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O PERDÃO QUE EU NEGUEI
Acadêmico: Gabriel Chalita
Fiz o certo. Devolvi a vida a quem negou uma vida a mim.

O que ele fez doeu. O que ele não fez doeu mais. Demorou para que minha mãe dissesse quem era o meu pai. Eu era adolescente, quando, voltando da escola, exigi a verdade. Ela, primeiro, desconversou como das outras vezes. Fez alguma chantagem querendo saber se me faltava amor. Dessa vez, eu não dancei a sua música. Parei firme e quis saber. Ela ainda ensaiou uma explicação que não levaria a lugar nenhum. Eu sabia onde queria chegar. E eu sabia o lugar em que estava. E isso faz toda a diferença.

Firme, pedi verdade. E foi, então, que ela disse. O nome. A profissão. O lugar onde morava. Não era longe. Ela insistiu que eu esquecesse. Explicou que tentou, algumas vezes, que ele soubesse. Sabia nada ele da vida. Era o que ela sentia, era o que ela dizia. 

O dia já ensaiava despedida, quando conversamos. Tomamos uma sopa, apenas. E dormimos uma noite indormida. Sei disso porque ouvi seu silêncio. Quis voltar à conversa. Deixar a cama sem vida e sentar com ela na cozinha e nos aquecermos do frio que eu havia causado. Preferi a quietude. Pela janela, ouvi a noite e o barulhar dos mistérios. Ouvi os pensamentos de minha mãe. Minha insistência, decerto, acordou dores há muito esquecidas. Não sei. Mas precisava saber.

Tomamos o café com sabor de vazios. Ela perguntou o que eu faria. Eu disse que iria. Ela desaconselhou. "É um homem frio o seu pai".  Eu nada disse. "Invente um pai para você, crie uma imagem de um homem bom". Sem dizer atrevimentos, disse que eu tinha o direito de decidir. E ela nada mais disse.

Na saída da escola, pedi ao Elder que fosse comigo. Elder era um amigo que não distanciava os afetos em nenhuma das estações. Olhou explicando que eu poderia sofrer. Eu respondi que era homem feito, já tinha 15 anos, e precisava encontrar. Os encontros nem sempre são bons, foi o que senti dos seus dizeres. Amigos se emprestam mesmo para empreitadas duvidosas, nos resultados, não nas intenções. A minha era a melhor do mundo. Amar um pai. 

Fomos. Carlos Alberto era seu nome. Açougueiro, sua profissão. Os passos foram nos levando ao endereço. Ruas pelas quais eu já havia passado me olhavam ansiosas. Viramos uma esquina e mais outra. Havia uma praça que eu não lembrava ter conhecido. Era um outro bairro. Chegamos, então, ao endereço. Um homem estava no caixa. Alguns outros faziam as vezes de cortar as carnes de animais mortos pendurados a olhos vistos. Não como carne. Mas não direi isso ao meu pai. 

Elder entrou antes de mim, perguntando algum preço. Eu tomei um gole de coragem e pedi uma conversa. Ele me olhou arrogante. Eu disse que era filho de Maria do Carmo. Ele maneou a cabeça e disse o preço ao Elder. Eu disse, então: "Pai, sou seu filho, vim te conhecer". "Tenho três filhas, nenhum filho homem", disse, levantando da cadeira e indo em direção à porta que deve dar em algum lugar, não no meu coração. Naquele momento, rasguei a vida e me enterrei medroso dentro dela. Elder, então, se fez valente para me defender. "Diga que ele não é seu filho, diga que não conhece a mãe dele, sabe o que significa para esse menino um abraço de pai?". Sem reação, sem negar nem acenar com alguma esperança, ele abriu a porta e entrou vazio adentro.

Voltamos para casa. O silêncio aborrecido daquele dia era quebrado com a amizade de Elder. Como era bom ter um amor para andar. Alguns anos se despediram de nós. Eu já era médico, quando ele entrou no hospital infartado. Fiz o certo. Devolvi a vida a quem negou uma vida a mim. Ele soube que era eu. Suas filhas, também. Elder contou. Outros médicos deram sequência ao tratamento. Eu o salvei em um plantão. Salvar vidas foi o juramento que fiz. 

Contei para minha mãe que chorou o acontecido. Ele saiu do hospital e adoeceu de outra doença, tempos depois. Foi, então, que pediu que eu o perdoasse. Sua filha veio me ver. Disse que não se lembrava de ver o pai tão emocionado pedindo minha presença. Eu ouvi e dei a ela carinho de irmão. Disse nada sobre o que faria. E nada fiz. 

Minha mãe, cultivadora do amor, sugeriu "Perdoe, filho, o tempo me ensinou que na vida ninguém dá o que não tem". Agradeci os dizeres. Abracei a força do seu caráter e a bondade de uma vida dedicada a mim. Acenei com a cabeça concordando. A imagem das carnes penduradas no açougue e do amor negado formavam uma dança triste na minha memória de menino. Os sentimentos daquele homem tinham menos vida que os animais ali expostos.

"Sou filho de Maria do Carmo, e isso é o necessário", foi o que disse para dentro naquele dia. Muitos dias se sucederam sem que eu conseguisse entender por que eu quis ir ao seu encontro e por que ele se negou a ser encontrado. Se ele precisasse de um médico, eu não me negaria. Mas, na despedida, inventar um amor, isso não. 

Morreu ele alguns dias depois. E alguns dias depois, quando encontrei a filha que veio me pedir presença, arrependi. 
Choramos juntos uma convivência roubada. Ela disse coisas sobre a infância de meu pai que eu não imaginava. As cracas são criadas com o tempo, com o tempo das ausências. 

A mãe das minhas irmãs deu amor em dobro, por isso elas conhecem a bondade. E meu pai precisou do tempo da despedida para compreender que não viveu. Fomos juntos à missa de um mês e eu pedi perdão pelo perdão que eu neguei. Descanse em paz, meu pai.




Publicado no jornal O Dia, 5 de junho de 2022.



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