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ENIGMAS INDECIFRÁVEIS
Acadêmico: José Renato Nalini
Prevenir a excessiva judicialização está condicionada a uma educação de qualidade, que ainda não temos.

Enigmas indecifráveis

Durante a concorrida Convenção do SECOVI, em painel com o Dr. Marcelo Terra e a pesquisadora Juliana, da FGV, formulou-me o engenheiro Eduardo Della Mana (filho de meu saudoso amigo Italo Della Mana), quatro questões instigantes.

São elas: 1. Como prevenir a judicialização? 2. Projetos que se tornarão lei, com vistas ao aprimoramento urbanístico, serão também judicializados? 3. A polarização em que o Brasil mergulhou intensifica a judicialização? 4. As decisões judiciais sofrem impacto político e ideológico?

Essas indagações, quanto ao seu núcleo, também me faço, recorrentemente. A judicialização no Brasil é doença, não é sinal de higidez democrática. Não é possível que pessoas racionais sejam incapazes de resolver seus problemas servindo-se do diálogo e recorram ao Judiciário apenas em questões de excepcional gravidade ou complexidade.

Está nítida uma versão perversa do “Estado-babá”, que pretende assumir toda a vida cidadã, fazendo com que o indivíduo seja um títere, um autômato, dependente da atuação estatal para tudo e mais um pouco. O Estado-juiz está aí, pronto para receber as demandas. Afinal, o inciso XXXV do artigo 5º da Constituição impede que qualquer lesão ou ameaça a interesse ou direito seja levada à apreciação de um juiz. Essa tendência fará com que haja um juiz em cada esquina. Em vez do guarda de quarteirão, um magistrado. Haja orçamento para honrar essa expansão.

Prevenir a excessiva judicialização está condicionada a uma educação de qualidade, que ainda não temos. A escola convencional treina o educando a decorar informações que poderia obter com mais rapidez e facilidade num clique dos mobiles. Não cuida de competências socioemocionais e não prepara com vistas à vida real. Fica difícil prevenir essa febre voluptuosa que atravanca o Judiciário e não resolve os problemas. Apenas os institucionaliza.

Induvidoso que os projetos de lei acalentados pela municipalidade e pelo mercado para tornar mais racional a ocupação da cidade que é uma conurbação insensata – o complexo município de São Paulo – serão judicializados quando vierem a se converter em lei. Sob argumentos os mais diversos, segmentos que não foram eleitos se sobreporão à vontade do Legislativo, desprezarão a iniciativa do Executivo e tornarão o Judiciário o verdadeiro administrador – ou, infelizmente, um perturbador – do desenvolvimento da capital.

As melhores intenções podem ostentar uma face perversa: invoca-se um interesse localizado – embora legítimo – ou inobservância de regras de participação. Mas o resultado é atrasar o ritmo corretivo que pretende colocar um mínimo de ordem e racionalidade na balbúrdia urbana da megalópole.

O terceiro questionamento: a polarização como fator de intensificação da judicialização. Pode ocorrer. Nunca se viu um Brasil tão dividido e tão fanatizado. Tanto deboche, mau gosto, mediocridade e intenção de agredir o adverso. Em lugar de adversário, hoje o que se tem é um inimigo. Famílias se dividem. Não é possível conversar sobre política ou sobre o futuro do Brasil, sem que se parta para a violência verbal ou até mesmo física. Pense-se na agravante do armamento. Antes de o indivíduo portar arma de fogo, instrumento letal e que nem deveria ser fabricado, ele se arma internamente. Todos estão armados com equipamentos cruéis: o sarcasmo, o humor maldoso, a chacota, a folclorização do outro. Parece que todos foram imbuídos da visão crua de Karl Schmidt, que separa as pessoas em amigos e inimigos, sem qualquer outra possibilidade de enquadramento.

Isso leva à derradeira indagação: a politização do Judiciário ou a judicialização da política. Tema explorado de forma esplêndida pelo grande constitucionalista, o maior, no meu entender, já que foi o responsável pela minha predileção pela disciplina, o Professor Manoel Gonçalves Ferreira Filho. Pioneiro, ele detectou que este século seria assim. A emoção, o passionalismo, o fanatismo, o obscurantismo e outros “ismos” contribuem, sim, para o clima de acirramento.

Sei que as perguntas são irrespondíveis. Mas a mera enunciação evidencia a fase turbulenta em que o Brasil imergiu. Para sair dela, será preciso muito esforço e heroísmo. Seremos capazes disso? Haverá consciência ética suficientemente forte e apta a reagir? Sem tal disposição, estas e outras questões continuarão a ser enigmas indecifráveis.

Publicado no Blog do Fausto Macedo/Opinião/Estadão
Em 29 de agosto de 2022




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