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O QUE O FOGO SILENCIOU
Acadêmico: Gabriel Chalita
Apagar ou queimar é essencial para os renascimentos. Não para esquecimentos. Mas para prosseguimentos.

O que o fogo silenciou


Ouvi de uma amiga a decisão inegociável de por fim a uma dor.  Disse com precisão que algumas dores não batem à porta, apenas entram e desconversam o tema da permissão. 
Outras só permanecem se autorizamos. 

E foi assim que ela, em instantes, apagou no celular anos de conversas de uma história que prometia a eternidade. Seu amor fez mágoa. Seu futuro com aquela companhia deixou de ser, em alguns instantes. 

Eu ouvi sem dizer do amanhã. Sem dizer do que prometemos e não cumprimos. Do que encerramos e prosseguimos. Dos embates valentes entre a razão e o sentimento. Fizemos silêncio, enquanto os olhos emprestavam lágrimas para alívios da alma. Ela se deitou em meu colo e se encolheu como que no ventre materno, como que pedindo um outro nascimento. 

Nascemos várias vezes em uma vida. Nascemos, inclusive, todos os dias. Nascemos, com mais força, em todos os momentos em que retiramos de nós o que nos impede o próprio nascer. 

Nasceu em mim, naqueles instantes, a lembrança de tia Joelma, que eu compartilhei com ela, minha amiga Joana.  Nomes tão próximos, dores tão parecidas, tempos distantes no despedir o amor. O amor?

Eu era adolescente quando vi minha tia sentada ao pé de uma caixa no quintal de chão de terra. A caixa tinha fogo. E o fogo ia sendo alimentado por cartas, há anos guardadas de um antigo amor. Ela chorava, enquanto lançava uma a uma. Chorava e dizia nada. Fui ficar perto dela, sem entender muito. Ela autorizou. 

Era noite. E aquele fogo iluminava bonito e, também, aquecia e, também, explicava. Tia Joelma não revelou toda a história. Soube, por comentários outros, que as revelações vieram antes. Antes da noite do fogo. Antes da noite em que o fogo silenciou tantos dizeres. Eu entendi que eram mentirosos. Acreditar, durante anos, em uma história e ter que desacreditar é um ato de coragem. 

O tio, que já não me lembro o nome, e conheci poucas vezes, não era apenas da minha tia. As cartas enviadas para disfarces precisavam ser queimadas. Ele se justificava viajante. Tinha que estar distante para cumprir suas obrigações. 

Obrigada à espera, um dia ela soube. As viagens eram para a casa de antes, para a casa de sempre. Era outra mulher. Eram os filhos. E as juras de fidelidade. 

Minha tia não quis destruir o casamento da outra. Nem fez chegar quem era.  Apenas queimou as cartas. Queimou quase dez anos de um namoro aguardando casamento. 

Casou depois. Tio Miguel foi um marido especial. Viveram de delicadezas e de verdades. Certamente sofreram, certamente conviveram com imperfeições, mas o certo é que decidiram ser um do outro. 

Já morreram todos, menos a história. As labaredas queimando a espera. O fogo fazendo cinzas das mentiras escritas com alguma beleza. A beleza maior é conseguir. Conheci outras histórias que fingiram não saber o sabido, que conviveram com o falso, com o inventado. Que sofreram a conta-gotas. 

Não sei se Joana, minha amiga, vai ter a decisão de minha tia Joelma. É muito recente. Os dizeres que nos dizemos nem sempre prosseguem nas teias dos sentimentos. Mas já é um primeiro passo. 

Apagar ou queimar é essencial para os renascimentos. Não para esquecimentos. Mas para prosseguimentos. A esperança é diferente da espera. A espera é passiva. A esperança é corajosa, inclusive para explicar que a espera já não mais é devida.

Publicado no jornal O Dia, em 19 05 2024



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