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O CORRETO ENQUADRAMENTO DOS FATOS
Acadêmico: Miguel Reale Junior
O exame dos fatos deve ser a fonte indicativa da tipificação precisa, a produzir, então, reprimenda justa e proporcional

O correto enquadramento dos fatos

Hoje, conhecida a trama que redundou na tentativa de golpe, percebe-se que atos desatinados de Bolsonaro, desde abril de 2020, constituíam plano bem urdido visando a anular eleição eventualmente perdida.

Para a denúncia, “especificamente em relação ao sistema eletrônico de votação e aos ministros do Supremo Tribunal Federal/Tribunal Superior Eleitoral, as ações da célula de contrainteligência intensificaram-se a partir da radicalização dos discursos públicos de Jair Bolsonaro, em meados de 2021, caracterizando o início coordenado da execução do plano maior de ruptura com a ordem democrática”. Destaque-se que Bolsonaro chegou a impor às Forças Armadas para não concluírem pela regularidade das urnas eletrônicas.

O plano previa intervir no Tribunal Superior Eleitoral, anular o resultado das eleições e convocar novas, sendo Bolsonaro consagrado em farsa eleitoral “auditável”.

O presidente requereu, em palácio, dos três chefes das Armas adesão ao golpe. A higidez do Estado de Direito já era, então, colocada em perigo com o fato de o presidente da República apresentar aos chefes militares plano de intervenção ilegal.

Impedida a consumação do golpe, com a discordância dos chefes do Exército e da Aeronáutica, deu-se continuidade à ação por outras formas. Adeptos de Bolsonaro foram incitados a acampar à frente de quartéis, sendo alimentados stricto sensu e por mensagens de esperança do próprio Bolsonaro, (pelo perfil @bolsonaro.tv, com emoji “sino cortado”, significando não se desmobilizarem, como mostrou reportagem do Estadão (Como Bolsonaro se comunica com os manifestantes nas portas dos quartéis? Entenda, 30/11/2022). O ministro da Justiça Anderson Torres passou a ser secretário da Segurança do Distrito Federal, garantindo a omissão da Polícia Militar a propiciar o avanço da infantaria dividida organizadamente em três grupos, cada qual para uma sede de Poder.

O roteiro deste outro momento do golpe brota do depoimento dos invasores. Por exemplo: na Ação Penal 1.067, explicaram serem contra o aborto e a legalização das drogas, mas dotados de especial intenção: derrubar o governo empossado. É suficiente lembrar as palavras da ré Cibele, a professora aposentada: “O objetivo era ocupar os prédios, sentar e esperar até vir uma intervenção militar para não deixar o Lula governar”.

Estes depoimentos mostram ser a invasão uma continuidade, com a “mão do gato”, do plano de barrar o governo Lula. Quais crimes foram praticados?

O Código Penal, no artigo 359-L, prevê que o crime de abolição do Estado Democrático consiste em “tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais”. E, no artigo 359-M, estatui ser crime de golpe de Estado “tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído”.

Os fatos indicam, portanto, que o impedimento do exercício dos Poderes constituía um meio para alcançar o desiderato final de depor o governo legítimo, pondo fim ao mandato de Lula.

Sendo assim, aplica-se o princípio da consunção, segundo o qual o crime mais grave absorve o menos grave, bem como o crime por via do qual se vem a realizar outro, o crime-meio, é absorvido pelo crime-fim.

Assinala-se, em julgado da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, STJ (HC n.º 97.872/SP, ministro relator Arnaldo Esteves Lima), que, de acordo com o princípio da consunção, haverá a relação de absorção quando uma das condutas típicas for meio necessário ou fase normal de preparação ou execução do delito de alcance mais amplo.

Por este princípio da consunção, busca-se solução de conflito aparente de normas quando duas normas incidem sobre o mesmo fato. Dessa maneira, os delitos que servem de fase preparatória ou de execução, anteriores de outro delito mais amplo, consuntivo, ficam por este absorvido (STJ – Agravo Regimental no Recurso Especial n.º 1344850/PR, relatoria ministra Maria Thereza Assis Moura).

O crime-meio, efetuado como passagem necessária à prática do crime-fim, é implicitamente subsidiário deste crime-fim, sendo por este absorvido. Por essa razão, Mariângela de Magalhães Gomes (Direito Penal - Jurisprudência em Debate, páginas 631 e 638) explana que, se determinado crime (norma consumida) é fase da realização de outro (norma consuntiva) ou é uma forma regular de transição para o último, o conteúdo do tipo penal mais amplo absorve o menos amplo, por constituir etapa daquele.

Como se percebe, os relatos dos membros da infantaria mostram, de um lado, a responsabilidade dos homens por detrás, os mandantes que, como organização criminosa, recorreram à invasão pela infantaria reunida na frente dos quartéis como meio para provocar a intervenção: “sentar e esperar até vir uma intervenção militar para não deixar o Lula governar”.

Esses relatos, de outra parte, permitem fazer a exata qualificação típica das ações de todos, os da frente e os de trás, pois o certo é o crime de golpe de Estado absorver o crime de abolição de Poder constituído, na linha do voto do ministro Luís Roberto Barroso.

O exame dos fatos deve ser a fonte indicativa da tipificação precisa, a produzir, então, reprimenda justa e proporcional.


Publicado no jornal O Estado de S. Paulo, em 05 04 2025



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