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O PERDIDO CEMITÉRIO
Acadêmico: Gabriel Chalita
O tempo do tempo em que eu vivia na pequena cidade já se foi há muito. Morreram todos.

Fui reviver os mortos. Fui em um dia acinzentado fora e dentro. Os mortos ficam no cemitério. O cemitério dos mortos da minha cidade. Da cidade em que nasci. Da cidade em que conheci o mundo grande no mundo pequeno.

As personagens que vi criaram em mim fascínios que ainda fazem enfeite em minha memória. A cabeleireira e o marido distraído. A benzedeira de verrugas. A responsável pela portaria do clube da cidade - ninguém sem a idade certa podia entrar no baile. A ensinadora dos pecados na Igreja matriz. A florista. A que abriu uma sorveteria para competir com a irmã. O que ganhou dinheiro construindo túmulos.

O tempo do tempo em que eu vivia na pequena cidade já se foi há muito. Morreram todos.

Pedi ao meu neto, que leva o meu nome, que fôssemos juntos. Fui no carro dizendo, a ele, a vida que se foi. Tão rápida. Tão sem diálogos para algum esperar.

Paramos em uma pequena padaria perto da casa em que, um dia, vivi. A casa já não existe mais. É um centro comercial. Fiquei sentado, lembrando. Os carros eram outros. Os aparelhos novos da tecnologia não existiam. A calçada era o encontro gostoso das noites de calor. Ninguém leva mais as cadeiras para ver o luar nas calçadas. Ninguém.

Tomei o café e mastiguei o pão com manteiga como quem mastiga a saudade. Meu pai saía do trabalho e levava o pão quentinho para casa. E comíamos, enquanto o sino da Igreja avisava as 6 horas.

No caminho para o cemitério, os prédios que não existiam. As avenidas alargaram. Casas foram derrubadas. Parece uma outra cidade.

Logo no início, o túmulo dos meus pais. Paro. Acendo uma vela. Descanso a bengala e me recosto na pedra de mármore preta.
Começo a dizer das pessoas importantes da cidade que estavam enterradas ali. Meu neto quis ver os túmulos. Caminhamos, então.

Eu procurava e não encontrava. Contei a história de um padre que foi assassinado e que diziam fazer milagres, não achei o túmulo. Falei de uma dona de boate, da única da cidade, que tinha um epitáfio, "Vivi para o prazer". Não encontrei. Havia tantos outros túmulos. Tantas novas alamedas. Fui me perdendo do que sabia. Foram anos e anos sem vir. Coloquei os óculos para ler os túmulos e lembrar das famílias. Conhecia todas. Desconheço todas.

A cidade cresceu, e eu cresci em outra cidade. A memória que tenho não é a que vejo. Perdi de mim muitos sonhos, também. Eu fui o que não quis. Mas dei certo. Não vou lamuriar. Tive filhos e netos e, recentemente, a primeira bisneta. Tive sucesso no trabalho que não decidi. Queria ser cantor. Meu pai me convenceu a mudar. O cantor famoso da cidade não tinha boa fama. Também não encontro o túmulo dele. Lembro de ter ido ao seu enterro.

Os enterros de ontem paravam a cidade. O sino triste da Igreja, de badaladas lentas, uma a uma. E a procissão. E os passantes tirando os chapéus em respeito. E o comércio fechando a metade das portas das lojas durante o cortejo.

Meu neto gosta de me ouvir. Quer ser escritor. Faço votos que seja. A mãe desaconselha. Eu, não. A maturidade me ensinou a nunca estacionar o sonho de ninguém. Que cada um avance na sua velocidade o tempo do realizar.

Não quero ser enterrado aqui, já me desculpei com os meus pais. Fiz vida em outro canto. Talvez queira ser cremado. Talvez queira viver no mar. Meu neto me diz que é cedo para eu decidir. Eu rio. Ele me abraça com um carinho que me anima a prosseguir.

Desisto de novas incursões pelo perdido cemitério e o convido para ver a praça onde havia um coreto em que, quando criança, eu cantava. Ele me pede que cante alguma música. Eu canto, então, a saudade. Eu canto os mortos e canto o que já morreu em mim. Eu canto a vida do meu neto tão paciente comigo e tão cuidadoso no ofício do ouvir.

No cemitério fica a parte que já não conta. É bom que fique, como respeito à carne que fez caminhar a nossa alma. E a alma? Onde fica? É cedo demais para encontrar respostas...




Publicado no site do jornal O Dia, 30 de julho de 2023.



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