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NÃO SÃO APENAS ÁRVORES
Acadêmico: José Renato Nalini
Há muito a ser descoberto na região Amazônica. Se a perdermos, não serão apenas árvores que deixarão de existir.

Não são apenas árvores

Os céticos em relação ao aquecimento global e detratores da ecologia costumam ridicularizar quem lamenta o crime perpetrado contra a Amazônia. Folclorizam os defensores da natureza dizendo que a Constituição Ecológica é obstinadamente antropocêntrica. O que deve ser preservado é o ser humano e não as árvores ou o “mico-leão dourado”, espécie que ficou emblemática e com a qual pretendem reduzir a atuação dos preocupados com o futuro da humanidade. Para eles, a destruição do bioma para torná-lo um grande pasto é mais importante do que manter a mata intacta, como os brancos a encontraram a partir do século XVI.

Quando se extermina a cobertura vegetal daquela região hoje parcialmente devastada, não é só árvore que o Brasil e o planeta estão perdendo. Seria interessante que tais descrentes lessem o livro do arqueólogo Eduardo Góes Neves, do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, chamado “Sob os tempos do equinócio: oito mil anos de história na Amazônia Central”, editado pela Edusp e Ubu.

É comprovado que os povos amazônicos representavam uma experiência de mais de dez mil anos de ocupação humana da floresta. Não eram a massa primitiva que se quer fazer crer. Haviam se valido do aproveitamento de dezenas de espécies vegetais e desenvolvido tecnologias como a cerâmica, em época simultânea à de outros centros civilizacionais existentes no planeta.

Sabiam planejar assentamentos em larga escala, construir estradas e estabelecer comércio. Edificaram estruturas monumentais e os ancestrais dos indígenas remanescentes, que sobreviveram ao genocídio iniciado no século XVI, estavam na região havia milênios.

Ainda não existe explicação cientificamente atestada, quanto aos sinais de crise e conflito detectadas pela pesquisa do arqueólogo. Foi detectado o fenômeno do esvaziamento das povoações e a edificação de uma estrutura defensiva. Talvez a resposta se encontre em outras teorias, como a desenvolvida pelo antropólogo David Graeber e pelo arqueólogo David Wengrow, no livro “O despertar de tudo: uma nova história da humanidade”, editado pela Companhia das Letras. Os autores alertam sobre a existência de técnicas que propiciam investigar o que o homem fez há milhares ou até há dezenas de milhares de anos. Isso altera o conteúdo e a forma pela qual a história da humanidade era narrada em nossa infância. E continua a sê-lo na falta de criatividade e de atualização da educação formal, sempre deficiente, neste Brasil de iletrados.

A partir daí, reinventa-se a história. Nossos antepassados não eram hominídeos, seres primitivos, caçadores-coletores vivendo em meio hostil. Assim como já intuía Claude Lévi-Strauss, inexiste diferença entre nós e os que nos antecederam, quanto à inteligência, cognição e consciência social e política.

A Amazônia não tem apenas – (ou não tinha…) – árvores. É um território complexo, onde não faltam as várzeas, as margens de seus rios, principalmente aquelas chamadas “de águas brancas”. É o caso do Solimões, que se encontra com o Rio Negro, perto de Manaus. Por que elas são “brancas”? Porque trazem sedimentos de origem andina e capazes de potencializar a fertilidade dos solos na época das cheias. Além disso, existe uma exuberante abundância de recursos pesqueiros. Na Amazônia, eles são imensos e dispersos por uma área de enorme dimensão.

Ali surgiu o cultivo da mandioca, do amendoim e do cacau e do próprio milho. Embora originário do México, houve mutação que o melhorou muito no solo amazônico, o que permitiu seu uso em outros espaços do continente.

Tudo isso ainda precisa ser prospectado. Mas é o suficiente para concluir que destruir a Amazônia é um crime que ultrapassa em muito o extermínio da floresta. Ali se desenvolveram sociedades evoluídas, há outra história a ser contada. E, assim como a biodiversidade exuberante e milionária, tudo isso vai sendo eliminado, sob a tacanha insensatez imediatista dos maus brasileiros.

Até experiências democráticas desvinculadas da matriz helênica podem ter existido naquele vasto território, condenado ao extermínio antes mesmo de ter a sua história descoberta. Mais um sinal do retrocesso de nossa “civilização”, que persiste a tratar o indígena como um semi-cidadão, quando ele soube – melhor do que nós – manter incólume o tesouro infinito da floresta.

Há muito a ser descoberto na região Amazônica. Se a perdermos, não serão apenas árvores que deixarão de existir. Mas um rico manancial de conhecimentos que poderia nos ajudar a redescobrir o verdadeiro sentido da vida e da convivência.

Publicado no Blog do Fausto Macedo/Opinião/Estadão
Em 16 09 2022



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