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O MENINO DO DESTERRO
Acadêmico: José Renato Nalini
Cruz e Souza, o menino do Desterro, Só depois de morto, veria reconhecida a sua glória.

O menino do Desterro

Desterro, capital de Santa Catarina, era um simples embrião da Florianópolis de hoje, quando em 1861, viu nascer uma criança que se chamou simplesmente João. Os pais eram duas criaturas anônimas e da mais ínfima condição social: o mestre-pedreiro Guilherme da Cruz e sua mulher Carolina. Como escreveu Raimundo Magalhães Júnior, “nada tinham de seu. Nem mesmo as suas vidas. Não poderiam, sequer, dizer que se pertenciam um ao outro, pois que, como escravos, tinham um dono comum”.

O dono era o Coronel Guilherme Xavier de Sousa e sua mulher, Carolina. Era um homem generoso, diferente dos demais senhores de escravos. Pode ter sido cumprimentado pelos parentes, amigos e vizinhos quando do nascimento de João. Era um acréscimo ao seu patrimônio. Escrava com cria subia de preço. Não só porque poderia servir de ama-de-leite, como porque o moleque, se não morresse, seria separado dos pais e vendido à parte.

Mas não foi esse o destino de João. Casal sem filhos, Clarinda Fagundes Xavier de Sousa e o marido envolviam a criança em afetividade pura e desinteressada. Exerceu ela o papel de professora das primeiras letras e propiciou ao garoto uma educação que não teria na senzala.

Quando o Coronel Xavier de Sousa voltou de incursão bélica ao Uruguai, estava convencido de que a escravidão era um erro. Libertou os seus escravos. Desfeito o vínculo jurídico, persistiram os laços de afeição. O menino agora tem oito anos, é vivo, esperto e, além de ler e escrever corretamente, compõe versos.

João foi estudar no Ateneu Provincial, dirigido pelo Padre Mendes Leite de Almeida. Sacerdote liberal, admitiu no corpo docente o professor Fritz Müller, que ensinava ciências naturais. Impressionado com a capacidade de assimilação do garoto, vaticinava o alemão que seu grande talento o tornaria alguém ilustre. Para completar seus recursos, João tornou-se professor particular de primeiras letras e acrescentou ao nome o patronímico do benfeitor: passou a assinar-se João da Cruz e Sousa.

Todavia, Santa Catarina era muito ciosa do privilégio dos brancos. Ali os negros constituíam parcela mínima da população, que se orgulhava do sangue europeu. O Código de Posturas Municipais de 1845 vedava aos escravos determinadas atividades. Por sorte, Cruz e Sousa foi contratado para ser “ponto” de uma companhia teatral. Sonhou em ultrapassar os limites da Província, onde havia muito preconceito.

Viajou por todo o Brasil. Apaixonou-se pelo mar. Enquanto isso, ia escrevendo poesias. Além de “ponto”, declamava. Ia recolhendo aplausos pelo seu talento e definindo seu entusiasmo pela causa da abolição.

Mais uma vez a sorte intervém. Assume a presidência de Santa Catarina o dr. Francisco Luís da Gama Rosa, médico nascido no Rio Grande do Sul mas criado em Desterro. O novo governante chamou Cruz e Sousa para ser promotor público em Itajaí. Era uma chance de ouro. Mas Cruz e Sousa agradeceu e não aceitou.

Consta que uma comissão de cidadãos tenha obstaculizado a nomeação. Não seria conveniente entregar a um preto retinto o cargo de acusador público, numa terra em que a grande maioria era de brancos e ainda continuava a viger a nefanda instituição do cativeiro.

As portas se fechavam para o jovem poeta. Ele continua a devorar livros e se converte ao simbolismo. Que não era assim chamado. Os simbolistas se autodenominavam “os novos”. Vai se fixar no Rio de Janeiro de uma vez por todas. Nessa época, a República já tinha enfrentado suas primeiras crises graves: o Encilhamento, os ministros do Governo Provisório abandonaram suas Pastas, cuidava-se de elaborar a primeira Constituição da República.

Para Cruz e Souza, nada disso interessava. Seu universo era a poesia. Escreve os livros “Missal” e “Broquéis”, os únicos publicados em vida. Casa-se com Gavita a 9.11.1893 e em 1894 lhe nasce o filho Raul. Em seguida nascem Guilherme e Reinaldo. Em 1897, não se cogita dele para a fundação da Academia Brasileira de Letras. Em março de 1898 volta para Santa Catarina, deixando os filhos no Rio, com a sogra. Não viu nascer o quarto filho, pois morreu a 19 do mesmo mês. Só depois de morto, o menino do Desterro veria reconhecida a sua glória.

Publicado no Blog do Fausto Macedo/Estadão
Em 05 10 2023



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