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TOM ZÉ, A TROPICÁLIA LIBERTADORA
Acadêmico: José de Souza Martins
A obra musical e poética desse grande e criativo compositor contém desafios poderosos porque é uma obra de insurgência contra o convencional

Tom Zé, a Tropicália libertadora

Publicado em Eu& (Jornal Valor), An0 25, Número 1.263, Sexta-feira, 16 de
maio de 2025, p. 5.

Tom Zé, a Tropicália libertadora
???José de Souza Martins*

Na noite do mesmo dia em que recebi a biografia de Tom Zé, comecei a lêla. Com voracidade. (Tom Zé, Fiz meu Berço na Viração, Texto de Ivo Mineiro
Teixeira, conversas com Tom Zé, por Giuliana Simões e Flávio Desgranges,
Hucitec). Sem poder parar. O livro desvenda a sonoridade do avesso que é o de
nossa realidade e de nossa mentalidade conformista, da lógica de ocultação dos
segredos sonoros e poéticos que nesse avesso há.

A biografia de Tom Zé é a da descoberta da oposição reveladora que há entre
Salvador, a cidade, e o interior da Bahia, o sertão. Porque mundos de lógicas
diferentes e antagônicas, cujo desencontro deixou em nossa história um monturo
de resíduos sonoros estigmatizados e desprezados. O lixo da lógica.

A obra musical e poética desse grande e criativo compositor contém desafios
poderosos porque obra de insurgência contra o convencional, contra o que mede
o que só tem sentido se não for medido. O que não parece ser o que é.

Não é um livro para simplesmente ler, mas um livro para ouvir. Na leitura,
Tom Zé estava falando comigo. Seu livro é um livro da tradição oral, invertido em relação à tradição escrita.

Na língua falada há sempre muito mais do que se diz por escrito. Há
silêncios, ruídos, gestos inaudíveis, tudo componente de uma língua que é outra.
Língua dos que foram calados ao longo da história pelas formas de expressão da
lógica aristotélica, como ele a define.

Tom Zé é um erudito garimpeiro que percorre o monturo das sonoridades e
sons inaudíveis no ensurdecimento que decorre das convenções. Ele vasculha e
encontra, cria instrumentos estranhos, produz com eles a música anômala do
harmônico desarmônico, das músicas nunca ouvidas, nunca tocadas porque
nunca catadas na dispersão de sons num mundo cuja racionalidade é a do
logicamente restritivo.

Há uma filosofia brasileira por trás desses resíduos dispersos no limbo
contraditório e anômalo de sonoridades desconhecidas, concebidas como ruídos
e dejetos sonoros. As descobertas e invenções de Tom Zé me lembram do único
preto operário da fábrica em que trabalhei na adolescência.

Ele trabalhava solitariamente num grande galpão a remover carvão de lenha
de um lado a outro para evitar sua combustão espontânea. Quando por lá passava não o via, só o sorriso branco suspenso na escuridão do recinto. Ele era o ruído seco e ritmado do carvão jogado sobre o carvão. Era o baterista da linha de produção, de bateria invisível e de estranha sonoridade. Recebia salário de
operário sem saber que era músico. Passou a vida tocando aquele solo triste.

A obra de Tom Zé revela também uma arqueologia da força das palavras, de
palavras que dominam o dizer, em que o final de uma já engendra a outra que é
de outra ideia, a do duplo dizer. Como no vernáculo peculiar em “Menina Jesus”,
uma incongruência congruente. A exclamação popular, cotidiana e mística que se
revela no título da música: “Minha menina, Jesus!”, redutiva, de um implorar
misericórdia em face da adversidade: “Acode minha menina, Jesus!” E não
designação de um Jesus menina.

Ou o notável “São São Paulo” para designar a cidade que é uma bênção para
o migrante, mas é contradição e adversidade vivencial ao mesmo tempo.

Acolhedora sem ser hospitaleira. Revelação do conteúdo inverso do que musical
e socialmente desafina. Encontro no desencontro. Andar para trás quando se
caminha para a frente, despiste, estratégia de sobrevivência. Curupira vivencial
de um país que caminha sempre sem chegar nunca.

É um dizer do avesso, revelação de uma sociedade que se empobrece não só
porque reduz o pão nosso de cada dia mas limita também o canto nosso de cada
instante. O discurso como travessia, em que, com Guimarães Rosa, a importância do dizer está no meio e não no começo nem no fim, um dizer inconcluso.

Tom Zé, nos sons que descobre e inventa, exuma dessa prisão da travessia
inacabada o que somos como povo e não sabíamos. O dizer dos subalternos tem
sido aqui o dizer contido por temor a quem manda. Coisa de uma sociedade de
escravos.

Nas composições de Tom Zé, a insurreição dos ínfimos contra a sujeição do
medo. Como lhe escrevi: “nas fábricas em que trabalhei desde criança, ouvia sons e ruídos, variados dependendo da secção, das máquinas, das ferramentas e da matéria prima, o dia inteiro. Eles ficaram grudados na minha memória. Tenho
consciência de que era uma sinfonia nunca composta, só ouvida, não tocada,
resíduos musicais do trabalho e das máquinas”

Se soubesse música, eu poderia ter transcrito toda aquela imensa
sonoridade pós-moderna para Tom Zé. E nela ele me mostraria que eu era um
menino de fábrica que ouvia música sem saber que era música, como tantos de
nós.

Publicado no jornal Valor Econômico, em 16 05 2025



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