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O SUMIÇO DA MÚMIA
Acadêmico: José Renato Nalini
Os acadêmicos das primeiras turmas da São Francisco fizeram das suas. Em linguagem atual, “aprontaram” bastante.

O sumiço da múmia

Os acadêmicos das primeiras turmas da São Francisco fizeram das suas. Em linguagem atual, “aprontaram” bastante, conferindo tonalidades bizarras e insólitas à vida provinciana da capital. Um episódio pitoresco foi aquele que envolveu o médico Amâncio de Carvalho, lente de Medicina Legal das Arcadas e que chegou a ser seu diretor.

Era um homem madrugador e jovial. Adorado pelos alunos. Mas o que o celebrizava era possuir uma múmia. Não era subtraída aos egípcios, naquela apropriação indébita de colonizadores. Essa é uma queixa recorrente dos egípcios, que não se cansam de acusar os britânicos. Era múmia “doméstica”. Fabricada em casa. Utilizando-se de técnica toda sua, mumificara uma jovem que trabalhara como criada em sua casa, ali morrera e não tinha família. Valeu-se da finalidade científica para conservar seu cadáver, que rescendia a canela.

Despeitados ou brincalhões, alunos diziam que a mumificação resultara de excessivo consumo alcoólico da vítima. O que se sabe é que ela permanecia na Faculdade de Direito, ao lado da cátedra do Mestre, numa vitrine que também continha em pendant um esqueleto.

Ocorre que um dia a Faculdade acordou em polvorosa. A múmia desaparecera. Contudo, deixara três cartas. A primeira delas, ao Professor Amâncio, comunicando-lhe a sua intenção de praticar suicídio. Estava cansada de se exibida, ano após ano, classe após classe, a essa estudantada desrespeitosa. A segunda, à polícia, pedindo que não responsabilizasse ninguém por seu ato de loucura. A terceira carta, a um dos mais requisitados alunos da São Francisco, Benedito Galvão, a quem a múmia confessava um violento amor. Sentimento não correspondido, tanto que a levara a dar cabo da existência mumiástica.

Amâncio não levou na brincadeira esse episódio. Revoltado, mostrou sua ira ao diretor, descompôs a turma de bacharelandos e assegurou que eles todos seriam reprovados.

Enquanto isso, a múmia causava sensação aos populares. Fora encontrada nos Campos da Baronesa, região situada por trás da avenida Luís Antonio. Causou sensação, porque os populares pensavam tratar-se de um crime. Os contínuos das Arcadas foram busca-la para reintroduzi-la em sua estante.

Consta terem sido autores da brincadeira Afonso Penteado, depois juiz federal em Curitiba, Fernando Nobre, tabelião na capital e não, como se divulgou à época, Moreira Machado, diretor da Cadeia da Luz, o senador federal Justo Chermont, além do jornalista Manuel Lopes de Oliveira Filho, estranho à Faculdade e seu sobrinho José Bueno de Azevedo. Nenhum desses quatro era aluno de Amâncio.

A irritação do lente de Medicina Legal perdurou durante todo o ano. Tanto que o levou, ao final do curso, a negar distinção mesmo aos distintos. Adolfo Konder e Vitor Konder, posteriormente alçados à condição de presidente de Santa Catarina e ministro da Viação. Juntamente com outros, pagaram por crime que não haviam cometido. Isso lhes custou caro, pois perderam o prêmio de viagem à Europa, concedido aos melhores alunos.

Mas nem tudo é desgraça. Talvez não tivessem chegado a ocupar tais relevantes funções, se tivessem participado da viagem-prêmio. O que fez Aureliano Leite lembrar-se da estória dos dois candidatos a uma única vaga de sacristão. Foi escolhido o que sabia ler e escrever. Com o passar dos anos, um continuava sacristão. O outro, tornou-se milionário.

Algo que ocorreu com João Ribeiro e Domício da Gama, ambos candidatos a um cargo no funcionalismo carioca. João Ribeiro venceu. Continuou funcionário, enquanto Domício foi Chanceler e morreu como Embaixador em Londres.

Mas voltemos a Amâncio de Carvalho. Ele não gostava de moças candidatas ao bacharelado. Isso porque elas restringiam sua costumada liberdade de professor ao tratar de temas sensíveis na Medicina Legal. Tanto que avisava: “Amanhã trataremos dos crimes de atentado ao pudor. A matéria não é própria para moças!”.

Mas voltando à múmia: no livro “A Serpente que dança”, de Veiga Miranda, consta que ela fora Benedita, popularíssima entre militares e estudantes. E em atenção ao pedido da família de Amâncio, a ela se concedeu sepultura no ano de 1902.

Publicado no Diário do Litoral, em 18 12 2023



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