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ESTADO LAICO EM QUESTÃO?
Acadêmico: Rubens Barbosa
Mesmo derrotado nas eleições, movimento da direita conservadora cresce e se consolida como força política que não pode ser ignorada. Para embaixador, polarização interna está se transformando em risco para a democracia pela tendência à radicalização ideológica

Estado laico em questão?

No Brasil, a eleição de 2018 foi um marco na história política nacional. Pela primeira vez, um candidato e um partido assumiram a posição de direita sem qualificação no cenário político brasileiro. Até então, todos os partidos e todos os políticos se declaravam de esquerda, de centro ou de centro-esquerda (como o Paulo Maluf). Com a vitória nas urnas, o movimento conservador cresceu apesar dos limitados resultados econômicos, sociais, ambientais e externos do governo Bolsonaro.

Mesmo com toda a repercussão sobre o que aconteceu em 8 de janeiro, com a invasão e destruição dos edifícios do Palácio do Planalto, do Supremo e do Congresso, mesmo derrotado nas eleições presidenciais em 2022, o movimento da direita conservadora cresce e se consolida como uma força política que não pode ser ignorada.

O movimento conservador no Brasil, embora próximo do europeu e do norte-americano, tem características próprias. Além do liberalismo na economia, pregando o menor papel do Estado e reformas estruturais, e da agenda de costumes (gênero, aborto, família, contra corrupção), o movimento conservador, chamado genericamente de bolsonarismo, introduziu a questão religiosa, de maneira mais forte do que em outros países.

Embora não sendo uma corrente religiosa uníssona, os evangélicos, segundo as pesquisas, representam mais de 30 da população brasileira. Como um exemplo da crescente presença da visão religiosa no movimento de direita, em pronunciamento na abertura da grande concentração na Paulista, Michelle Bolsonaro fez pronunciamento que mereceu pouca atenção do meio político, mas que está impregnado de forte conotação de contestação do establishment nacional.

A ex-primeira dama referiu-se como o “triunfo do mal” o fato de no Brasil haver a separação entre a política e a religião. “Por um tempo, fomos negligentes ao ponto de dizer que não poderiam misturar política com religião” “E o mal tomou, o mal ocupou o espaço. Chegou agora o momento de libertação”. “Aprouve ao Senhor nos colocar à frente desta Nação. Aprouve a Deus nos colocar na Presidência da República”.

Chamando aqueles que compareceram à manifestação do “exército de Deus”, Michelle deixou em aberto a possibilidade de contestação daquilo que o fanatismo religioso considera um mal. Além de citar a Bíblia e de pedir apoio divino, referiu-se ao ex-presidente como vítima de perseguição.

A fala de Michelle ignora totalmente que a Constituição de 1988 consagra o princípio da laicidade do Estado. A questão da separação entre a religião e o Estado é uma cláusula pétrea ao mesmo tempo em que está garantida a liberdade religiosa. Religiosos de todas as denominações sempre puderam participar do jogo político e serem eleitos para o Congresso. Nunca houve bancadas católicas, evangélicas ou agnósticas.

Agora temos uma bancada evangélica com indicações de que estão em campanha dentro de um claro projeto de poder. O perigo é a mistura entre a crença religiosa e a política. Ainda mais grave, é o aparecimento de um projeto político religioso a fim de tomar o poder em todos os seus níveis. Não estaríamos longe de um Estado teocrático (tipo o do Irã), nos trópicos.

O grande comparecimento na avenida Paulista em 25 de janeiro, em resposta ao chamamento do ex-presidente Jair Bolsonaro é uma evidência da consolidação da força da direita, com uma maciça participação evangélica. A presença cada vez mais forte e ativa das forças de direita e evangélicas no Congresso será um teste para a agenda política, não só de ocupação dos postos mais altos na hierarquia congressual, mas também de ampliar os benefícios, inclusive tributários, para ministros de confissão religiosa e para as igrejas.

As declarações do presidente Lula sobre a ação militar do governo Netanyahu em Gaza e a comparação do que ocorre com a população civil palestina com o que os alemães fizeram com os judeus tiveram imediata resposta dos evangélicos, como se viu nas numerosas bandeiras de Israel na Avenida Paulista e nas visitas dos governadores Tarcísio de Freitas e Ronaldo Caiado ao primeiro ministro israelense, nesta semana.

A declaração para fins externos de Lula certamente não levou em conta os possíveis desdobramentos políticos internos pela imediata reação dos evangélicos às falas improvisadas nem o possível voto contra os candidatos do PT nas próximas eleições municipais.

Para tentar diminuir o prejuízo político, Lula ensaia uma aproximação com os evangélicos, mas diz que o Deus do pastor Silas Malafaia não é o mesmo do de Jorge Messias, evangélico e advogado geral da união. O grande entrave para essa aproximação, segundo o PT, é o uso político da religião pelos evangélicos.

A forte presença dos evangélicos nas ruas e no Congresso indica a possibilidade de uma campanha acirrada até outubro, com a captura pela direita conservadora de um grande número de prefeituras e câmaras nas próximas eleições municipais. Com isso, fica aberta a porta para um desempenho competitivo da direita nas eleições presidenciais de 2026.

A polarização interna, estimulada tanto pela esquerda, quanto pela direita, está se transformando em um sério risco para a democracia pela tendência à radicalização ideológica, de um lado, e pela inviabilização do aparecimento de uma posição moderada de centro.

Publicado na revista Interesse Nacional, em 22 03 2024



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