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É DIFÍCIL SOFISTICAR
Acadêmico: José Renato Nalini
Eduardo Prado era proprietário de imóveis rurais nos quais implementava tudo o que era mais up-to-date. A Fazenda do Brejão, no interior de São Paulo possuía rio e lago e Eduardo quis proporcionar a seus convivas uma inesquecível pescaria

É difícil sofisticar

Eduardo Prado foi um dos paulistas mais aristocratas de sua era. Rico, educado, aficionado à modernidade, serviu de modelo a seu amigo Eça de Queiroz, que o eternizou como o ultracivilizado Jacinto, personagem do conto “Civilização”, depois mais presente ainda no romance “A Cidade e as Serras”.

Era tamanha a amizade entre os dois, que Eça redigiu um admirável ensaio, postumamente incluído no volume “Notas Contemporâneas”, que reuniu em coletânea a vasta produção nos jornais lusos, para homenagear o brasileiro de quem foi íntimo.

Nesse ensaio, Eça de Queiroz disseca vários aspectos da personalidade de Eduardo Prado, enfatizando que a qualidade dominante de seu espírito era a curiosidade. Uma curiosidade que o conduzia a descobrir, com destemor, o que o futuro reservaria para a sua Pátria, para a qual pretendia trazer todas as modernidades que surgissem no mundo mais civilizado.

Só a curiosidade pode explicar o afã de Eduardo Prado na sua “A Ilusão Americana”, com sua ansiedade contínua das novidades, a explorar o que de mais atual se fizesse nos Estados Unidos, para o transplante, após alguma adaptação, a esta terra ainda inculta e em estágios muito distintos de progresso.

Por ser brasileiro raiz e por admirar o avanço da ciência e da técnica no restante do mundo, Eduardo Prado vivia o contraste “civilização-vida rústica”, tão bem elaborado por Eça de Queiroz em sua obra. Novidades que se espraiavam por todos os setores da vida, como nas artes, na literatura, na técnica, na ciência. Eça prosseguiu na senda aberta por Jean-Jacques Rousseau no século XVIII, quando afirmava que a vida em natureza era pura, incorruptível, e que o homem só se enodoava quando passasse a conviver com os demais.

Um dos episódios mais pitorescos do romance “A Cidade e as Serras” é aquele que retrata a pescaria do peixe da Dalmácia no elevador enguiçado, objeto do capítulo IV. É um texto caricatural. O requinte da civilização era então, para Eça, o elevador a subir e a descer entre cozinha e sala de jantar. Só que a geringonça enguiçou, exatamente na hora em que seria servido o peixe. Os convivas ficaram famintos, por causa do excesso de recursos mecânicos modernos em casa de Jacinto de Tormes.

Isso, que acontece ainda hoje quando oscila a internet, quando falha o streaming a qualquer temporal que se abate sobre as cidades – consequência de nossos seculares maus-tratos infligidos à natureza – era também hipótese não remota no século XIX.

A cena tragicômica teria acontecido na vida real, na casa superdotada de recursos então contemporâneos, em que residia Eduardo Prado. O certo, é que o herdeiro da tradicional família Prado, primeiro ocupante da Cadeira 40 da Academia Brasileira de Letras, gostava de pescarias sofisticadas, bem programadas e com o esmero e fidalguia dos quatrocentões de Piratininga.

Afonso Arinos de Mello Franco foi seu sucessor na Academia Brasileira de Letras e, em seu discurso de posse, teve de tecer o louvor ao confrade desaparecido. Contou, para trazer humor a essa oração de saudades, um episódio expressivo.

Eduardo Prado era proprietário de imóveis rurais nos quais implementava tudo o que era mais up-to-date. A Fazenda do Brejão, no interior de São Paulo possuía rio e lago e Eduardo quis proporcionar a seus convivas uma inesquecível pescaria.

A proposta era transformar a pesca, geralmente uma ocupação calma e silente, atividade de paciência e vagar, num esporte mais dinâmico. Eduardo Prado comprou em Londres uma infinita variedade de anzóis, com iscas de borracha, inúmeros apetrechos mecânicos. Enfim, a última palavra em matéria de instrumentos para pescarias.

Orgulhosamente, quis exibir o seu acervo recém-adquirido aos seus empregados rurais. A cada peça, dizia qual era a finalidade e decantava suas qualidades. Quando terminou a exposição sobre as vantagens de tudo aquilo, deteve-se sobre a novidade das iscas de borracha vermelha.

Um de seus roceiros achou que elas mais pareciam adorno de colar indígena. E manifestou o seu ceticismo ao patrão:

- “Doutô, nossos peixe de cá não pega nisso não. Eles são muito velhaco. Nas iscas de verdade eles custa a morder. Imagine nessas. Não morde não, Doutô!”.

E, na verdade, não morderam.

O que não é novidade. Outras novidades educacionais, culturais, políticas, éticas, tudo o que lembra sofisticação civilizatória, é repudiado no Brasil. O brasileiro é muito afeiçoado às suas fábulas, lendas e superstições. É deixar assim, para ver como é que fica...

Publicado no Estadão/Blog do Fausto Macedo, em 28 04 2025



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