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HIPOCRISIA DIZ "PRESENTE!"
Acadêmico: José Renato Nalini
Chora-se para se ter a fama de bondoso; chora-se para evitar a vergonha de não chorar

Hipocrisia diz "Presente!"


Foi de La Rochefoucauld quem escreveu: "a hipocrisia é uma homenagem que o vício rende à virtude". Ele conhecia a alma humana. Experimentou toda sorte de reações dos contemporâneos, tanto que produziu suas "Máximas", até hoje ainda citadas.

Para Voltaire, é um dos livros mais originais do século de Luiz XIV, já Jean-Jacques Rousseau o considerava uma obra triste. O Duque de La Rochefoucauld se descreve como um homem triste: "Tenho nas feições certa amargura e altivez: isso faz supor a muitos que sou desdenhoso, embora absolutamente não o seja". Seu natural é ser melancólico. Tanto que, em quatro anos, riu umas três vezes. "Sou reservadíssimo com os desconhecidos e não sou mesmo desmedidamente aberto com a maioria dos conhecidos. É defeito, bem o sei, e nada pouparei por corrigir-me, como, entretanto, certo ar sombrio contribui para fazer-me parecer mais retraído ainda e em nós não cabe desfazer-nos da aparência má, efeito da natural disposição dos traços".

Apesar disso, prezava os seus amigos: "amo os meus amigos e amo-os a tal ponto que não vacilaria em sacrificar meus interesses aos deles; sou condescendente para com eles, suporto com paciência as suas indisposições e desculpo facilmente tudo. Apenas não lhes faço muita festa e não sinto grandes inquietações quando ausentes".

Acreditava que a hipocrisia está presente sempre, no convívio entre os humanos. Dizia que "nas aflições há várias sortes de hipocrisia. Numa, sob pretexto de chorar a perda de uma pessoa cara, choramos a nós mesmos; pranteamos o bom conceito em que nos tinha; lastimamos a diminuição do nosso bem, do nosso gáudio, de nossa consideração. Assim, os mortos colhem honra das lágrimas vertidas para os vivos".

E por que esse lamento seria hipócrita? O choro pelos que partiram é uma forma de se enganar a si próprio. Outra hipocrisia que ele detectou é a "aflição de certa gente aspirante à glória de uma dor bela e imortal. Depois que o tempo, consumidor de tudo, esponjou de todo a que eles sofriam de verdade, não cessam de aferrenhar os prantos, as lamúrias e os suspiros; assumem gesto lúgubre e se esforçam por convencer, em suas ações, que o seu desgosto só na morte terá cobro".

Todos conhecemos tais espécimes lamuriosas, colecionadores de queixumes e que se consideram os mais injustiçados dentre os seres que habitam a Terra. A hipocrisia é sempre acompanhada de choro. Ele reconhecia outro gênero de lágrimas com pequenas fontes que minam facilmente e secam logo: "Chora-se para se ter a fama de bondoso; chora-se para ser-se lamentado; chora-se para se ser chorado; chora-se, enfim, para evitar a vergonha de não chorar".

O choro hipócrita é o daquele que lamenta a desgraça do amigo, mas internamente se vangloria de não ser ele a suportar tal sofrimento. Na verdade, é fácil se consolar rapidamente das desgraças alheias. Ele enxerga hipocrisia até mesmo na gratidão: "no geral dos homens, gratidão é íntimo desejo de receber maiores benefícios".

As "Reflexões" que ele escreveu e publicou em 1665, as considerava "um retrato do coração do homem". Sabia que não contentaria a todos, porque muito fiel à condição humana e que ninguém gosta de se mostrar por inteiro. Penetrar no recesso da alma alheia gera reações: as pessoas não querem que os outros as conheçam, porque não querem a si mesmas conhecer.

Teria ele razão? É melhor ser hipócrita e viver hipocritamente?

Publicado no Jornal de Jundiaí/Opinião
Em 03 07 2022



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