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DIABRURAS DO ‘PINTO ONÇA’
Acadêmico: José Renato Nalini
Um dos alunos que merece ter sua passagem pelas Arcadas rememorada é o mineiro de Caeté João Pinto Moreira. Inteligência prodigiosa,

Diabruras do ‘Pinto Onça’

A profusão de acadêmicos de direito nas milhares de escolas que se disseminaram no Brasil tornou impossível coletar episódios pitorescos, individualizar o estudante, fazer uma biografia completa de uma turma acadêmica, assim como se fazia nos primórdios da educação jurídica.

A República hoje caracterizada por possuir mais Faculdades de Direito do que a soma de todas as outras existentes no restante do planeta, convive com cerca de dois milhões de advogados. Excetuados os milhões que não conseguem ultrapassar a barreira singela do chamado “Exame de Ordem”. Consequência disso é o crescimento vegetativo infinito das carreiras jurídicas, forma de absorver os bacharéis que completam os cinco anos e são arremessados a um mercado complexo e invariavelmente hostil.

Somente o espírito de arqueólogo diletante propicia o mergulho no registro histórico das primeiras turmas da São Francisco, tão bem documentado por Almeida Nogueira, Spencer Vampré e Sacramento Blake, historiadores que não tiveram sucessores.

São deliciosas as crônicas elaboradas à época, que eternizam costumes há muito desaparecidos e mostram como era ingênua e venturosa a experiência de cursar as ciências jurídicas e sociais no século XIX. Comparar com o que existe agora no seio da Universidade é missão impossível, tamanha a diferença, aparentemente superior à do século e meio decorrido.

Um dos alunos que merece ter sua passagem pelas Arcadas rememorada é o mineiro de Caeté João Pinto Moreira. Inteligência prodigiosa, passou por intelectualmente inferiorizado, até meados do primeiro ano. É que foi chamado para uma sabatina para uma batalha de perguntas e respostas com o considerado primeiro aluno: Bento Lisboa.

A disparidade entre os alunos era manifesta e suscitou a curiosidade de todos. Até estudantes dos outros anos vieram assistir. Pois Pinto Moreira, que tinha uma barba falha e eriçada – daí o apelido “Pinto Onça” – deu um show. Deixou o concorrente em maus lençóis. A partir daí, foi reabilitado e passou a merecer respeito e admiração de toda a estudantada.
Era criatura excêntrica. Não tirava o chapéu da cabeça, mesmo em casa e estudava em pé. Lia, meditava e escrevia em pé. Sua “república” era na rua São José, hoje Líbero Badaró, partilhada pelos colegas mineiros Francisco Azarias de Queiroz Botelho e Aureliano Augusto de Andrade. “República” a que coube a glória de receber, durante quinze dias, em julho de 1859, o compositor Carlos Gomes.

No quinto ano, submeteu-se a uma prova em que a mesa examinadora era composta por José Bonifácio, o moço, e Conselheiros Furtado e Ramalho. O mais novo, José Bonifácio, iniciou a arguição. Era brilhante e sempre colocava o examinando em dificuldade. Mas com o Pinto Moreira, não conseguiu o objetivo pretendido. Valente argumentador, prevenido dos extraordinários recursos do mestre, ele conseguia atalhar, oportunamente, as sutilezas cavilosas da argumentação.

Com isso, o tempo passou e a ampulheta do bedel mostrou que o tempo se esgotara. Em seguida, o Professor Furtado passou a inquiri-lo. Conhecia todos os atos normativos: leis, regulamentos, instruções, avisos, ordens de serviço. Deixou o examinando expor o ponto e depois objetou, dizendo que se esquecera de um Aviso. Pinto Moreira replicou: - “Este Aviso foi revogado por outro!”. Citou, com convicção, número, ano, mês e dia.

- “Como? Não conheço tal Aviso!”, trepicou Furtado. “Vou mandar buscar a coleção de leis!”.

- “É desnecessário – disse sorrindo Pinto Moreira – Esse Aviso não está colecionado. Foi inserto, apenas, no Jornal do Comércio!”.

Toda a banca riu da presença de espírito do “Pinto Onça”.

O terceiro examinador, Conselheiro Ramalho, limitou-se a dizer que sua dissertação fora muito bem feita. “Foi pena que o senhor não tivesse tido tempo de a ler!”.

Foi o que realmente acontecera. A dissertação fora redigida por um colega. Confiado nos dotes intelectuais deste, sequer se deu ao trabalho de ler. De qualquer forma, Pinto Moreira foi plenamente aprovado.

Hoje, Bancas de Arguição apenas na pós-graduação. Acontecem episódios interessantes. Só não há quem os colete e guarde, ad perpetuam rei memoriam.

Publicado no Blog do Fausto Macedo/Estadão
Em 06 10 2023



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