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TERRA À VISTA
Acadêmico: Gabriel Chalita
"Terra à vista" foi a frase que algum dos descobridores teria dito. Descobridores de uma terra há muito descoberta. Do exemplo histórico, fiquei pensando na vida. 

Não sei por que foi esta parte que ficou em mim, no final do dia da aula de história. 

Ana Maria é minha professora. Diz de um jeito que ajeita na gente a vontade de estudar mais. Tem ela alguns anos menos que eu. Voltei tarde para terminar o que antes desperdicei. Sim, a culpa foi minha. Fiquei curvado de medo de saberem que eu não sabia. E desisti. 

Naquele tempo, a vida doía mais do que eu entendia poder suportar. Pobre e assustado, achava que não tinha direito a ter direitos. Minha mãe trabalhava em casa de família. Meu pai se descuidou da vida e anoiteceu antes do tempo. Foram dias de dizer palavras de dor. O ar de minha mãe parecia respirável, não era. Estava na casa do Ademir, seu patrão, quando a notícia da morte atravessou sua vida. Então, eu fui também trabalhar. E fui aceitar humilhações.

Eu sempre fui pequeno e ficava ainda mais, quando me diziam que a inteligência faltava em mim. Ademir era ríspido com a mulher, com os filhos, por que haveria de ser gentil com os empregados? Não poucas vezes, vi minha mãe aguentando a dor para não partir. Silenciosa, dizia nada dos gritos de correção. Um dia, chorou quando fui eu o agredido. Eu havia apenas sentado para tomar um pouco de café e me desliguei no tempo. Sempre fui de viajar nas ideias. E, então, adormeci na cadeira da cozinha. Ele gritou minha ausência de inteligência e de modos e minha arrogância de me imaginar gente.

Pela primeira vez, vi poesia nos ditos de minha mãe. Poesia dura. Sua voz sempre escondida ganhou força e avisou que a escravidão viveu em outro tempo. Disse sobre respeito e sobre amor. E pediu as contas. Ele deu de ombros e se foi sem muito incômodo.

No ônibus, ela beijou o que tinha de mim. E olhou para a janela imaginando alguma esperança. E, então, nos ajeitamos com outro emprego. E foi nesse tempo que, humilhado também na escola, desisti. Demorei a dizer a ela. Quando disse, ela chorou. Queria que eu voltasse, eu expliquei não ter inteligência. Ela chorou mais. Culpou a si mesma por não ter me ensinado a ver dentro. A casa, naquela noite, ficou vazia. 

O tempo é consertador até de teimosias. Demorou para que eu soubesse que podia saber. E estou, agora, estudando. E gostando. 

Meus filhos já são formados. Minha mulher me devolveu a autoestima que muitos roubaram. E abriu sorriso, quando eu disse da escola. Ela tem uma pequena confecção de bordados e escolhe palavras bonitas para enfeitar os aventais que vende. Nos conhecemos em uma calçada; eu perdido, ela pedindo informações. Pouco tempo depois, já éramos um. Minha mãe sempre gostou da nora, bordadeira de bondade no cuidado com as pessoas. 

"Terra à vista" foi a frase que algum dos descobridores teria dito. Descobridores de uma terra há muito descoberta. Do exemplo histórico, fiquei pensando na vida. 
Terra à vista e o barco parado. Terra à vista e a vista presa a palavras que, erradas, grudam nos navegadores.

Vou me formar logo. O barco voltou a cumprir seu destino. Sou destinado a banhar de esperança os cascos da minha embarcação. Se um dia desisti, no outro reaprendi. A luz acordou esclarecendo o dia. "É o dia de abandonar as palavras mal proferidas". "É o dia de deixar no passado o passado que não mais me cabe e que nem nunca coube".

Foi nesse dia que cuidei de cuidar de quem sempre cuidou de mim. E que abri os outros dias que vieram. Duros, cheios de imprecisões, mas meus. Se sou pequeno na estatura, se fraturei a alma muitas vezes, nada disso foi impedimento para me aproximar da terra. O impedimento era eu mesmo, quando me via pequeno, quando autorizava a desautorizarem meu jeito de existir. A terra que avisto é a que eu planto amor. Não acumulei as agressões, apenas demiti os agressores da minha vida para poder, de fato, viver. 

Vou ser o orador da minha turma. Minha mãe se chama Maria; minha mulher, também. Na minha alma, agora grande, avisto as Marias de minha vida e agradeço.




Publicado no site do jornal O Dia, 6 de novembro de 2022.



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