Compartilhe
Tamanho da fonte


UM IMPROVÁVEL DESENTERRO
Acadêmico: Gabriel Chalita
Se eu pudesse, eu desenterraria e diria que foi um erro. O erro é achar que não posso. Posso. Posso, inclusive, acreditar que, no fim, o fim é inteiro.

Um improvável desenterro

Acordei com as mãos imundas de inexistente terra. A terra onde enterrei meu filho é ainda dor em mim. Quem autorizou tamanho sofrimento? Uma mãe nunca deveria beber esse dissabor. 

Eram saborosos os tempos em que tínhamos, juntos, a eternidade. Um alimentar, um brincar, um plantar no quintal árvores que nos encobririam depois de algum tempo. Ele também prometia ser mais alto que eu. Um dia, se deitou. Não vou falar do que o fez calar. Já falei demais e a dor ainda não calou. 

Acordei depois de um sonho em que eu o desenterrava do túmulo frio. Em que eu o esquentava em meu amor, e as partes desfeitas do seu corpo, pelo tempo de sepultura, miraculosamente se refaziam. E um pouco antes do seu sorriso, sim, estou certa de que o desfecho era o seu sorriso para mim, eu acordei. Acordei indócil exigindo o sono e o sonho. Que permanecem como ele jamais deixou de permanecer.

Sei que a vida é sonho e é sepultura. Sei que, se vencermos a aridez das ausências, sonharemos. E sei, por viver, que alguns deles, dos sonhos, terão de ser enterrados. 

Sei, também,  que desenterrar alguns sonhos é possível. Digo isso de mim. De um amor desenterrado mais de uma vez, antes do nascimento do meu filho. De uma teimosia em dizer fim ao fim. Sei de observar a vida dos outros, além da minha própria, que sepulturas sepultam e se abrem quando incompreendemos. Quando incompreendemos o amanhecer. 

Acordei antes do amanhecer. Todas as dores se deram por acanhadas, quando a dor maior me tomou. Um filho. Um filho sofre ao dizer adeus à mãe, eu sofri.

Minha mãe está na mesma sepultura do neto. É duro demais, mas é o rio que corre. O enterro de um filho é o rio que discorre. Um rio de ditos que não cicatrizam. 

Minhas mãos estavam encharcadas da terra úmida quando do sonho interrompido. Eu queria dizer delicadezas. Dizer da fé que tenho, e tenho. Dizer do meu conversar com ele, mas hoje não é o que eu quero dizer. 

Quero dizer, apenas, que sou mulher, que sou mãe, que sem filho algum dizendo dizeres de amor, prossigo sendo mãe.

Quero dizer que, se me virem em silêncio, respeitem. Se me virem sorrindo, não escrevam conclusões sobre o meu sentir. 
Sinto que tenho forças para prosseguir. Sou dos barros bons. Sou filha de uma mulher que teve a coragem de dizer 'não' aos 'nãos' do meu pai. Homem que preferia as ruas ao quarto de casa, que, quando confrontado, confrontava com espancamentos. Um dia, ela disse 'não' e colocou na sepultura a história dos desencontros. Olhou nos meus olhos e assegurou que seu casamento não foi um erro, porque havia um broto feito flor feito mulher feito amor. Uma filha é um sopro de suavidade e quentura, de sorrisos e medos, de textos e rasuras até que o entardecer nos leve para o filho prosseguir entardecendo. É assim que deve ser.

E, quando, não é?

As minhas mãos, agora, tremem quando explicam que não há desenterro algum. Que o que há é a vida. E que é preciso que eu me lave, mesmo sem estar suja. Que eu acenda uma vela a ele e a mim. Que eu aproveite o início do inverno e me agasalhe de afetos para prosseguir vivendo. 

Se eu pudesse, eu desenterraria e diria que foi um erro. O erro é achar que não posso. Posso. Posso, inclusive, acreditar que, no fim, o fim é inteiro. E que o amor que eu sinto é um delicado detalhe deixado, por aqui, por Deus ou por algum anjo bom,  para que possamos compreender que, depois do plantio na terra, a semente brota. Meu filho é eternidade. 

Acordei, depois de acordar, e já consigo um sorriso. É como se ele soprasse em mim: “Mãe, está tudo bem”. E eu respondesse ao seu dizer: “Eu te amo, meu filho, nenhuma morte é mais forte do que esse amor, eu te amo, filho”.

Publicado em O Dia, em 01 06 de 2025



voltar




 
Largo do Arouche, 312 / 324 • CEP: 01219-000 • São Paulo • SP • Brasil • Telefone: 11 3331-7222 / 3331-7401 / 3331-1562.
Imagem de um cadeado  Política de privacidade.