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GLICÉRIO E AS CONTROVÉRSIAS
Acadêmico: José Renato Nalini
Assumi o dever de conhecer melhor figuras que tiveram papel relevante na História do Brasil, para fazer com que meus filhos saibam de quem descendem.

Glicério e as controvérsias

Assumi o dever de conhecer melhor figuras que tiveram papel relevante na História do Brasil, para fazer com que meus filhos saibam de quem descendem. Vasculho, sem obsessão, o que se escreveu sobre o “Contratador de Diamantes”, Felisberto Caldeira Brant, de quem minha sogra tanto se orgulhava. E também procuro descobrir quem realmente foi o General Francisco Glicério, bisavô de meu sogro.

Recolho, aqui e ali, testemunhos de admiradores e de detratores. Dentre estes, encontrei Manuel de Oliveira Lima (25.12.1867-24.03.1928), historiador e diplomata brasileiro, que foi um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras.

O próprio Gilberto Freire, ao prefaciar sua autobiografia – “Memórias – estas minhas reminiscências...”, afirma que “deve haver exagero e até erro no juízo que faz de alguns homens do seu tempo. Oliveira Lima era dos que precisam de distância para se tornar inteiramente frios no julgamento. O que nunca deixa de haver nestas páginas é sinceridade. Uma grande sinceridade em fixar as impressões e os traços dos homens”.

Com essa advertência, menciono o mau juízo que Oliveira Lima fazia do General Glicério, Francisco Glicério de Cerqueira Leite (15.8.1846-12.4.1946). Diz ele: “A República no Brasil proveio de um concurso de circunstâncias e procedeu de causas complexas, não restando dúvida que a propaganda tanto agiu sobre espíritos ávidos de licença e ambiciosos como sobre proprietários lesados nos seus interesses e despeitados. Conta-se que o Senador Glycério, politiqueiro manhoso, eminente advogado administrativo e u dos produtos mais típicos da era nova, confessara um dia que o Império concedera a todos os cidadãos os mesmos direitos civis e políticos, mas que fora a República que verdadeiramente estabelecera o equilíbrio social. Tínhamos liberdade, mas não tínhamos igualdade. A esta ponderação corresponde precisamente o dito cuja autoria desconheço e que é profundamente conceituoso – que o primeiro Imperador foi deposto por não ser nato, e o segundo por não ser mulato”.

Não para por aí o mau conceito em que lançava Glicério. Quando fala da ocasional vulgaridade, tendendo para a obscenidade, traço herdado do português, característica brasileira, com inclusão do sentimento de inveja e do espírito de intriga, vai novamente fustigar um dos “Pais da República”. Textualmente: “A bajulação recalca algumas vezes e dissimula a inveja, mas a intriga nunca deixa de mexericar e acontece ir ao trágico quando eu saí do Rio, ela já fervia entre Prudente e Glycerio. O primeiro, a quem na companhia de José Hygino, visitei no Itamarati – residência então do Presidente – apareceu-me como uma figura respeitável. Suas botinas pretas já constituíam um melhoramento com relação aos chinelos de Floriano e, republicano histórico muito embora, dir-se-ia um fazendeiro formado e conservador. Oferecia uma antítese flagrante com o intitulado chefe das 21 Brigadas do Partido Republicano, que parecia um desses rábulas de cidade de província acostumados a peitar escrivães e, na típica expressão da gíria do tempo, a chaleirar os juízes. De fato, era o contraste entre os dois regimes. Atribui-se a Glycerio o conceito de que o Império firmara a liberdade, mas que a República era necessária para estabelecer a igualdade. Ele era um mulato fula e o outro branco, e politicamente desmentiam a fraternidade que completa o lema revolucionário. Prudente era a gravidade em pessoa: nesse paisano reviveu a energia do Padre Feijó; não trepidou em fechar a Escola Militar que outro civil, Rodrigues Alves, trancaria de vez quando ainda era um cortiço de vespas incômodas. Glycerio, Ministro do Provisório, não passou de um grande empreiteiro de concessões onerosas para o tesouro; senador, de um exímio cultor da advocacia administrativa. Muito ladino, como era mister para o ofício, não era justo que Ouro Preto lhe aplicasse o seu dito: “Se esse mulato soubesse ler, vendia o Brasil”. Sabia ler, escrever e sobretudo contar, e tinha certa linha de Presidente haitiano. Se com sua lábia não reduziu todo o Brasil a cobres, foi porque a monarquia nos tinha dado não só coesão física como resistência moral, que com o tempo se foi afrouxando. Ao tempo da real preponderância de Glycerio, a qual soçobraria dramaticamente no atentado de Marcelino Bispo, de que foi vítima o ministro da guerra Marechal Bittencourt, estava-se ainda demasiado perto do governo liberalíssimo de Dom Pedro II”.

Francisco Glicério não poderia se defender. Falecera onze anos antes de Oliveira Lima.

Publicado no Estadão/Blog do Fausto Macedo, em 22 12 2023



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