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O CONVITE DE GISELE
Acadêmico: Gabriel Chalita
Namoros devem ser encerrados, quando não há respeito, quando não há admiração. Não há carência que justifique a aceitação de gestos de desamor.

Era uma praia com poucos frequentadores. Era um dia sem promessas outras, além dos instantes que seguem outros instantes e que garantem a certeza da mudança. 

Era um feriado e uma tentativa de descanso. Fui esquentar no sol os cansaços todos dos dias comuns. Dos dias que exigem afazeres nem sempre prazerosos. Deitado, sonhei felicidade. Foi quando chegou um casal. Gisele, amiga da amiga que me levou ao mar, e seu namorado. Acordei como necessidade de ser gentil e participar da conversa.

Os assuntos desfilavam efemérides. A razão do feriado. O dia do aniversário de um e de outro. O tempo ensolarado que poderia mudar. O riso por um dizer engraçado de Gisele. Foi quando começou a surpresa. Um homem vendia queijo aquecido na brasa. Gisele imediatamente apresentou entusiasmo. O namorado interrompeu deseducado: "Você acabou de tomar café, por isso não emagrece, olha o tamanho da sua barriga". Gisele riu desconcertada. Tentei consertar dizendo que queria o queijo, que era leve, que ganharíamos um sorriso do vendedor. Comemos todos.

Enquanto Gisele contava histórias, o namorado fitava o vazio desinteressado de demonstrar qualquer simpatia. Quis Gisele um sorvete algum tempo depois. Acompanhei. O namorado, não. E, sem ser perguntado, tascou: "Você não deveria usar biquini, ninguém é obrigado a ficar vendo tanta gordura exposta". Gisele, para dissipar as nuvens, riu dizendo que o moço era afeito a brincar o tempo todo. Só ela riu. 

O namorado era magro, apaixonado por ele mesmo. "Olha aqui, esses gominhos não se fabricam comendo de tudo". Foi o que ele disse, novamente, sem que o assunto versasse sobre modelos físicos de beleza. Voltei ao tema de Gisele, ela dizia sobre um projeto social que coordenava em uma das pontas de miséria de uma grande cidade. Lágrimas nos olhos, nos explicava das crianças famintas de atenção e dos recomeços que proporcionavam. Aos meus olhos, a beleza de Gisele estava nas palavras que explicavam sua bondade. Minha amiga concordou. É também voluntária do mesmo projeto. Eu disse que gostaria de conhecer. O namorado, sempre ausente das conversas, soltou um: "Que bobagem".

Silenciamos alguns instantes. Eu vi que os olhos marejados de Gisele não explicavam apenas a emoção do bonito projeto que melhorava vidas. Era a vida dela que precisava de algum medicamento. Não falo do corpo sem as formas esculturais exigidas pelo namorado. Falo da autorização para que o namorado autorize sua infelicidade. 

Em meus pensamentos, pensei: "Por que eles estão juntos? Por que aceita ela tantas indelicadezas? Por que ele está ao lado de alguém que só enxerga as imperfeições?".

O sol já nos havia esquentado mais do que o suficiente. O namorado avisou que iria nadar. E que, depois, iria treinar em uma academia feita na praia. Ela respondeu delicadezas. Ele prosseguiu: "Você não quer ir, né?". Ela nada disse. Ele prosseguiu: "Sua única ginástica é comer".

Quando ele saiu, ela chorou. Eu quis perguntar, mas aceitei o convite. "Vamos comigo, durante a semana, conhecer o projeto, depois, se você puder, almoçamos". Convidou e sorriu um sorriso lindo que espantou as lágrimas e em mim, talvez, as ausências de um amor. 

Amei Gisele ali. Comprei sua dor. Jurei parcelar os pagamentos em carinhos e em surpresas de bem-querer. Amei sua voz, seu jeito de contar histórias, seu corpo sem as perfeições determinadas por quem não de direito, seu cruzar de pernas, até seu silêncio silenciador de brigas públicas. 
Aceitei o convite de Gisele e decidi que iria além.

Namoros devem ser encerrados, quando não há respeito, quando não há admiração. Não há carência que justifique a aceitação de gestos de desamor. Perguntei se ela queria caminhar um pouco para refrescar com a água gostosa do mar. Ela aceitou. Minha amiga disse que iria preparar o almoço. Algumas nuvens aliviaram o calor. Tive vontade de caminhar de mãos dadas. Achei que ainda não era o momento. As águas descansavam, frias, os nossos pés. E as conversas nos apresentavam futuros. 

Era uma praia com poucos frequentadores.
Era um dia sem promessas...e me apaixonei.




Publicado em O Dia, 5 de março de 2023.



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