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MALDITA & BENDITA
Acadêmico: José Renato Nalini
Existe uma atividade que não só interfere em nossa vida, como pode torná-la ainda mais difícil. Viver é um desafio.

Maldita & Bendita

Existe uma atividade que não só interfere em nossa vida, como pode torná-la ainda mais difícil. Viver é um desafio. Mal nascemos e já começamos a caminhar para o final indesejado, mas inevitável: a morte. O percurso pode ser longo ou breve. Mas é semeado de vicissitudes. Doenças, incompreensões, inimizades, ingratidões e decepções.

Os outros, aos quais devemos amar como a nós mesmos, podem ser a melhor caracterização do inferno. Pessoas que nos aborrecem, nos chateiam, nos incomodam, nos fazem sofrer. Sartre (Jean-Paul-1905-1980) estava coberto de razão, quando afirmou: "O inferno são os outros!".

Para quem recebeu a graça da fé, esses filhos de Satã nos ajudam a purgar nossos pecados e nos ajudam a ser santos. Há muita gente que nos santifica. Mas estamos pensando em pessoas do convívio. Familiares, agregados, conhecidos. A "alma gêmea" é muito rara. Raríssima. O que mais existe é gente que não nos diz nada. Mas cuja presença nos é imposta.

Agora o indivíduo que afeta a nossa vida e nem sempre está perto, é o político. Aquele que se auto-atribui a vocação de "cuidar de todos", cuida mais é de si mesmo. Dos próximos mais próximos: sua família, seu círculo íntimo. Pensar no bem de todos é difícil e há sempre uma desculpa: "cada um quer uma coisa; como atender a todos?". Essa a fórmula para que se busque aquilo que o político acha melhor.

Isso tem uma origem que pode ser resgatada. Pouco antes da Revolução Francesa, o Abade Emanuel de Sièyes escreveu um opúsculo que deu o que falar: "O que é o Terceiro Estado?". A França observava o modelo dos três Estados Gerais: clero, nobreza e povo. Nas Assembleias, quando os dois primeiros Estados chegavam a um acordo, não era preciso consultar o Terceiro Estado.

Sièyes fez três perguntas: 1. O que é o Terceiro Estado? 2. O que tem sido? 3. O que pretende ser. E respondeu: 1.O Terceiro Estado é tudo. É quem trabalha. É quem mantém a nação viva. 2. Só que esse "tudo" tem sido "nada". Não é ouvido, não é consultado, não entra nos planos dos políticos. 3. Por isso, quer ser "alguma coisa".

Essa "alguma coisa" é o capítulo dos direitos humanos da Revolução que eclodiu em 1789. E o povo sonhou que teria vez. Só que, diante da impossibilidade de governar o Estado, pois o povo é multidão, inventou-se a representação. Representação popular. O político fala em nome do povo.

Daí vem Ernest Renan a lembrar que o povo é um flash da nação. O importante é a nação: os ossos dos antepassados, os viventes e os que ainda nascerão. Como o representante da nação tem de atender a essas três faixas - os que já foram, os que são e os que virão - não presta contas a ninguém. Age em nome da nação, uma ficção intangível.

Por isso é que a definição de político profissional de Adam Smith (1723-1790) é atual e preciosa: "esse animal insidioso e astuto, cujas opiniões são governadas pela flutuação momentânea dos acontecimentos".

São os falsos profetas, que prometem atuar por todos, na busca do bem comum. Servem primeiro às suas causas privadas. Impossível representar todas as opiniões. Por isso, alinham-se a "bancadas temáticas". Só por acaso é que o interesse coletivo às vezes é contemplado.

Essa arte maldita será, contudo, bendita, se, qual Diógenes (413-323 a.C.), conseguirmos localizar um homem de bem que se proponha a exercer a boa política. São raríssimos. Mas existem.

Publicado no Jornal de Jundiaí, em 22 05 2023




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