança irrestrita, de individualidades que se reconhecem e, por serem lúcidas, sabem que o peregrinar é prenhe de obstáculos. Por isso poderem afirmar: “tenho vocação para a tristeza, mas creio demais na alegria”.

Carlito e Betty experimentaram intensa e verdadeira amizade. Ela consegue exprimir em síntese feliz: “O fato é que havia grande afinidade. O conselho de um era tão acertado para o outro, que um mais confiava no outro do que em si mesmo. E, além do conselho certeiro, havia a liberdade de falar sem medo. Diga, insistia ele, sempre que ela hesitava em contar o que a atormentava. E daí, simplesmente por dizer, ela descobria uma saída”. Porque Carlito a escutava, Betty se ouvia.

Antes de partir para o mistério, Carlito Maia perdeu a voz. Betty ficou sem o conforto das palavras do amigo que a estimulava a resistir, quando vicissitudes faziam questão de acompanhá-la. “Só a paciência é feita de esperança. A perfeição não é desse mundo. Não começar a parar. Não parar de começar”.

Mesmo na mudez, Carlito não perdia o humor, o que Betty chama de “a delicadeza do desespero”. Ele escreveu para ela: “Agora sei que não sou capaz de falar. Um comunicólogo que não se comunica!”. Para animá-lo, Betty responde com um poema que ele mesmo, Carlito, um dia lhe mandara: “Apaga-me os olhos ainda posso te ver. Tapa-me os ouvidos ainda posso te ouvir. Mesmo sem boca, posso te invocar”. E acrescenta: “O poema não parece ter sido para nos encorajar?”. Ele responde: “Do nome do autor dos versos eu não consigo me lembrar, mas sei que o poema foi concebido para nós”, junto com um buquê de rosas vermelhas.

A imaginação continuava a habitar o corpo que se fragilizava. A mensagem “só o faz de conta me faz agora sonhar” é eloquente. Acerto de contas com uma vida colorida, repleta de originalidade: “venci na vida perdendo, sendo um fracasso bem-sucedido”. E a vontade de ver a amiga: “Não tenho como não contar que só me resta pouco tempo. Venha o quanto antes”.

Amizades como a de Betty e Carlito não morrem. Permanecem na memória e alimentam o cardápio das lembranças. Como dizia Cecilia Meireles, do “Jardim das Memórias”, só eu tenho a chave e o percorro quando quero. Ou como diz a própria Betty Milan: “o amor dos amigos nunca é de agora. Ele precede o encontro”. Por isso ela teve a impressão de reconhecer Carlito no mesmo dia em que o conheceu.

Com quantos amigos assim é que nós podemos contar?

Publicado no Estadão/Blog do Fausto Macedo, em 04 06 2025



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