Compartilhe
Tamanho da fonte


CONSTITUCIONALIZAÇÃO EXCESSIVA
Acadêmico: José Renato Nalini
Quando se acusa o Judiciário de ser ativista, esquece-se de que ele – em regra – só age quando provocado.

Constitucionalização excessiva

Quando se acusa o Judiciário de ser ativista, esquece-se de que ele – em regra – só age quando provocado. O protagonismo dos juízes, a começar pelo STF, deriva da volúpia brasileira em constitucionalizar todos os assuntos. Basta verificar o rol dos direitos fundamentais. Tudo é direito fundamental. Além dos setenta e oito incisos sequentes ao artigo 5º, os parágrafos abrem uma porta que nunca se fecha, para a inclusão de novos e novíssimos direitos humanos essenciais.

Toda interpretação que se faz e que chega à descoberta de um direito não explicitado, valida esse bem da vida “descoberto” pelo hermeneuta, ou até “inventado” pelos mais criativos, inserindo-o na ordem fundante. Sem falar que todos os direitos que integram tratados firmados pelo Brasil também se tornam direitos fundamentais exigíveis pelos interessados.

Ora, isso é surreal. E não é de hoje. Há mais de um século, Oliveira Viana observara: “Na sua obsessão de sumariarem o que de mais alto existe nos ideais da civilização ocidental, estes estupendos edificadores de regimes obstinam-se – por ignorância ou por sistema – em não contar com as condições reais da sociedade que pretendem organizar. Legislam para abstrações; articulam Constituições admiráveis, não para que as executem os brasileiros (fluminenses, gaúchos, baianos, maranhenses ou paulistas); mas, uma entidade abstrata, este homem utopia: o Cidadão, esplêndido boneco metafísico armado de molas idealmente perfeitas e precisas, a mover-se, retilíneo e impecável, sem atritos nem contrachoques, dentro das categorias lógicas do Dever”.

Para o notável pensador da primeira república, o raciocínio construtor desses nefelibatas trabalha sobre abstrações: – “sobre meras hipóteses, logo admitidas como verdades dogmáticas; sobre teses vagas, logo consideradas como realidades objetivas. E tudo se passa como se a massa viva do povo, como se os homens de carne e osso que deverão executar estas teses, por em prática estas conclusões, deduzidas de premissas assim abstratas, não importassem no caso e fossem apenas quantidades negligenciáveis”.

São os idealistas utópicos. Aqueles que oferecem à República que tem mais Faculdades de Direito do que a soma de todas as outras existentes no restante do planeta, oportunidade para fazer chegar toda e qualquer questão, inclusive questiúncula, ao Supremo Tribunal Federal.

O desapreço à realidade gera essa ficção jurídica em que estamos mergulhados. A Constituição trata de tudo. Há lei infraconstitucional para tudo. Todos os assuntos são disciplinados, regulados e fixados em parâmetros legais. Isso torna o Brasil o país mais justo do mundo?

Não. Continuamos com o sistema justiça profundamente injusto. A sofisticação do equipamento estatal destinado a resolver problemas, na verdade – e em geral – os institucionaliza. O juiz de primeiro grau passou a ser alguém que minuta decisões. Estas passam pelos tribunais locais com o foco nos Tribunais Superiores. Tudo chega ao STJ, que foi concebido para ser uma Corte de Cassação, unificadora da jurisprudência, como ocorre na Itália. E todos os assuntos também chegam ao STF.

O Supremo precisaria ser Corte Constitucional, não esse órgão tentacular polivalente, que aceita ser segunda instância dos Juizados Especiais.

Para grande número de brasileiros, o calvário da justiça é um purgatório. A duração de uma demanda é insuscetível de ser objetivamente fixada. O resultado é imprevisível. A burocracia das quatro instâncias, com o sistema recursal caótico a permitir dezenas de reapreciações do mesmo tema, faz com que o provido de razão se desespere. E aquele que não quer cumprir suas obrigações, “nada de braçada”: o Judiciário consegue oferecer ao mau pagador um tempo que os bancos, as instituições financeiras, os credores não lhe concedem.

Política e finanças andam de mãos dadas com a Justiça, num fenômeno mais comum do que seria admissível num país que tem o princípio da moralidade insculpido como um dos essenciais à Administração Pública.

Desconstitucionalizar seria uma desejável meta. Em seguida, fazer o STF se converter em exclusiva Corte Constitucional. E prestigiar a jurisdição de primeiro grau, fazendo do segundo grau o definitivo. Mas isso só pode ser um sonho utópico. A realidade é muito diferente e só quem passa pelas agruras de necessitar da Justiça como autor, ou sofre as consequências de ser réu, pode aquilatar o quão cruel é o serviço público idealizado com a melhor das boas intenções. Afinal, todos os direitos – infinitos e em crescente proliferação – estão na Constituição. Todos estamos salvos!

Publicado no Blog do Fausto Macedo/Opinião/Estadão
Em 14 de setembro de 2022




voltar




 
Largo do Arouche, 312 / 324 • CEP: 01219-000 • São Paulo • SP • Brasil • Telefone: 11 3331-7222 / 3331-7401 / 3331-1562.
Imagem de um cadeado  Política de privacidade.