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CANÇÃO DE ESPANTAR A DOR
Acadêmico: Gabriel Chalita
Os humanos são os que, por serem racionais, mais deveriam compreender os sentimentos de todos os seres vivos.

Há um silêncio no dia. Meus pensamentos estão mais pensantes que de costume.

Sou caminhador. E sou observador dos cenários que intercalam belezas e ausências. Sou dos que sonham em desviver momentos de irracionalidades. E sou dos que lamentam os ditos que ditam a dor nos outros e dos silêncios que não interrompem esses ditos.

Caminho pelas calçadas e penso. Enquanto penso, vejo cenas que me entristecem. E outras que me enternecem. Um homem deitado em uma calçada, onde vive, está abraçado ao seu cachorro. Um outro passeia com o seu. O cachorro do homem deitado se levanta, subitamente, e vai brincar com o cachorro passeante. O homem, que mora na rua, chama: "Duque, Duque, volta aqui". A cena é muito rápida. O cachorro vai com o rabo demonstrando alegria brincar com o outro. O morador se levanta da rua, preocupado, deve conhecer o outro homem. Quando um cachorro se aproxima do outro, o homem de pé se arma para chutar o cachorro intruso. O morador da rua implora: "Não, por favor, não! Ele é tudo o que eu tenho na vida". Chorando, o homem que vive na rua consegue pegar seu cachorro. No colo o abraça profundamente e chora: "Meu filho, já expliquei que esse homem é mau". O homem em p&eacu te; ainda tem tempo de dizer: "Lixo", e prossegue.

Não sei se o dito se refere ao homem que mora na rua ou ao seu cachorro.Tenho vontade de dizer. De interpelar o irracional que fala. É tudo rápido, como disse. Ouço, ainda, o homem da rua cantando uma canção para o seu cachorro, agora protegido das irracionalidades. O cachorro fecha os olhos e, talvez, sem saber, agradeça. Penso "o que é o saber? O que sabe o homem que prosseguiu andando?". Ofereço ajuda. O homem aceita. Converso com ele. Peço perdão por interromper a canção, ele sorri para mim. Diz que tem fome. Estamos perto de uma padaria. Resolvo. Tão fácil resolver. Tão difícil resolver.

Ele diz que o homem que anda com o cachorro tem nojo de quem vive na rua. Que já machucou o Duque. Que falou que ninguém vai passar doença para o seu cachorro. Com os olhos gratos, ele explica que o Duque não tem doença, que é só brincalhão.

Eu queria ter convidado o desumano homem para sentir o que eu senti conversando com o Leo, o homem da canção, o homem do Duque. Eu queria que ele ouvisse a canção que eu ouvi. E que, talvez, acordasse dos seus desacordos. Ou dormisse a paz dos que não machucam.

Prossegui minha caminhada pensando na dor que um humano é capaz de causar em um outro humano. No poder de abrir machucaduras na alma. O chute dado e não acertado é simbólico. Os ódios que moram dentro se apresentam assim, nos desequilíbrios. O cachorro do desumano homem estava com o rabinho abanando, feliz com a chegada do amigo que mora na rua. Quem é o racional? Quem é o irracional? Quem enternece? Quem entristece?

Tenho muitos anos de caminhada e muitos anos de um dual sentimento em relação à humanidade. Caminho com irmãos meus que me perfumam de bondade e caminho com outros que interrompem melodias bonitas de dias bonitos de vidas bonitas. Teimo em desmentir o feio. O feio gesto arrogante. O feio gesto violento. O feio gesto de desamor.

Os humanos são os que, por serem racionais, mais deveriam compreender os sentimentos de todos os seres vivos. E de cuidarem para não causarem dor. Até porque sentem a dor e são capazes de dar nome a ela. O nome que dou ao homem passante é infeliz. Um infeliz em movimento. Um infeliz que causa dor. O nome que dou ao que vive na rua é carente. Carente, também sou. Tenho o que ele não tem. Nossas necessidades são diferentes. Tem ele o que eu não tenho, certamente. É assim nos arranjos humanos. Como seria diferente se nos ajudássemos, se nos comprometêssemos a cuidar. Cada um em sua caminhada, cada um nos cenários que estão mais perto.

Volto para casa cantando em mim a canção que fez o Duque dormir. Conheço essa canção. E conheço o seu cantador. O de hoje. O que teve a felicidade de espantar uma dor. Já valeu o seu dia. Já valeu o meu dia.




Publicado no site do jornal O Dia, 30 de abril de 2023.



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