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ÉRAMOS ASSIM
Acadêmico: José Renato Nalini
Hoje, São Paulo é uma potência cultural e artística. Mas, para melhor valorizar seu atual status, não pode se esquecer do que já foi há apenas dois séculos.

Éramos assim

Quem nasceu no século XXI não imagina como era São Paulo no século XIX. Entretanto, para o percurso da humanidade na História, duzentos anos representam pouco. Imaginem os sobradões de taipa, nas quais não apenas o estilo, mas a disposição do mobiliário da sala de visitas era o DNA do status de seu proprietário.

As mulheres ocupavam o sofá de palhinha, estilo Tonet, numa extremidade do cômodo. Os homens assentavam-se nas cadeiras que se estendiam em duas fileiras precisas, a partir de cada extremidade.

O mais frequente era as mulheres não se mostrarem, sequer à mesa, diante de hóspedes homens. Quando saíam à rua, era sob a vigilância do chefe da família e apenas para fins religiosos. As moças se casavam com treze ou catorze anos e passavam a fazer bordados, rendas, doces e, à noite, tocar violão e cantar modinhas. As mulheres paulistanas eram bem-educadas e polidas nas maneiras e no trato. Um ritual frequente era a troca de flores com pessoas amigas.

O inglês Mawe achou muito aborrecidas as brincadeiras com frutas de cera contendo água de colônia que aconteciam no carnaval: "pessoas de ambos os sexos se divertem atirando estas bolas umas às outras; a dama geralmente começa a brincadeira e o cavalheiro retribui com tal animação, que o brinquedo raramente cessa antes que várias dúzias tenham sido atiradas; e os dois competidores ficam tão molhados como se tivessem sido lançados a um rio. Às vezes uma senhora atira com tal destreza uma fruta no peito de um cavalheiro, que este se verá obrigado a trocar a camisa, pois estas frutas de cera costumam conter três ou quatro onças de água fria".

Vestia-se despretensiosamente. A roupa de domingo durava anos. Comprida sobrecasaca do homem e calças de pano de Saragoça ou de ganga amarela ou azul, o vestido de sarja de Málaga da mulher e a mantilha de casimira debruada de renda a tudo encobria. Os pobres usavam roupas simples de chita e de baeta, sobre as quais as mulheres enrolavam um singelo xale preto quando iam à Igreja.

As ruas de São Paulo estavam na posse dos escravos, pois estes constituíam cerca de um quarto da população e de homens livres, mas humildes: tropeiros, vendeiros, lavradores. As famílias patriarcais refugiavam-se em seus sobrados.

Não havia vida noturna. O divertimento eram as procissões. A expressão cultural não era influenciada pela importação europeia que ocorria em outras províncias mais desenvolvidas, como o Maranhão, Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro, aqui, principalmente depois da chegada da Família Real em 1808.

Um pintor que se destacou em São Paulo foi o Padre Jesuíno do Monte Carmelo (1764-1819), que pintou telas e murais para os carmelitas e para o Convento de Santa Teresa, além de decorar a Igreja da Candelária em Itu. Dele, disse Mário de Andrade: "Jesuíno fica nesse entremeio malestarento entre a arte folclórica legítima e a arte erudita legítima. Há um que de irregularidade, de baixeza mesmo na obra dele que não tem nada das forças, formas e fatalidades da arte folclórica. Mas Jesuíno não chega a erudito. É um popularesco. É muito urbanizado mesmo. De maneira que sempre somos obrigados a vê-lo naquilo que ele pretendeu ser, um pintor culto! E dentro disso, ele é o culto sem tradição por detrás, o culto sem ter aprendido o suficiente, o culto sem cultura".

É óbvio, para os estetas e críticos de artes, que o Padre Jesuíno não se equipara ao Aleijadinho, está longe do esplendor colonial das Igrejas da Bahia e de Minas. Mas, para São Paulo, sua pintura explicitava uma vitalidade e uma identidade com o ethos local que esta nossa insensata metrópole sufocou, quando empobreceu espiritualmente.

De igual forma, a música paulista que se apresentava na Casa de Ópera era singular. Ainda recorrendo a Mário de Andrade, tem-se que "essa musicalidade é real; porém, até agora deu melhores frutos no seio do povo inculto que na música erudita. Muito mal nos está fazendo a falta de cultura tradicional, a preguiça em estudar, a petulância mestiça com que os brasileiros, quer filhos d'algo, filhos de bandeirantes ou de senhores de engenho, quer vindos proximamente de italianos, de espanhóis, de alemães, de judeus russos, se consideram logo gênios insolúveis, por qualquer habilidade de canário que a terra do Brasil lhes deu. Nos consola é ver o povo inculto criando aqui uma música nativa que está entre as mais belas e mais ricas".

Hoje, São Paulo é uma potência cultural e artística. Mas, para melhor valorizar seu atual status, não pode se esquecer do que já foi há apenas dois séculos.


Publicado no Blog do Fausto Macedo/Estadão, 25 de abril de 2023



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