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ASSASSINOS DE RIOS
Acadêmico: José Renato Nalini
Infelizmente, já a partir do século dezessete as tão saudáveis comunicações por via fluvial tenderam a se reduzir.

Assassinos de rios

A História lúcida só poderá criticar os assassinos de rios e de cursos d'água que justificaram a escolha do Planalto de Piratininga para sediar a nova povoação jesuítica em meados do século XVI. Anchieta, Nóbrega e seus companheiros escolheram São Paulo porque era abundantemente provido de águas doces e boas.

Em suas "Lendas e Tradições Brasileiras", Afonso Arinos retrata a primeira impressão que dos campos de Piratininga tiveram os "soldados de Jesus": "A largueza e doçura do ambiente, para quem vinha da baixada marinha, apertada e quente, vencendo o trilho alpestre do Cubatão, era a de um Campos Elíseos onde reinava a primavera eterna, com as suas águas límpidas e abundantes, as suas sombras e os seus variados frutos".

Foram os rios que ofereceram o design daquela que se tornaria a maior cidade da América Latina. O núcleo propriamente urbano se limitava a uma área com a forma triangular, limitada a leste pelo Tamanduateí, a oeste pelo Anhangabaú, e ainda com o Pinheiros e o Tietê.

O Tietê e o Tamanduateí sempre foram navegáveis. Em "São Paulo de Piratininga no fim do século XVI", Teodoro Sampaio observa: "Embarcados na sua canoa, o padre, o negociante, o fazendeiro, o simples homem do povo podiam atingir qualquer ponto dentro da zona povoada em torno de São Paulo".

Infelizmente, já a partir do século dezessete as tão saudáveis comunicações por via fluvial tenderam a se reduzir. Isso por causa das obras de retificação a que foram submetidas algumas dessas fabulosas correntes de água. Desde então, a cupidez acompanhada de ignorância e de desrespeito à natureza começou a sacrificar os rios, "retificando a obra do Criador", para favorecer uma indústria poluente e também causadora de milhões de mortes: a automobilística.

A utilização dos rios como meio de comunicação foi também subproduto da perspicácia dos jesuítas. Os fundadores de São Paulo formaram sua povoação em lugar estratégico. Dali irradiavam, em todas as direções, as vias naturais de comunicação representadas pelos rios da região. Caio Prado Júnior, em "O fator geográfico na formação e no desenvolvimento da cidade de São Paulo", assinala que o Tietê formava o tronco desse sistema, correndo ao norte da vila e sendo, além disso, acessível pelo Tamanduateí, cujas águas de corrente tranquila banhavam em curvas caprichosas o sopé da elevação em que se edificara o povoado".

Ainda contornavam o outeiro pirapitiningano, a oeste, as águas do Anhangabaú ou Córrego das Almas. Navegava-se perfeitamente pelo Tamanduateí, que permitia chegar a Borda do Campo, assim como chegar ao Tietê e ao seu porto, e daí, rio acima ou rio abaixo, chegar aos bairros ou sítios, quase todos acessíveis por água.

Os rios eram piscosos. As águas límpidas. As várzeas, propícias ao cultivo do arroz e até do trigo. Abundante a fauna e a flora espontânea. Nunca faltaria água a São Paulo, como ocorreu em 2014, se não tivéssemos tantos assassinos de rios àquela época. Edificando uma cidade para o automóvel, quase toda asfaltada, quase toda impermeável à água da chuva ácida que de quando em quando causa inundações, porque o solo não a absorve.

Esses rios e os mais de quatrocentos córregos, riachos, pequenos cursos d'água, serviam de pontos de referência para a localização ou identificação de moradores da zona urbana primitiva e, principalmente, das zonas rurais circunvizinhas. Nos documentos quinhentistas e seiscentistas, encontram-se expressões como "na banda de Guarapiranga", "rio arriba Tamanduateí", "além Geribativa", "meia légua rio abaixo", "longe do rio", "além do ribeiro Moóca".

Tais caminhos naturais, não poluentes, continuaram a servir de meio de comunicação entre a cidade e seus arredores. Foram úteis para transporte de gêneros e outras mercadorias procedentes da zona rural. Sua retificação foi algo nefasto. Assim como o enxugamento das Várzeas, o sepultamento dos córregos para dar espaço às verdadeiras rodovias hoje atravancadas de trânsito insano e cruel.

Lastimável que, depois de tanto erro, - acrescente-se o sucateamento das ferrovias -, lance-se como "progresso" o estímulo a mais carros convencionais. Movidos a petróleo. Esse veneno que está matando no varejo e por atacado. Responsável pela mudança climática, o maior perigo que a humanidade corre nestes tempos de insegurança e de perplexidade.

Publicado no Blog do Fausto Macedo/Estadão
Em 09 06 2023



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