Compartilhe
Tamanho da fonte


AMOR À GAROA
Acadêmico: José Renato Nalini
No mergulho ao passado paulista e paulistano, convenço-me de que a instalação da Faculdade de Direito foi um fator de profunda transformação da capital.

Amor à garoa

No mergulho que faço ao passado paulista e paulistano, convenço-me de que a instalação da Faculdade de Direito em 1828 foi um fator de profunda transformação da capital bandeirante. Eram apenas dois os cursos jurídicos então: em Olinda e em São Paulo. Natural que jovens de todo o país se destinassem às duas escolas. Com isso, muita gente das demais Províncias vieram morar em São Paulo. Ganhamos participação ativa de outras culturas, de outros costumes e hábitos.

Os acadêmicos passavam aqui ao menos cinco anos e a regra era uma veneração por São Paulo. Exceções a do poeta Álvares de Azevedo, que embora aqui nascido, foi criado na Corte e fazia críticas à provinciana Piratininga.

Encontro no livro “Horas do Bom Tempo”, de Lúcio de Mendonça, que integrou a Academia Brasileira de Letras e o editou em 1901, pela Laemmert & C. Editores, no Rio, deliciosas “memórias e fantasias”, conforme ele se propôs registrar.

O último texto da coletânea de artigos publicados na Imprensa entre 1877 e 1897, é justamente o “Adeus a São Paulo”, que Lúcio de Mendonça dedica a seus amigos paulistas. Ao partir para o Rio, por ferrovia, lamenta que as despedidas não sejam lânguidas como a do cavaleiro que se afastava a passo lento e contemplativo, volvendo para trás os olhos.

Chama São Paulo de “pouso abençoado que se vai deixar para sempre, e onde nos fica muita porção da alma presa às recordações que não morrem; é o momento supremo; vai tudo desaparecer, como uma perspectiva de teatro, a um simples jogo mecânico”.

Depois do último olhar para a cidade onde vivera esse lustro feliz de sua juventude, pensou que lhe “fugia velozmente aos olhos, naquela manhã histórica para a minha história íntima, a bela cidade de São Paulo, a saudosa cidade acadêmica, a nobre, a grande cidade democrática; e eu sentia, no momento augusto, mais que a saudade do coração, a grave, a varonil saudade do espírito”.

Sentia-se agitado de emoção profunda e sabia que ali, em São Paulo, ficaria o melhor do seu passado, “o tempo do estudo e do trabalho incessante, dos honrados sacrifícios, das longas vigílias cheias de meditação e de ideal, de íntimos deslumbramentos”. Não desconhecia que à sua espera estaria “a realidade hostil”. Pois aprendera a concepção teórica do homem livre, o homem igual e irmão. Veria agora “o homem que a sociedade formou – súdito, dependente, escravizado, não já criatura de Deus”, desprovido da “liberdade, que é, bem mais que o amor, a alma da alma humana”.

Rememorando o que aprendera nas Arcadas, reflete: “Viste a sociedade dos utopistas, a república de Platão, de Rousseau e de Proudhon; iluminou-te o espírito a visão suprema da perfeição social; compreendeste a loucura sublime do ideal inacessível; tiveste a vertigem assombrosa das alturas intelectuais; vais ver agora a sociedade atual, mesquinha e rotineira, cega de erros, vendada de preconceitos, toda animada de interesses vis, com as conveniências de momento em vez dos eternos princípios, profundamente corrompida, embrutecida, mais rebanho que povo, mais coletividade de coisas que agremiação de homens”.

Era pessimista a sua visão de mundo, pois a República já estava a ostentar suas máculas. Daí as saudades que sentiria do são aprendizado franciscano: “Vai, triste alma sonhadora; aí fica o teu domínio luminoso, a cidade dos moços! Vai para as ásperas lutas, para as inclemências da sorte; e se um dia fores tão desgraçada que sintas menos ardente a adoração do dever, e ouças mais abafado o clamor da honra, lembra-te deste momento, e esta recordação te há de salvar, e mostrarás ainda o que vale o caráter plebeu, que se nutre de sacrifícios, que mora, tigre indômito e tranquilo, na furna da consciência, rija, abrupta, rude e pobre, mas alumiada do sol”.

Essa verdadeira “Ode a São Paulo”, ele a publicou na “Província”, que antecedeu “O Estadão”. Explicitava o golpe que seria afastar-se, “talvez para sempre, da cidade legendária. Ali, sob aquele amplo céu, onde parece que ainda vagam, na imortalidade da glória, os grandes espíritos de seus melhores filhos, cujos nomes constelam as tradições paulistas”.

Conclui seu texto com uma declaração amorável a esta terra da garoa: “Terra sagrada de homens honrados, terra a que eu devo – mais do que o nascimento – a educação cívica; berço de minhas crenças, formosa terra de São Paulo, nobre plebeia robusta, mãe de espíritos, leoa que amamentas as almas modernas que hão de lutar a grande luta, salve, em nome da mocidade e do povo, salve, mãe intelectual de nossa nacionalidade, esperança de nossa redenção, alma do Brasil novo, coração da Pátria livre!”. Existem hoje manifestações de tamanho sentimento patriótico? Onde foram se esconder?

Publicado no Blog do Fausto Macedo/Estadão, em 11 12 2023



voltar




 
Largo do Arouche, 312 / 324 • CEP: 01219-000 • São Paulo • SP • Brasil • Telefone: 11 3331-7222 / 3331-7401 / 3331-1562.
Imagem de um cadeado  Política de privacidade.