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SALVO MELHOR JUÍZO
Acadêmico: José Renato Nalini
Havia certa animosidade contra o sexo feminino ingressar no sacrossanto mosteiro franciscano convertido em Escola de Direito. Não raro, perguntavam a Lygia: “Você veio aqui para arrumar casamento?” E ela não se embaraçava: “Também!”

Salvo melhor juízo

No país dos bacharéis, a cada semestre o mercado recebe dezenas de milhares de jovens que se formaram em Direito. Nada obstante a bizarra litigância que faz o Brasil parecer a concretização da profecia hobbesiana – onde todos lutam contra todos – muitos são os que não chegam a advogar. Não conseguem superar a frágil barreira do “Exame de Ordem”, onde a reprovação acontece mais pelo desconhecimento do vernáculo do que da falta de noções superficiais sobre as ciências jurídicas. O ponto frágil da educação brasileira está na alfabetização, na ignorância das operações aritméticas mais elementares. Enfim, na falência do ensino fundamental.

Por isso é que muitos bacharéis exercem funções que, embora destinadas a quem conhece direito, são entregues a quem pouco domina esse universo complexo e sofisticado.

Isso existe desde que o ensino de direito era a praxe coimbrã e continuou após a criação dos Cursos Jurídicos no Brasil, em 1827.

Ter o diploma de bacharel em ciências jurídicas e sociais garantia e ainda garante empregos. Principalmente na área pública.

Quando Miguel Calmon era Ministro da Viação, Artur Azevedo, por morte de Machado de Assis, foi promovido a Diretor-Geral da Contabilidade. Pouco tempo permaneceu o teatrólogo maranhense no cargo, como sucessor de seu grande mestre, amigo e companheiro de repartição. No mês seguinte ao do falecimento do autor de “Dom Casmurro”, Artur também seria levado pela ceifadeira.

Mas houve tempo para exercer sua nova função nesse breve período de trinta dias. Havia ele encaminhado ao Ministro o expediente para pagamento de um fornecedor do Ministério. Nada obstante o “visto” de Artur Azevedo no documento, notava-se flagrante discordância entre a requisição da verba e o total da dívida.

Constatado o engano, Miguel Calmon despachou: “Volte ao Diretor da Contabilidade para esclarecer, pois, apesar do seu “Visto”, o expediente não está certo”.

Artur Azevedo, logo a seguir, restituiu o expediente ao Ministro, com esta informação: “Senhor Ministro. Confesso que pus o “visto”, mas não a “vista” neste expediente”. E fez a emenda que o regularizou.

Miguel Calmon, ao ler a informação, não pode deixar de rir e de reconhecer a tirada inteligente e bem-humorada de seu subordinado.

Esse episódio me faz recordar algo que a querida Lygia Fagundes Telles também descrevia. Depois de se formar em Educação Física e de praticar atletismo, corrida e outros esportes, como o basquete, a linda romancista de “As meninas” foi fazer Direito nas Arcadas.

Eram tempos de poucas mulheres na Academia do Largo de São Francisco. Dentre elas sua amiga e depois confreira na Academia Paulista de Letras, Esther de Figueiredo Ferraz.

Havia certa animosidade contra o sexo feminino ingressar no sacrossanto mosteiro franciscano convertido em Escola de Direito. Não raro, perguntavam a Lygia: - “Você veio aqui para arrumar casamento?”. E ela não se embaraçava: - “Também!”.

Acabou se casando com um seu professor, Goffredo da Silva Telles, com quem teve seu único filho, de igual prenome e que premorreu aos pais.

Lygia era uma talentosa escritora. Seus romances e contos a credenciaram a ser a brasileira que mais perto chegou do Nobel de Literatura. Chegou a ganhar o Prêmio “Camões”, de análoga envergadura.

Mas para sobreviver, precisava trabalhar na burocracia. Foi assim que se tornou Procuradora Jurídica do IPESP. A ela cabia examinar os processos que por ali corriam. A questão da Previdência do funcionalismo já era complicada à época.

Exarava seu parecer e terminava com o clássico “Salvo melhor juízo”.

Ela aceitava a observação e não a considerava uma crítica. Nascera para a literatura, para o encanto, para o sonho.

Embora no etéreo, continua a iluminar os privilegiados leitores que se extasiam com seus livros atemporais, com a beleza de seus romances, a mágica de seus contos, a doçura e a lucidez de seus ensaios e daquilo que ela mesma chamava de “autoficção”. Não há mulher mais fascinante da literatura brasileira do que Lygia Fagundes Telles. Estou convicto de que não haverá melhor juízo do que esse.

Publicado no Estadão/Blog do Fausto Macedo, em 04 04 2025



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