Compartilhe
Tamanho da fonte


PALPITE INFELIZ
Acadêmico: José Renato Nalini
A História está repleta de ocasiões em que se fez uso dessa desagradável estratégia de sugerir modificações em trabalho alheio. Uma delas envolve o poeta Raimundo Correia e ninguém mais especial do que o Imperador Pedro II

Palpite infeliz

“Quem é você, que não sabe o que diz? Meu Deus do céu, que palpite infeliz” é uma das melhores músicas de Noel Rosa. Retrata um costume recorrente que é o de dar opinião sobre assunto que não domina, ou de fazer valer sua vontade, impondo comandos a outrem.

A História está repleta de ocasiões em que se fez uso dessa desagradável estratégia de sugerir modificações em trabalho alheio. Uma delas envolve o poeta Raimundo Correia e ninguém mais especial do que o Imperador Pedro II.

Logo após à publicação das “Sinfonias”, saudado pela crítica como um dos maiores poetas do Brasil, recebeu Raimundo Correia a visita do Barão de Paranapiacaba, que lhe trazia um recado do Imperador:

- “Sua Majestade quer conhecê-lo. E espera-o amanhã no Paço da Quinta da Boa Vista”.

No dia seguinte, à hora marcada, vencendo a timidez de seu feitio, estava o poeta diante do Imperador.

E este, após os cumprimentos:

- “Já li o seu livro. Os seus versos são admiráveis. Mas há um verso no seu soneto “As Pombas”, que não me parece bom”.

Logo sucedeu um silêncio sepulcral no salão das recepções. A mudez contaminou todos os presentes que, até então, palravam alegremente. A face de Raimundo enrubesceu. Mas ele permaneceu atento e afiou os ouvidos, à espera da lição poética de Sua Majestade.

E o Imperador:

- “Creio que encontrei para o seu verso uma emenda feliz. Como é mesmo o soneto?

Mais vermelho ainda, Raimundo Correia começou:

- “Vai-se a primeira pomba despertada...”

E o Imperador:

- “Mais para o fim, onde fala em asas e penas...”

Continua o poeta:

“Ruflando as asas, sacudindo as penas...”

- “Esse mesmo!”, confirmou Sua Majestade.

E muito grave, com ar professoral e arrogante:

- “Não está bem. Ruflando soa mal. Dá ideia de tambores. E prejudica o verso. Substitua por este outro, que me parece muito melhor:

“Sacudindo as asas, sacudindo as penas...”

Raimundo ouviu silente. Mas deve ter pensado: além de quebrar o verso, a emenda imperial o desfigurava, tirando-lhe a beleza.

Alarmado, não sabia o que dizer.

- “Não lhe parece que tenho razão?”, indagou Pedro II, afável e sorridente.

E o poeta:

- “Sim. Vossa Majestade tem razão”.

E numa promessa que não cumpriria:

- “Na próxima edição do livro, terei o cuidado de fazer a emenda que Vossa Majestade me sugeriu!”.

Por sinal, Dom Pedro II, detentor de inigualáveis qualidades, não era considerado um grande poeta. Daí a falta de originalidade na proposta de alteração de um soneto que não precisa dela e que em nada precisa ser modificado.

Raimundo Correia foi elegante, ao não discutir com o Imperador. Era uma pessoa ensimesmada, estranha, como os poetas têm o direito de ser. Quando se considerava sem inspiração, recorria ao cigarro e ao café. De tal modo se afeiçoara a um e outro, que não podia dispensá-los quando escrevia.

Gravemente enfermo, em Paris, foi proibido de qualquer excitante, por severa prescrição de seu médico.

- “Quanto ao café, concordo”, replicou Raimundo. E continuou: - “Mas quanto ao fumo, em hipótese alguma. Se deixo de fumar, deixo de cantar. E deixando de cantar, sei que mais rápido morrerei...”

E continuou a fumar.

Daí a dias, deu um passeio no Jardim das Tulherias. No regresso, sentindo-se cansado, deitou-se num sofá e, reclinando a cabeça no regaço da mulher, pôs-se a cantarolar baixinho. A voz, aos poucos, diminuiu de tom, como a chama a se apagar. E foi assim que o poeta deixou esta esfera.

Sobreviveria com o seu famoso “As Pombas”, que nunca deixaram de ruflar as asas e de sacudir as penas...

Publicado no Estadão/Blog do Fausto Macedo, em 09 04 2025



voltar




 
Largo do Arouche, 312 / 324 • CEP: 01219-000 • São Paulo • SP • Brasil • Telefone: 11 3331-7222 / 3331-7401 / 3331-1562.
Imagem de um cadeado  Política de privacidade.