Compartilhe
Tamanho da fonte


MORAR É PRECISO
Acadêmico: José Renato Nalini
Morar é um direito fundamental. Edificar moradias é dever do Estado.

Morar é preciso

A moradia é um direito social fundamental. Consta do artigo 6º da Constituição. Mas é uma ficção para grande parcela dos brasileiros. Talvez a maior parte deles.

Em São Paulo, esta capital insensata, insuscetível de ser administrada pelo atual sistema, existe um milhão de seres humanos sem moradia. Só que eles são chefes de família, porção considerável são famílias chefiadas por mulheres e suas proles, o que leva a uma cifra muito maior de desalojados.

Se acrescentarmos a esse número as três milhões de moradias indignas, que oferecem abrigo precário a seus habitantes, concluiremos que o problema é ainda muito mais aflitivo.

Enquanto isso, pretende-se blindar a cidade com leis completamente desvinculadas da realidade. Legisla-se abundantemente, como se vivêssemos na Finlândia. Mas estamos neste Brasil campeão da desigualdade social, onde trinta e três milhões de semelhantes passam fome diariamente e tantos outros milhões sofrem de insegurança alimentar.

São Paulo cresce a despeito de Planos Diretores. A tentativa de disciplinar o indisciplinável faz com que milhares de pessoas sejam expulsas do centro expandido da capital – justamente o espaço provido de infraestrutura e de razoável cobertura de meios de transporte coletivo – para que sejam forçados a residir cada vez mais longe. As periferias explodem, o que obriga os indivíduos a diariamente tomar várias conduções para chegar ao lugar de trabalho e percam horas para vir e para voltar.

Qual o custo disso? Queda da produtividade, mercê das enfermidades reais ou somatizadas dos sacrificados viajantes compulsórios? Como calcular a intensificação do mal-estar que acomete milhões de paulistanos e de residentes na “Grande São Paulo”, que chega a Campinas, São José dos Campos e Baixada Santista. Qual o impacto dessas viagens desnecessárias no agravamento da emissão de gases venenosos causadores do efeito-estufa?

Tudo isso parece não preocupar os autores de ações que impedem a modernização do aparato normativo que tenta acompanhar as profundas e incessantes mutações das cidades. Sob argumento de preservação de realidades já deterioradas pela metamorfose que não aguarda a vontade dos legisladores ou dos administradores, obstaculizam a atuação do poder público. Se a administração do município decidiu modificar um parâmetro urbanístico, se a proposta submetida à Edilidade foi aprovada, não parece razoável que a opção tomada por representantes democraticamente eleitos, sejam inibidos por minorias não submetidas ao sufrágio.

Essa discussão a respeito da legitimidade dos poderes não eleitos já foi travada em inúmeros países, nossas fontes doutrinárias, como a França, caso emblemático. Ali ainda se discute se os poderes não eleitos obtêm consentimento da maioria democrática para se opor a opções tomadas pelos poderes que se submetem periodicamente ao sufrágio.

A resposta é que a legitimidade se obtém pela fundamentação das decisões. Mas quando as decisões tardam? Quem responde pelo prejuízo causado à coletividade? E quando as decisões se afastam do interesse comum, para priorizar interesses localizados – embora legítimos – de minorias? Será que elas também são legitimadas pelo consentimento da população?

Penso que o remédio para esses entraves judiciais a providências urgentes e necessárias, com vistas ao adensamento da área residencial da megalópole seria demonstrar à sociedade o prejuízo – vultoso e crescente – que deles advém. Países civilizados admitem a responsabilização de ONGs e de instituições estatais voltadas à defesa dos interesses sociais, quando de sua atuação resultarem danos à coletividade.

Morar é um direito fundamental. Edificar moradias é dever do Estado. Quando parte do Estado quer cumprir com essa obrigação constitucional e outra parte dele impede que isso se concretize, é preciso que a cidadania faça uma opção. Prestigiar a defesa de enclaves elitizantes, que defendem o direito adquirido à fruição de uma baixa densidade populacional, ou priorizar a população trabalhadora, que mal recebe para obter remuneração garantidora do mínimo existencial?

Administrar é fazer escolhas. E quem é legitimado a elas é aquele que se submeteu ao escrutínio do sufrágio secreto, direto e universal. O papel das instituições não eleitas não pode se afastar completamente dos interesses da maioria. Sob pena de se intensificar o discurso pela importação de institutos da democracia semidireta, como o recall judicial, que às vezes serve de advertência para julgadores que observam a literalidade legal e procedimental, mas com isso ocasionam resultados nefastos para a maioria.

A releitura atenta, a reflexão e a observância do dever contido no artigo 25 do Código de Ética da Magistratura Nacional não faria mal a boa parte do sistema Justiça tupiniquim.

Publicado no Blog do Fausto Macedo/Opinião/Estadão
Em 24 08 2022



voltar




 
Largo do Arouche, 312 / 324 • CEP: 01219-000 • São Paulo • SP • Brasil • Telefone: 11 3331-7222 / 3331-7401 / 3331-1562.
Imagem de um cadeado  Política de privacidade.