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O SILÊNCIO DAS VOZES
Acadêmico: Gabriel Chalita
Caminho no silêncio, no silêncio das vozes. Caminho por paralelepípedos velhos pisados por velhas histórias que passaram.

O silêncio das vozes

Caminho no silêncio, no silêncio das vozes. Caminho por paralelepípedos velhos pisados por velhas histórias que passaram.

Ouço as vozes das árvores, árvores que, há muito, guardam segredos. Árvores que aguardam chuvas, que aguardam amanheceres, que aguardam silêncios. Sem sobressaltos. Apenas com compreensões. O tempo de cada tempo.

O mar é movimento na pequena cidade. O dia, no tempo em que as vozes dormem, é calmo. Não há brigas. Não há barulhos poluidores de paz. Deixei a grande cidade e vim morar no silêncio. Deixei a dor da traição e vim, atraído por uma paz em promessa de nascimento. Vi, ontem, na caminhada que faço, quando as vozes dormem, um quebrar de ovo de um pássaro explicador de liberdades. O belo e o misterioso do sussurrar da natureza.

Na cidade grande, fui deixado por um amor que deixou dores profundas. As dores perturbaram minha voz que dizia nada, quando dizer era preciso. Principalmente, para mim. Vi os dois, enquanto éramos ainda. Não sei quem inventou a traição. Ou quem inventou que um é de apenas um. Ou quem inventou que é preciso vasculhar o mundo até encontrar o amor único da única vida. Sei nada de teorias que escrevem o que dói e o que não dói na parte de nós que, a apenas nós, é dado perscrutar.

No abandono, os abandonos da infância. Quando vi, acabei por ouvir. Ouvi um "eu ia te dizer" e um "foi bom". "Foi bom"? Bom era ter continuado. Bom era envelhecer sem sobressaltos. "Foi bom" foi o ponto que finalizou o que era a promessa de um amor sem fim. Acabei em silêncio diante do amor andando sem mim nas ruas grandes da grande cidade.

Vim para a pequena cidade, vim andar para ser grande. Vim para deixar as pequenezas que faziam um desacordar no meio das noites. Noites de suor e de lembranças. Noites de filmes de cenas rodadas em outra história. Eram os dois e os seus ditos que me diziam as dores.

Parti. Eu sei que o tempo me acalmaria mesmo lá, mas quis viver um outro tempo, aqui. Aqui onde o mar canta o infinito. Aqui onde há calmarias tão necessárias. Onde, aos poucos, fui conhecendo nomes e vencendo lembranças de nomes que doeram.

Abri uma pequena livraria e um clube de conversas sobre histórias. Histórias escritas em livros. Histórias inspiradas em vidas que caminham em grandes ou pequenas cidades. Ao lado, um café. Ao lado, uma escola de música onde as vozes vazam as paredes e agradam as vizinhanças. Ao clube de histórias, vêm o padre e o pastor. Jovens os dois. Amigos. O mar que banha a vista da Igreja de um, também banha a vista da Igreja do outro. E, também, o luar.

O luar daqui é mais meu do que o luar de onde eu vivia. É o que sinto. Como sinto a cidade inteira minha, enquanto as vozes dormem. O silêncio de fora é mais fácil de ser conquistado do que o silêncio de dentro. Nas noites de dor, em que as vozes falavam em mim o amor doído, não havia silêncio. Eu dialogava diálogos imaginários. Para quando nos encontrássemos, para quando o destino arrumasse os desarrumos. Desarrumado estava eu, tão necessitado do que não era eu.

Gosto desse caminhar em jejum. Os passos me levam sem pesos. O vento daqui é ar em movimento leve. Vejo um primeiro abrir de janelas, é dona Maria de Fátima, a quituteira. Sorrimos um ao outro. Bonita a profissão de adoçar a vida. Ela promete que vai ao clube e que já terminou de ler o conto de Lygia. O conto sem final feliz de um amor que ficou deixado em um cemitério.

O cemitério da pequena cidade é pequeno. Os mortos daqui são silenciosos. Os de lá, também. Nos cemitérios, não há diferença. Talvez as árvores saibam disso; por isso, a calma.

Caminho no silêncio, no silêncio das vozes. Caminho no silêncio e agradeço. Agradeço o tempo que passou e o tempo que ainda tenho. Paro diante do mar e respiro e, respirando, sinto Deus. Deus é grande demais para ser entendido. Respirando, sinto a natureza inteira, presente de Deus. A minha vida, presente de Deus. O amanhecer do dia, presente de Deus.

No silêncio das vozes, a presença de Deus. E sou capaz de sorrir. De sorrir sem testemunhas, a não ser a lua. Lua nova que ainda não se foi, pelo menos na pequena cidade onde o mar grande faz, em mim, os seus silenciosos barulhos.

Publicado no jornal O Dia, em 28 01 2024



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