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O APAGADOR DE ALMAS
Acadêmico: Gabriel Chalita
As ignorâncias se dissipam na compreensão da força do viver. As rasuras prosseguem nos meus textos.

Eu era muito jovem, quando ele apagou minha alma. "Sinto muito, me apaixonei por sua prima". Eu era mulher desentendida dos assuntos do amor. Para mim, só havia ele. Para mim, jamais haveria outro. Eu olhei com os olhos dizendo lágrimas e silenciei um outro humilhante implorar. Ele mesmo abriu a porta, talvez receoso que eu permanecesse mais tempo.

O tempo que estivemos juntos foi de oferecimentos. Eu era dele, inteira dele. Desde a primeira vez em que ele desabotoou minha pureza. Receosa, me entreguei. Eu tinha 16 anos. Aos 19, ele disse da minha prima. Ela, aos 16, era sua nova empreitada.

A casa ficava em uma rua ao lado de outras tantas casas. A minha impressão, quando saí, é de que todas as casas ficaram de luto. A pedra da rua de paralelepípedos ficou assustada, quando a minha dor cruzou o portão e se foi rua afora.

Minha prima sabia dos meus sentimentos, mas não resistiu. Henrique era sedutor demais. Ela foi ter comigo para se desculpar. Eu disse nada. Fiquei órfã de palavras. Não neguei o abraço que ela insistiu.
Minha mãe ofereceu colo. Sabia ela parte do que eu sentia. Parte do que eu oferecia. Meu pai, ausente de nós, ausente permaneceu nesses assuntos de dor. Alguns dias, fiquei no quarto. Depois, saí. Saí ainda de noite. Pelo menos, em mim. Saí ainda sem saber onde encontrar. Ao menos, saí. Ao menos, a procura. A procura que acende os dias.

Isso foi há muito tempo. Saí da cidade e Henrique saiu de mim. Deixou ele minha prima meses depois. Tentou me procurar, jurou vida nova. Quando da primeira procura, eu ainda era dele, mas não fui.
Minha prima sofreu mais do que eu. E não soube o que fazer. Tentou desistir da dor, desistindo da vida. Foi salva pela mãe e pelos médicos que limparam o corpo dos remédios que poderiam decidir um ponto final.

Anos depois, nos encontramos, e ela me disse de outras que também sofreram. Eu já vivia uma outra vida, e Henrique era apenas uma cicatriz. Nela, não. "Eu passo pela rua da casa para ver quem está com ele, faço isso disfarçada". "Meu Deus, faz tanto tempo", argumentei discordando das escolhas. "Sim, ele já não tem a mesma beleza, não sei o que essas menininhas veem nele".

Olhei a teimosia de minha prima. Sua ausência de decisão fazia dela uma sombra. E ninguém se lembra das sombras. A raiva que tive dela, nos dias em que eu me sentia a habitante mais sozinha do mundo, já havia deitado em definitivo nos cômodos do passado.

Errei novamente de histórias. É difícil compreender os homens. Tão solícitos antes, tão displicentes depois. Acreditei e desacreditei muitas vezes. Fui escrevendo escolhas entre rasuras e pausas. Investi em minha profissão. Juíza. Durante anos, sequei qualquer possibilidade de entrega, até conhecer Miguel. Ele reclamou do meu pouco entusiasmo inicial. E foi paciente. Foi percebendo que eu havia embrulhado o amor para só me entregar, quando eu decidisse ser o momento e a pessoa.

Conto isso, porque minha prima disse do falecimento de Henrique. Ligou chorosa. Esperou a vida por ele. Envelheceu aguardando um aceno. Disse que, por ele, mudou de roupa, mudou de gosto, mudou de vida. Que, por ele, mudou o tom de voz e até o espaço entre as palavras e os silêncios. Por ele, irreconheceu a própria alma, tão apagada. E, mesmo assim, ele a deixou por outra, por outras.

"Você não foi, não entendi". Ela foi ao enterro. Quem desentendeu fui eu. Quarenta anos depois, ela ainda esperava um reencontro. Imaginei o velório, os dois mortos. Ele, da vida; ela, da alma. Agradeci o poder cicatrizante da minha caminhada.

Revisitei um pouco o tempo e as minhas ignorâncias iniciais. Vi tantas mulheres desvivendo por homens como Henrique, tão cruéis consigo mesmas, tão carentes de seduzir e de descartar. Vi homens, também, apagados da alegria de viver por histórias de amor sem amor.

Longe de mim a frieza de desacreditar os romantismos. Acredito. Amo chegar em casa e encontrar meu amor. Amo fazer amor com Miguel e sentir que jamais me apaguei para fazê-lo iluminar. As ignorâncias se dissipam na compreensão da força do viver. As rasuras prosseguem nos meus textos. Não há como viver sem os erros. Mas o meu maior acerto é jamais sublinhar o que me oprime. É apagar os que me tentam apagar. É prosseguir dizendo aos dias que estou viva e pronta para viver!



Publicado no site do jornal O Dia, 10 de setembro de 2023.



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